domingo, setembro 18, 2005

Só estou para a Senhora Morte


Só estou para a Senhora Morte

A si, Senhora Morte, espero-a na minha quietude cansada.Espero-a coroada de tantas flores quantas as que na vida me negaram, ou roubaram.Espero-a envolta em trajes brancos, resplandecente, sorrindo ao fundo do túnel de fúlgido azul.Espero-a com o sorriso da verdade única, primeva, ao lançar-me nos seus braços confiantes, que me não renegarão, nem me julgarão demasiado humilde, nem simples-simplória para neles me acolher.Abraçar-me-á como a todos os ricos e prepotentes, como a todos os mandantes e assassinos, como a todos os crápulas e santos.Sei que está à espera, como eu estou... nem uma nem outra demasiado ansiosa, Mas tranquilamente, sabendo-nos fiéis.

Maria Petronilho

(replicando com carinho ao artigo de Raymundo Silveira "Digam que não estou")

Lisboa, 18/9/2005

sábado, setembro 10, 2005

Viagem



... Que não te falei de mim!....
Prefiro chegar, Assim, sorrateira, enquanto dormes.
Fico a olhar-te, observando o teu sossego.
Aproximo-me muito devagarinho, levanto a ponta do lençol.
Muito, muito ao de leve, toco os pêlos da tua barba. Beijo-te à flor do rosto, tomando cuidado para não te tocar os lábios.
Vagueia uma leve tristeza.
Algo na nossa amizade esfria e empalidece.
Sou movida adiante, à força de porquês.
Por defeito, começo por analisar os meus gestos, percorrendo um por um todos os momentos, na ordem inversa dos acontecimentos.
Não encontro culpas.
Dentro do silêncio, algo me escapa. Mas está hermeticamente fechado como uma pérola, um ovo. Teria de quebrá-los para ver o que têm dentro.
Não são meus, porém. Deposito-os na estante dos segredos.
Talvez se abram. Talvez amadureçam. Talvez despertem. Talvez se adensem.
Estão lá, eu estou aqui, de alma desnuda.
Já tenho direito a seguir todas as rotas da rosa-dos-ventos, sem dar explicações.
Já tenho audácia para seguir os caminhos do coração.
E fi-lo. Foi um salto no abismo: de mim para ti.
Enfrentei-me com o hábito que visto por dentro... e é tão difícil despi-lo!
Era feliz e sou feliz.
Se também assim te sentires, a fasquia com que meço a altura dos meus saltos no desconhecido subirá mais alto.
Sei que a minha jornada não é comum.
Desde o começo. Assim, parecer-te-ão inusitadas muitas coisas, comummente achadas entre as pessoas que conheces, como a elas pareceriam inusitados os meus caminhos.
Falo-te sem sombra alguma.
Com a tal sinceridade “excessiva” que é a minha marca...
Penumbra... a única penumbra bela é a que recobre os picos da tua ilha.... o resto é sombra.
Ofusca a clareza.
Da clareza flui a amizade, a poesia, o pensamento que discorre e não tem como avançar no escuro.
Amo o sol, o céu, o mar!
Amo ser brisa e onda, não cais nem âncora.
“Gostas de ser tratado como um Paxá”... a minha vontade foi de te embalar no colo.
Mas não ousei, fiz-me ainda mais pequena, encolhida no meu canto.
Para não te perturbar o sossego.
Sem peias te falei, o mesmo esperava de ti.
Sem mais... peias.
Qualquer de nós tem imaginação para fazermos de David e Rainha de Sabá...
No conto falo do encanto.
Talvez se a realidade tivesse imitado a ficção... talvez o esperasses, desejasses. E seria bom.
Faltou-me um levíssimo impulso.
Acaso te apercebeste?
Acalanto sonhos de voo, sim!
Gostava de deslizar pelo ar, suspensa de um balão. Imagino que sobrevoo o oito infinitamente azul da Lagoa das Sete Cidades.
Gostava de saltar de pára-quedas, com uns óculos que me permitissem manter os olhos abertos, como quando mergulhava entre as algas, em Sesimbra.
Ou nadava sobre miríades de peixes, finos e prateados como agulhas, reluzindo sob o meu corpo suspenso, no sol que mergulhava, no mar que me sustinha.
Eu sei que gosto de um homem quando o admiro.
“a ocasião faz o ladrão”... se assim é, que o ladrão seja tão competente que me arrebate!
Agora poiso de novo os lábios sobre o teu rosto, atenta às distâncias.
Deixo cair de novo a ponta do sono sobre as pálpebras que encerram o fulgor dos teus olhos adormecidos.
Cubro-te de bênçãos e, no mesmo silêncio em que cheguei, parto. Ficando sempre contigo.


Maria Petronilho