quarta-feira, janeiro 06, 2010


O meu último livro de Poesia


Capa e ilustrações de H Mourato, prefácio de Joaquim Evónio

CorposEditora, 2009



segunda-feira, outubro 26, 2009

Passarito em Campo de Girassóis



Sentado num ramo, o passarito via o sol subir no céu.Ensaiara o canto da manhã, comera uns tricos-tricos e meditava feliz.

Pilm!


Arrepiou-se todo o passarito novito, que já se esquecera da chuva de primavera, quando nascera.


- Que será isto?!Encolheu-se, estremeceu e abanou-se todo, aliviando a tensão.


Olhou para o céu, mas nada viu!

Plim! Plim!


- Ai que morro afogado!Gritou do cimo do ramo enxuto, céu azul, sol subindo… Espanejou-se todo, incomodado e aflito.

- Passarada doida! Bêbados de néctar até esta hora!


Refilou, apesar do silêncio:


- Seus morcegos vadios!

Plim! Plim! Hihihihi!

Ai, era demais… Agitou as asas e levantou voo… Num ápice estava longe, sentadinho e quieto. Agora, com a calma, vinha-lhe o sono.Fechou os olhitos e assim esteve até que, de novo, sentiu


Plim!

De onde estava agora, alargava-se o horizonte.


Semi-serrou os olhos e virou a cabeça em todas as direcções.Um caule subia a pique, e lá de cima, sentiu:


Plim!

Pôs a cabeça de lado, indeciso.


- Céu azul, o sol subindo… que será isto?!

Deslizou o olhar para cima, seduzido pelo mistério.


No alto, uma melena amarela agitava-se contente e, de vez em quando, salpicos saltavam dela, que ria deliciada.

- Ó tu lá de cima! Chamou, ansioso por conhecê-la e ensaiando uma cantoria ensurdecedora.


A flor de melena amarela, mirou o pequenito, emproado que nem um peru do mato, e piscou-lhe o olho.


- Falas comigo, passarito dorminhoco?


- Dorminhoco, eu?!


Ora esta! Já tomara banho, cantara e comera, estava a tentar meditar enquanto o sol subia no azul do céu… e aquela cara de lua chama-lhe dorminhoco, a ele, um passarinho diligente e cumpridor?!

- Quem és tu, ó presunçosa?- Eu?! Sou o espelho do sol na terra, não vês?


O passarito, de olhos em fenda, viu uma cara redonda com a barba mal feita e uma enorme cabeleira amarela que nem gema, recortada, abanando com toda a força.- Sou um girassol, seu tolo, onde andas que não me conheces? Toda a gente me adoraaaa… E aos meus irmãos também!


Pequenino, pequenino, o passarito suspirou… Que grande injustiça me aconteceu!


- Que resmungas aí em baixo, ó bico fino?


- Estou farto de ser molhado, sua flor orelhuda! Não sabes tomar banho sem fazer bagunça?


Hihihihi… escangalhou-se em riso a flor.


- Pois não! O meu pé não sai daqui… é a noite quem me lava e é o sol quem me enxuga.


- Sortuda!…Desavergonhada e vaidosa! Ia dizendo consigo o passarito.

Farto de conversa, voou alto, muito alto, tanto quanto conseguiu.Ficou assombrado, planando por um momento:O que via eram milhares de melenas brilhantes, desafiando o sol e aspergindo gotas de água por todo o lado.Cansado, deixou-se levar pelo vento até uma árvore, num bosque bravio, onde se aninhou num ramo e, de novo, adormeceu.


Maria Petronilho




quarta-feira, setembro 24, 2008





    Travessura
    Era o tempo da Ditadura.
    Havia dois agentes reconhecidos da PIDE (polícia internacional para defesa do estado, treinada por agentes da Gestapo)... Um era o Bolas, outro o Cabide.
    O primeiro era professor de francês, enorme, passava os intervalos a devorar bolas de Berlim (bolos fritos)
    Um dia entrou numa aula do 4º ano, meninos que tinham soletrado o francês três anos a fio, e perguntou:
    - "Comment fait le burr?"... Queria informações acerca da voz do burro (âne)... toda a sala estremeceu de gargalhadas!
    O Cabide era contínuo.
    Um perseguidor implacável e mesquinho, esqueleto vivo donde pendiam as ombreiras do casaco assertoado.
    Um dia, em plena aula, em que se desfazia em mesuras diante da S'tora (era como tratávamos a professora, abreviando Senhora Doutora)... eu, nas carteiras da frente, enjoada com tais maneirismos, deitei-lhe a língua de fora.
    A S'tora viu!
    - Maria: Rua!
    Ai que baque no peito!
    Enfiei-me na casa de banho, ajoelhei-me a rezar até tocar a sirene, apavorada: Se tiver falta por mau comportamento o meu pai mata-me!
    Não tive falta.
    Já constava que eu tinha problemas em casa e, afinal, ninguém gostava do Cabide nem um bocadinho!
    Se calhar a S'tora também tinha vontade de lhe deitar a língua de fora!

quarta-feira, janeiro 23, 2008

Comedores de Flores








Comedores de Flores


Como em muito outros jardins, havia neste um jardineiro que era visceralmente inimigo de flores!

Pisava-as sem dó nem piedade, favorecendo antes as ervas daninhas, que prosperavam e medravam felizes, oprimindo e empurrando as flores que, por dever, deveria cultivar.

Tinha este jardineiro uma espécie de devoção a seu amo, um louco apreciador de coutadas onde pudesse caçar seres inocentes, que tratavam das suas vidinhas, dos seus territórios, da sua procriação e alimento.

O jardineiro vacilava entre o ciúme e a ambição!

Cortava as flores das principais hastes, impedindo que crescessem; não as regava; jamais adubava o solo, antes fazia queimadas a torto e a direito, destruindo as mais rasteiras, as sem espinhos, os amores-perfeitos, dálias, jasmins olorosos cujo perfume o enfastiava.

Odiava sobretudo os cravos e, dentre estes, destruía ferozmente os de cor vermelha, pois lhe lembravam não sei que tristes tempos da sua infância perdida.

Em vão choravam as margaridas e oravam as açucenas!

Colhendo-as sem cuidado, apresentava-as em vistosas coroas a seu amo louco, que nem tão pouco cuidava de as colocar numa jarra, deixando-as murchar no auge da sua beleza.

Claro que sem flores não há frutos e sem frutos não há sementes!

Bem se ralava o jardineiro!

Tivesse boas fardas para seu uso, tivesse bons ginetes para os seus passeios... afinal o emprego parecia ser efémero, o que viesse a seguir que replantasse, que se desenvencilhasse, que fizesse o que lhe aprouvesse... por essa altura já ele estaria fora; teria dado o pulo para um jardim mesmo seu, que comprara num paraíso distante!

sexta-feira, janeiro 11, 2008

O MENINO DE SUA MÃE





Chegou a casa com maus modos, para jantar.
Tirou do bolso um papel branco e atirou-o para a prateleira da estante.
Olhei-o interrogativamente. Desviou os olhos de mim e, saindo da sala, disse:
- Estás grávida, estás!
O meu coração disparou, batendo muito depressa.
Angústia. Medo. Perante a ameaça e a raiva daquela frase dita entre dentes.
Ele saíra da sala sem mais uma palavra.
Eu fiquei presa ao sofá, em frente do aparelho oco da TV.
Os maus modos dele diziam:
- Só faltava estares grávida!
Como se fora algo que eu fizera sozinha!
Comeu e saiu.
- Vou trabalhar! – Era por essa altura a frase com que se despedia quando ia ter com a tal “menina”...
Tratei da minha filha, com três anos e meio, deitei-a na sua caminha branca de grades.
Fiquei muito tempo junto dela, até que adormecesse, pois saíra do nosso quarto havia pouco tempo, onde, descida a grade, sempre dormira com a sua caminha encostada a mim, atenta, afagando-a se se agitava, tapando-a se se descobria.
O pai habituara-a a dormir de luz acesa.
Conversei muito com ela, contei-lhe uma história, afagando suavemente os seus caracóis loiros de bebé.
Quando os olhinhos se lhe fecharam, a mão agarrando a minha, fiquei ali ainda, pensando junto dela na sobressaltada alegria que sentira ao ler no papel vindo da farmácia aonde levara uma amostra de urina:
- Positivo!
Exactamente a mesma palavra, num papel semelhante, estava escrita naquele outro, que o pai atirara sobre o móvel da sala, irritado, impaciente, indiferente ao filho que semeara e crescia no meu ventre.
Pus-me a olhá-la bem, à minha menina: recordei todos os seus momentos: o seu primeiro olhar, o seu primeiro sorriso, os seus primeiros passinhos... lágrimas de alegria desciam-me pelo rosto: em breve repetir-se-ia o milagre da vida que despertara e vivia, ainda silenciosamente, no aconchego de mim, se alimentava do meu sangue; era uno e indiviso comigo... Devagarinho, o amor por esse filho descoberto tomou conta do meu coração!
Deitei-me. Não sei quando o meu marido voltou: havia tanto tempo que só chegava de madrugada, cansara-me de o esperar, sequer de me afligir.
Ao outro dia, cumprida a rotina matinal das mães que têm muitas missões a cumprir antes de iniciarem as suas oito horas de trabalho numa cidade e deixarem os seus filhos entregues aos cuidados de uma pessoa longe, entrei no autocarro apinhado, corri para a fila do barco, segui no aperto de milhares de outros que vão de manhã para o trabalho de olhos mortiços, cumprido o destino de animais que vão para o matadouro e regressam à noite, exaustos e partidos, afim de recomeçarem as tarefas adiadas.
Da outra vez tinha dito às minhas colegas que estava grávida, tínhamo-nos congratulado juntas... desta, algo me fez calar o despontar da alegria, uma incerteza indefinida, algo aparentemente inexplicável: a ameaça pairava como um cutelo afiado no brilho frio dos olhos do pai dos meus filhos.
Quando chegou para jantar, resmungou:
- Agora tens de te livrar disso, já sabes!
O meu coração apertou-se. Senti-me reduzida a nada, tremendo. A minha boca não se abriu, toda eu me concentrava no que acontecia dentro da minha barriga.
Ele foi “trabalhar”, como de costume.
Cumprida a lida da casa, deitada a filha no berço, encolhi-me na beirinha do colchão, sem me mexer, as lágrimas enfim soltas.
Ah a dor indizível da impotência que nos consome, sem remissão, sem nada nem ninguém que nos escute!
Na noite seguinte, trouxe uma caixa pequena, redonda, anónima e branca.
- Isto vai resolver tudo. Toma!
Trouxe um copo de água e ficou ali, de pé, verificando se eu engolia os comprimidos todos.
Poderia ser qualquer veneno. Obedeci sem proferir palavra.
Na minha roupa, nem uma mancha vermelha.
Portanto, repetiu-se a cena, a dose, fornecida por um farmacêutico cúmplice dele, amigo de farra, confidente e conivente. Todos os dias, nova caixinha branca redonda, de plástico, sem dizeres, fechada com fita gomada, cheia de veneno a tomar obrigatoriamente à sua vista.
-Toma isto. Amanhã vem-te o período de certeza!
Engolia as lágrimas, os protestos e as drogas.
O filho tinha o nome de “menstruação atrasada”. Entre as mulheres que conhecia e com quem trabalhava esse problema era falado com tal frequência que se banalizara.
Resolviam-se “os atrasos” tomando certos remédios, secretos, miraculosos.
Não lhes chamavam abortos, mas provocar o aparecimento da menstruação que se atrasara...
Na minha estúpida inocência, numa sociedade hipócrita onde não se mencionavam assuntos tabu, nem a palavra aborto, nem a sexualidade era considerada... como se os filhos aparecessem do nada, trazidos no bico da cegonha, nada se discutia, não havia a quem colocar dúvidas, as questões permaneciam camufladas atrás da máscara opaca das “famílias respeitáveis”, aonde não aconteciam “certas coisas”
As senhoras respeitáveis, entre as quais trabalhava e me movia, que me falavam muito bem, me metiam no coração, me demonstravam estima e respeito... sabiam porém muito mais que eu: sabiam da vida dupla de meu marido mas... cala-te boca!
Eu tinha medo. Não tinha ninguém. Tudo se passava na solidão das quatro paredes.
Estava tão fragilizada, vulnerável, insegura!
Acreditava ainda que o homem que amava, porque ainda o amava, deveria ser o meu único confidente, confiava nele, muito embora a sua frieza me assustasse.
Me repugnasse a sua ambição sem escrúpulos; o calculismo com que ia ganhando terreno nos negócios... enquanto eu sustentava a casa, porque seria normal, uma vez que fazia as compras, pagá-las com o dinheiro do meu salário.
Tudo fazia para não o contrariar. Obedecia-lhe como uma cega, tentava não o desagradar nem nos pormenores. Colocava-me a mim mesma em último plano. Anulava-me pelo bem-estar das duas únicas pessoas que tinha por minhas, às quais dedicava a vida: meu marido e minha filha, o conforto da casa, o desempenho profissional, as coisas prontas a horas certas, tudo deslizando como se rodinhas bem oleadas e invisíveis tudo arranjassem: a máquina invisível era eu, o óleo mágico que tudo fazia deslizar sem se perceber era o meu empenho e esforço.
Aos domingos, costumávamos visitar o meu padrinho de casamento, fino e sabido, que enfim decidira assentar junto de uma mulher ainda mais fina e sabida que ele:
Minavam aos poucos os restos do resto da minha família, insidiosamente.
O meu marido contou-lhes ao serão, com a maior naturalidade o “meu caso”... Eles foram unânimes e enfáticos em dizer que tinha de resolver “isso” depressa, pois ele agora não queria problemas... e que isso era fácil, banal, toda a gente o fazia...
Voltei mais animada.
Vínhamos sempre muito tarde e a minha filha deitava-se no banco traseiro do carro e adormecia.
Eu tirava-a com cuidado, embora já fosse muito pesada. Trazia-a aconchegada contra o peito, despia-lhe a roupinha e vestia-lhe o pijama sem que ela despertasse. Deitava-a e dava-lhe um biberão de papa-láctea, que ela engolia, tranquilamente, dormindo.
Tinha “muita prática e jeito”, dizia o pai dela.
Mas naquela noite despertou e viemos palrando até chegarmos à porta. Sentia-me aliviada e tão feliz!
Feliz porque a minha filhinha não seria, como eu, uma triste filha única, sem ninguém no mundo que a amparasse.
Sempre desejara ter dois filhos e tinha-os! Um ao colo, outro crescendo suavemente, aconchegadinho dentro de mim.
Enquanto o pai procurava as chaves, eu e a menina brincámos: num impulso, rodopiámos juntas, eu com ela nos meus braços, rindo em coro!
Toldou-se-me a vista e caímos no chão de mármore da entrada. Não nos magoámos, apenas me assustei por ela e pelo bebé pequenino. Consolei-a, subimos, tratei dela e deitei-a.
Nada se sangue na minha roupa... suspirei de alívio!
Quando ficara grávida da menina tivera sintomas de aborto durante muito tempo, fora uma gravidez sobressaltada, sempre no risco de perdê-la. Tinha muito medo que tal se repetisse.
Os medicamentos vinham todas as noites, obrigatoriamente.
Até que foi como se despertasse de um sonho estúpido.
Pensei: meu Deus! Quando estamos grávidas todos os medicamentos são perigosos; nem aspirina tomava receando prejudicar o bebé que trazia no ventre... e agora, que venenos estaria este pequenino recebendo através do meu sangue?
E se o meu filho nascesse deficiente?
Oh angústia suprema!
Oh dor cega! Oh tormento da culpa pela minha cegueira!
Como chegara a tal ponto, eu?!
Como deixara que me toldassem o espírito?!
O meu marido tinha preparado a marinada e ia cozer-me nela: atingira o seu fim.
Vendo-me chorar, porque sempre a morte estivera à minha cabeceira e eu crescera ao abandono, não tendo a quem entregar os meus filhos se algo me acontecesse... que seria do meu filho se caso ficasse só no mundo, não pudesse valer-se?!
Era a oportunidade que ele esperava: insidioso como uma serpente, achando preparado o terreno, disse na sua voz melosa e falsa:
- Agora já nada há a fazer. Tens de ir a uma parteira. Levo-te lá amanhã.
Com a morte na alma, sozinha, pensava... e quanto mais pensava mais negro via: o bebé estaria deformado? O bebé sofreria? Até que ponto o seu sistema nervoso estaria já formado?
Como sentiria a morte, o meu filho?
Teria oito ou nove semanas... idade crucial. Que seria de nós?
Oh meu Deus, vão tirar-me o meu filho!
No dia seguinte, de manhã, fomos a uma vivenda com dois pisos, algures, nos arredores da cidade.
Veio uma mulher receber-nos. Olhou-me com olhinhos de víbora: muito nova, assim como o meu companheiro: íamos desmanchar algum arranjinho, pensou a sanguessuga.
Entrei sozinha, ele foi para o carro ouvir música.
Era uma sala fria, com um sofá à esquerda e cadeiras de espaldar direito a toda a volta.
No meio da sala, uma mesa de vido, nua.
Sentadas nas cadeiras, três mulheres, que não levantaram os olhos do chão.
- Senta-te aqui um bocadinho. Não demora muito.
Atrevi-me a olhar de relance as outras e elas a mim, mas desviámos rapidamente os olhos.
Ninguém disse palavra. Rostos tristes, desanimados, mais frios que o frio que fazia. Ali permanecia um frio de arrepiar.
Sentia-se no ar a culpa. O peso da dor. O medo: o cheiro do éter.
Uma casa de morte; uma casa destinada a matar inocentes na impunidade escondida.

Só quem nunca lá esteve fala à boca rota... quem lá esteve cala-se e tenta esquecer o horror.
As mulheres foram entrando, uma a uma. Passada cerca de meia hora, voltava uma e entrava a que se lhe seguia. Realmente, tudo se passava num instante.
A minha vez chegou. O meu coração encolhia-se, como o de um passarinho apanhado.
Tinha medo. Uma incomensurável pena. Sentia um fardo pesadíssimo: ou nasce deficiente ou morre, pensava. Se nascer defeituoso seremos infelizes para sempre.
Subi para a marquesa suja. Pelo chão imundo, aparelhos cirúrgicos esquisitos. Havia, atirado para um canto, um molho de tubos, que lembravam um aparelho de ordenha, mais pequeno que aqueles com se tira o leite.
No quarto pequeno, duas damas autoritárias e secas. Estava tudo muito sujo e cheirava a éter, a sangue, a suor requentado.
Iam usar o método de aspiração, que estava na moda.
Perguntaram-me que tipo de anestesia queria: geral ou parcial. Disse-lhes do meu problema de coração.
- Nesse caso não te damos nenhuma, não vamos arriscar-nos a que nos morras aqui na marquesa!
- Afasta os joelhos, dobra-os, abra as pernas e descontrai-te.
- Respira fundo.
Uma dor lancinante rasgava-me o ventre. Tinha tanto frio!
Iam-me perguntando se era a primeira vez. Ficaram muito espantadas quando lhes disse que tinha uma filha de três anos e meio, que era casada e que o meu marido me esperava no carro.
Tremia de dor e de frio.
Num rasgo de benevolência, deitaram-me o meu casaco sobre a parte superior do corpo.
Não havia lençol, nem pudor, muito menos um cobertorzito.
As dores eram terríveis. Não pude impedir-me de gemer alto.
Ao fim de algum tempo senti um líquido morno molhar-me as pernas; senti o aspirador dentro de mim.
- Este estava bem agarrado! Riu-se a parteira.
Meu querido filho, que assim se ia!
Limparam-me com uma toalha turca e ajudaram-me a descer da marquesa.
Toda eu era dor, sentia o ventre em chaga viva.
Deram-me um calmante e deixaram que me deitasse um pouco, no tal sofá da sala de entrada, com o meu casaco por cima.
Já havia outras mulheres tristes na sala, mas mal as vi.
Só queria encolher-me em posição fetal e que me esquecesse ali!
Caí numa sonolência atordoada. Pedi que me mostrassem o que tinham sugado de mim.
Trouxeram um frasco dos de Tofina, cheio de água com uns fiapos de sangue a flutuar lá dentro.
Estendi a mão: estava frio, não era o meu.
- Acha que ele sentiu alguma coisa? Perguntei numa voz entaramelada.
- Se soubesse que estavas de tão pouco tempo, não to fazia!
- Se fosse de mais tempo, não fazia, não! Garanto-lhe que não! Só espero que não tenha sofrido muito!
Olhou-me como se eu estivesse doida:
- Um desmancho é um trabalho e um feto é uma colher de sangue coagulado!
Passados uns minutos, obrigaram-me a levantar do sofá e arrastaram-me até à porta da rua.
Lá fora estava o meu marido. Falavam em dinheiro. Eu estava com muitas dores e muito confusa, mal me aguentava de pé.
- Então, não tens aí cinco contos para pagar isto? – Perguntou o meu esposo, assassino.
De repente, fiquei lúcida, chocada, ofendida. Tinha feito aquela pergunta num tom desprendido, indiferente, como se eu fosse uma prostituta a quem ele dera boleia.
Respondi que nem carteira trazia.
Ele pagou e amparou-me de má vontade até ao carro. Fui entrando devagarinho, gemendo. Sentei-me no banco, encostei-me, respirei fundo.
A maldição dele tinha-se consumado! Já nada havia a fazer.
O meu filho estava morto. O meu filho estava morto. O meu filho estava morto....Com esta frase a latejar-me na cabeça, nem dei pelo caminho.
Chegada a casa, deitei-me no sofá da sala para recuperar um pouco.
Ele saiu, foi para o trabalho.
Eu perdera um filho, sofria, perdia sangue, chorava.
Ele vencera: custara-lhe cinco contos e perdera, do seu tempo, uma manhã.
Aos poucos, agarrada às paredes, lá me arrastei para a cama.
Estive toda a tarde sonolenta, as lágrimas corriam-me pela cara abaixo.
O penso estava encharcado de sangue e eu sem forças para ir buscar outro.
Muito quieta, as pernas muito unidas, dobrada como um feto, sofria e chorava alto: Mataram o meu filho! Mataram o meu filho e eu, estúpida, deixei!
... Mas se nascesse deficiente, que seria dele, quando crescesse e eu lhe faltasse?
Oh, porque mataram o meu bebé?!
À tardinha, não havia jantar... ralhos e ameaças. Desta vez foi ele que cuidou da menina e a deitou.
Saiu de novo.
No meu emprego, dei parte de doente.
Ao segundo dia, arrastei-me até à sala, deitei-me no sofá.
A minha filha passava os dias na ama, não sei se esta sabia se não.
Não contei a ninguém.
Chorei dias e dias seguidos. Sentia-me molhada e vazia. Sentia-me de luto.
Sentia muitas dores, mas sobretudo sentia a perda do meu filho.
Tive febre. Fui à minha ginecologista, minha amiga, que viu e nada comentou.
Tratou-me da infecção e fingiu aceitar uma desculpa esfarrapada, até que eu estivesse preparada para desabafar com ela.
O meu ventre curou-se pouco a pouco, a minha alma há-de doer sempre!
Carreguei esta minha dor sozinha, por quinze anos, a chorar todas as noites.
Por fim coloquei este defunto bem à minha frente, despedi-me dele e coloquei-o com carinho ao lado dos outros, que guardo num lugar da alma, pois não consigo enterrá-los.



Maria Petronilho

domingo, fevereiro 25, 2007


Por um Triz


Ela sabia-o em perigo.Urgia avisá-lo. Tímida, hesitava, a agenda tremendo nas mãos.Com os olhos cheios de lágrimas e o coração saltando do peito, tomou coragem e ligou o número do telefone móvel.Passara a ser acessório: Mesmo nas conferências e espectáculos, de quando em vez um som fulgia e logo se apagava num sussurro.Ouviu o som de chamada longa, longamente …. Depois um dedo enfadado calara o inoportuno.

Sinal monótono:- Fim!



23/11/2006
Maria Petronilho




segunda-feira, fevereiro 27, 2006


Tempo de Escuridão



Na escola primária, onde perdi 4 anos de vida (eu sabia ler e escrever, sequer andava em classe certa: sentava-me onde calhava).
Aí, onde os meninos iam descalços e quase nus sobre a neve, as professoras ficavam furiosas de ser colocadas... e descarregavam toda a raiva sobre nós, pobres crianças: réguada que se escutava à distância ao estalar sobre as mãos enregeladas... que, saindo da escola, ainda tinham de ir trabalhar.
O alimento: pão com azeitonas.
Na casa das minhas avós tudo se fazia: eram economias medievais de auto-subsistência, portanto comida nunca faltava.
Mas faltava amor e cuidado.
Era como se eu não existisse: se aparecia, comia; se não aparecia não comia.
Quem se importava se eu dormia ou me levantava, se estava doente ou triste?!
Nunca na vida alguém foi à minha escola (falo de 11 anos em que andei na escola, até concluir o liceu)
Cheguei no primeiro dia, sentei-me na carteira da frente com um sorriso de orelha a orelha, escrevi os meus cinco nomes na capa do caderno, e fiz pose (como via nas figuras) declarando:
- É assim que se está na escola!
... Ora eu nunca tinha convivido com outras crianças, nem sabia brincar como elas.
Recortava bonecos de papel e fazia teatrinhos, onde contava a mim mesma muitas histórias.
Como andava de casa em casa, nunca tendo poiso certo, ora na cidade ora no campo, captava coisas daqui e dali... inventava cantigas e brincadeiras.
As outras meninas (meninos do outro lado de um muro alto) tinham pais, muitos irmãos, brincavam de imitá-los...
Eu, a quem chamavam "a orfã", era diferente... apanhava pancada de todos: das colegas, em casa, da professora...
Nem falo, depois, do meu pai psicótico e da minha madrasta!
Perdi muitas coisas, mas salvei algumas: escrevia poemas "para guardar" em cadernos que forrava de plástico; escrevi "a minha história" sei lá quantas vees... mas perdi os cadernos do liceu, onde tinha lindas redacções, que passavam em todas as turmas - tenho pena.
Por exemplo: "A Sinfonia da Vida" é uma redacção antiga.
Também tenho pena dos livros escolares... se faltava espaço, as minhas coisas eram deitadas no lixo.
Naquele tempo ninguém se importava com os sentimentos das crianças... era um tempo muito cruel, para todos: tempo de fome, de prisão e tortura, se vires filmes de como vivíamos julgarás que estás a ver a reconstuição de um tempo centenas de anos antes do século vinte.