domingo, fevereiro 01, 2004

A Nau Catrineta



No séc. XVI as viagens por mar eram tão fascinantes quanto arriscadas.
Os navegantes levavam os olhos luzindo de esperança de encontrar novas terras e riquezas, mas a alma pesada de pavor de monstros marinhos, piratas, tempestades, fomes, sedes, doenças, tempo indeterminado entre mar e céu.
Em 1565 saiu de Pernambuco a nau Santo António com destino a Lisboa.
Nela vinha Jorge Albuquerque Coelho, filho do fundador de Pernambuco.
A história desta travessia ficou registada para sempre na “História Trágico-Marítima” e Almeida Garrett acreditava que estaria na origem do romance popular A Nau Catrineta.
Pouco depois de zarparem de Pernambuco, o gajeiro da Santo António avistou na linha do horizonte uma vela que se aproximava velozmente.
Não demorou muito que se verificasse ser um navio corsário francês, dos muitos que se acoitavam nas enseadas para saquearem os barcos portugueses e espanhóis, que traziam riquezas usurpadas das riquíssimas e novas terras descobertas na América do Sul.
Os ocupantes da nau Santo António desfraldaram todas as velas para tentarem escapar aos piratas... mas em vão, já que os porões iam pesados de riquezas brasileiras com destino à corte de Lisboa.
Em breve foram alcançados, manietados uns e mortos e feridos outros.
O saque mudou de mãos e a nau ficou abandonada ao seu destino, tendo os piratas aproveitado para se suprir de alimentos e instrumentos de navegação.
À deriva e sem governo, a nau pairou dias e dias no mar alto.
O sol abrasava, mil vezes reflectido no espelho de ouro azul do mar.
A sede, a fome e o escorbuto mataram rapidamente os mais feridos e fracos.
Os sobreviventes não encontravam ventura no estarem vivos.
De olhos encovados e mortiços, faces encovadas, lábios ressequidos, jaziam no convés meio mortos de desespero.
Subitamente um gemido se ouviu e um olhar se iluminou: O segundo marinheiro arrasta-se como pode até pode até perto do moribundo, garras em riste e cérebro transtornado, arranhando o desgraçado, que contudo ainda arranjou forças para uivar pela sobrevivência, ante a ameaça de ser devorado.
Outros marinheiros se aproximaram, uns para evitarem a carnificina outros, loucos de fome, para dela participarem.
No meio da gritaria insana, uma voz calma se ergue: Era Jorge de Albuquerque Coelho, que exortava à consciência e ao respeito, lembrando serem todos irmãos em desgraça.
A nau continuou à deriva, até que um dia se viu terra ao longe: era a costa portuguesa, aonde em breve chegaram, foram acolhidos e tratados todos os sobreviventes daquela desgraça.
Diz-se que muitos anos depois, já velhinho, Jorge Albuquerque Coelho costumava sentar-se em frente ao mar, rodeado de amigos, contando assim a sua história:

LÁ VEM A NAU CATRINETA
QUE TEM MUITO QUE CONTAR
OUVIDE, AGORA, SENHORES,
UMA HISTÓRIA DE PASMAR...

PASSAVAM MAIS DE ANO E DIA
POR SOBRE AS ÁGUAS DO MAR...
JÁ NÃO TINHAM QUE COMER...
JÁ NÃO TINHAM QUE MANJAR...

DEITARAM SOLA DE MOLHO
NÃO NA PUDERAM TRAGAR
DEITARAM SORTES À AVENTURA
QUEM SE HAVIA DE MATAR
LOGO A SORTE FOI CAIR
NO CAPITÃO-GENERAL.

- ACIMA, ACIMA, GAJEIRO
ACIMA AO TOPO REAL
VÊ SE VÊS TERRAS DE ESPANHA
AREIAS DE PORTUGAL.

- NÃO VEJO TERRAS DE ESPANHA
NEM AREIAS DE PORTUGAL
VEJO SETE ESPADAS NUAS
QUE ESTÃO PARA TE MATAR!

- ACIMA, ACIMA GAJEIRO
ACIMA AO TOPO REAL
VÊ SE ENXERGAS ESPANHA
AREIAS DE PORTUGAL.


- ALVÍSSARAS CAPITÃO,
MEU CAPITÃO-GENERAL
JÁ VEJO TERRAS DE ESPANHA
AREIAS DE PORTUGAL.

MAIS ENXERGO TRÊS MENINAS
DEBAIXO DUM LARANJAL...
UMA, SENTADA A COSER,
OUTRA, NA ROCA A FIAR...
A MAIS FORMOSA DE TODAS
ESTÁ NO MEIO A CHORAR.

- TODAS TRÊS SÃO MINHAS FILHAS
OH, QUEM MAS DERA ABRAÇAR...
A MAIS FORMOSA DE TODAS
CONTIGO A HEI-DE CASAR....

- NÃO QUERO A VOSSA FILHA
QUE VOS CUSTOU A CRIAR...

- DOU-TE O MEU CAVALO BRANCO
QUE NÃO HÁ OUTRO IGUAL....

- NÃO QUERO O VOSSO CAVALO
QUE VOS CUSTOU A ENSINAR...

- DAR-TE-EI TANTO DINHEIRO
QUE NEM O POSSAS CONTAR...

- GUARDAI O VOSSO DINHEIRO
QUE VOS CUSTOU A GANHAR...

- DAR-TE-EI A NAU CATRINETA
PARA NELA NAVEGAR....

- NÃO QUERO A NAU CATRINETA
QUE A NÃO SEI GOVERNAR.

- QUE QUERES, Ó MEU GAJEIRO,
QUE ALVÍSSARAS TE HEI-DE DAR?

- CAPITÃO, QUERO A TUA ALMA
PARA COMIGO A LEVAR...

RENEGO DE TI, DEMÓNIO,
QUE ME ESTAVAS A TENTAR...

A MINHA ALMA É DE DEUS,
O CORPO DOU-O EU AO MAR...

TOMOU-O UM ANJO NOS BRAÇOS
NÃO O DEIXOU AFOGAR...
DEU UM ESTOURO O DEMÓNIO
ACALMARAM VENTO E MAR...


E À NOITE A NAU CATRINETA
ESTAVA EM TERRA A VARAR.



Sem comentários: