segunda-feira, maio 10, 2004


Voo!
Como um pássaro que sobe cada vez mais alto e vê cada vez mais longe.
Sou da geração de mudança em que, na negrura mais funda lutou, contra tantos reveses, riscos, infortúnios... por um dealbar que hoje se comemora:
Passámos da mais antiga Ditadura da Europa, à Democracia.
Fomos o último vergonhoso Império que nos consumia enquanto Povo mas cujo manto inglório e ruço atirámos ao chão!
Como não falar da História em que participei, nesta data em que se comemoram trinta anos de Liberdade no meu país?!
Saudades de outrora... não tenho.
Vivo de esperança e de luta.


Maria Petronilho

terça-feira, abril 06, 2004


Natália Correia - à frente do seu tempo...





Nasceu a 13 de Setembro de 1913, saiu da ingrata vida a 16 de Março de 1993

“Será preciso passar uma década sobre a minha morte para começarem a compreender o que escrevi.
Sei-o porque o sinto.
E vai ser a partir dos Açores que isso acontecerá”

Natália Correia nasceu adiantada no tempo, para o anunciar, antecipar.
Poetisa, dramaturga, romancista,, ensaísta, deputada, editora, pintora, tradutora, marcou a vida portuguesa, abalou os pés de barro dos deuses que atabafavam a cultura portuguesa.
Concebia, à semelhança de Teixeira de Pascoaes, “ a poesia como uma profecia” e o “poeta como um profeta”
Na sua obra, celebra o ser humano como “andrógino” (recordemos o vocábulo que inventou, “Mátria”); o ser completo; uno e plural.
O Desejado, o que contém a esperança e a resistência.
Pedro e Inês, símbolos da paixão, da volúpia pela morte.
Da Ilha, espaço do sagrado, da esfinge, da iniciação.
Bate-se pela recuperação do excelso, do politeísmo, do feminismo, do barroco, do diferente e pelo repúdio da crucificação, da massificação, do descontrolo demográfico... numa terra onde se morria de fome.

“Como atingir a paz com os olhos postos num só deus, se as guerras são fornecidas pela nossa fé na vitória sobre a fé dos outros?”, interrogava, interrogava-se.

A participação política foi-lhe, desde muito cedo, uma constante.
Introduzida nos círculos da Oposição (fase em que foi jornalista), depressa se destacou na luta contra a Ditadura, apoiando as campanhas de Norton de Matos e de Humberto Delgado.
Após a Revolução dos Cravos, aceita ser deputada independente.

“Fui deputada porque me pediram para introduzir o discurso cultural no Parlamento”

Utilizando como ninguém a riquíssima tradição cultural de escárnio e maldizer da nossa poesia.

As causas, as pessoas do coração e do sonho, da fé, tinham-na do seu lado; as causas, as pessoas da manipulação, do utilitarismo, da serventia, conheciam-lhe a cólera, o chiste, a indignação... que fazia penetrar com mestria e elegância
.
“Não me mato
Antes me zango
Até ficar um cato
Quem me tocar, maldito
Que se pique”

Glória te seja dada, Natália Correia, agora e sempre... enfim!


Maria Petronilho

Jacques BREL (1929-1978)





JACQUES BRELL?
Un cri.
UM GRITO.
Une déchirure.
ALGO QUE SE RASGA.
Une désespérance optimiste.
UMA DESESPERANÇA OPTIMISTA.
Une fraternité douloureuse.
UMA FRATERNIDADE DOLOROSA.
Un écorché vif.
UM APRISIONADO VIVO
Un rebelle tendre .
UM REBELDE TERNO








Né à Bruxelles dans une famille d'industriels, Jacques Brel
NASCIDO EM BRUXELAS NUMA FAMÍLIA DE INDUSTRIAIS, JACQUES BRELL
s'intéresse très tôt à la chanson et vient à
INTERESSA-SE MUITO CEDO PELA CANÇÃO E VAI PARA PARIS EM 1953.
Paris en 1953. Il débute au théâtre des Trois-Baudets,
ESTREIA-SE NO TEATRO TROIS-BAUDETS.
enregistre quelques disques, mais reste pratiquement inconnu
GRAVA ALGUNS DISCOS, MAS CONTINUA PRÁTICAMENTE DESCONHECIDO
jusqu'en 1957.
ATÉ 1957.
Le succès de Quand on n'a que l'amour lui assure alors un certain
O SUCESSO DE QUANDO NÃO SE TEM SENÃO UM AMOR ASSEGURA-LHE ENTÃO UM CERTO
public, d'une coloration catholique qui se retrouve dans les grandes
PÚBLICO, DE UMA COLORAÇÃO CATÓLICA QUE SE ENCONTRA NAS GRANDES
tendances de ses chansons : l'amitié, la fraternité...
TENDÊNCIAS DAS SUAS CANÇÕES: A AMIZADE, A FRATERNIDADE...
Il va peu à peu prendre ses distances par rapport à
VAI AOS POUCOS MARCANDO AS SUAS DISTÂNCIAS EM RELAÇÃO
cette inspiration première;
A ESTA PRIMEIRA INSPIRAÇÃO;
s'il reste fidèle au thème de l'amitié (Jef), il
SE CONTINUA FIEL AO TEMA DA AMIZADE (JEF),
passe lentement d'un amour idéalisé à une solide misogynie
PASSA LENTAMENTE DE UM AMOR IDEALIZADO A UMA SÓLIDA MISOGENIA
(Les Biches), du déisme à l'anticléricalisme
(AS BICHAS), DO DEÍSMO AO ANTI CLERICALISMO
(Les Bigotes, À mon dernier repas) et d'une certaine
(AS HÓSTIAS, NA MINHA ÚLTIMA REFEIÇÃO) E DE UMA CERTA
à un anticonformisme qui ira croissant (Les
MORDACIDADE A UM ANTI CONFORMISMO QUE IRÁ CRESCENDO
Bourgeois, Le Moribond). De grands succès jalonnent sa
(OS BURGUESES, O MORIBUNDO). GRANDES SUCESSOS COROAM A SUA CARREIRA:
carrière : La Valse à mille temps (1959), Les Bourgeois
A VALSA A MIL TEMPOS (1959), OS BURGUESES (1961),

(1961), Amsterdam (1965).
AMESTERDAM (1965).


Son oeuvre, qui ne se distingue pas particulièrement
A SUA OBRA NÃO SE DESTINGUE PARTICULARMENTE PELA BUSCA MELÓDICA,
par la recherche mélodique, brille surtout par une science
BRILHA SOBRETUDO PELA CIÊNCIA DO TEXTO E DO JOGO DE PALAVRAS
du texte et du jeu de mots qui fonctionne essentiellement
QUE FUNCIONA ESSENCIALMENTE
sur le principe des oppositions binaires
SOBRE O PRINCÍPIO DAS OPOSIÇÕES BINÁRIAS
(le noir et le blanc, les paires minimales approximatives)
(O NEGRO E O BRANCO, OS PARES MINIMALISTAS APROXIMATIVOS)
et sur une certaine prédilection pour le néologisme.
E SOBRE UMA CERTA PREDILECÇÃO PELO NEOLOGISMO.
Mais c'est sur scène que Brel frappe surtout, apportant
MAS É EM CENA QUE BRELL ARREBATA SOBRETUDO, TRAZENDO
à ses chansons une nouvelle dimension,
ÀS SUAS CANÇÕES UMA NOVA DIMENSÃO,
gestuelle, grâce à un travail d'expression très
GESTUAL, GRAÇAS A UM TRABALHO DE EXPRESSÃO
minutieusement préparé.
MINUCIOSAMENTE PREPARADO.


Jacques Brel a quitté la scène en 1967, après avoir
jACQUES BRELL DEIXOU A CENA EM 1967, DEPOIS DE TER INTREPRETADO
interprété une comédie musicale (L'Homme de
UMA COMÉDIA MUSICAL (O HOMEM DE LA MANCHA),
la Mancha), pour se consacrer au cinéma.
PARA SE CONSAGRAR AO CINEMA.
Il continue cependant à enregistrer ou à réenregistrer
CONTINUA ENTRETANTO A GRAVAR OU A REGRAVAR
des chansons (Vesoul, 1968 ; L'Enfance, 1973).
CANÇÕES (VESÚVIO, 1968; A INFÂNCIA, 1973).


Après quatre ans de «retraite» aux îles Marquises, il enregistre
APÓS QUATRO ANOS "EM RETIRO" NAS ILHAS MARQUISES, GRAVA
en 1977 un album qui rassemble tous les thèmes de son oeuvre :
EM 1977 UM ÁLBUM QUE REUNE TODOS OS TEMAS DA SUA OBRA
l'amitié (Jojo), la misogynie (Les Remparts de Varsovie, Le
A AMIIZADE, A MISOGENIA, A MORTE E A GENEROSIDADE.
Lion), la mort (Vieillir) et la générosité
(Jaurès).

Jacques Brel a mené parallèlement une carrière d'acteur
JACQUES BRELL LEVOU PARALELAMENTE UMA CARREIRA DE ACTOR.
(Mon Oncle Benjamin, de Molinaro; Les Risques du métier, de Cayatte) et
de réalisateur (Franz, 1972).



(Biographie de «L'Encyclopedia Universalis»)
BIOGRAFIA DA "ENCICLOPÉDIA UNIVERSALIS", QUE ENCONTREI NO ENDEREÇO http://membres.lycos.fr/herweb/brel0.htm
E TRADUZI LIVREMENTE, NUM REPENTE, SEM DICIONÁRIO, QUE NUNCA TIVE...
MAS COM A MINHA ALMA, SENSIBILIDADE E CARINHO


Maria Petronilho

"NENHUM SER IMENSO É SIMPLES"
(homenagem a Frida Kalo)




Falar de Frida Kalo é revelar a complexidade da alma feminina, tantas vezes oculta, porém exposta por esta mulher de uma força, tenacidade, poder imensos. Percorrer a sua vida e a sua obra é como olhar-se num duplo espelho: no espelho de seu interior que insistentemente nos mostra; olhar-se no espelho de mistério que habita ocultamente cada mulher, porém só ousa desvendar uma grande alma.

Frida sofreu desde cedo a sina do sofrimento. Aos seis anos a poliomielite deixa-a com uma perna definhada. Aos dezanove um terrível acidente ferroviário arruina para sempre a sua saúde. Mas muito mais pode a mente de uma mulher de vontade férrea!

Apaixonada, casa com o pintor Diego Rivera, famoso e com o dobro da sua idade. Em alguns dos seus quadros mostra o amor obsessivo que por ele nutria; perdoando-lhe infedelidades, levando-a ao divórcio e a recidivo casamento meses mais tarde. Pensa nele constantemente; dimui-se perante o seu talento: observe-se o quadro “Frida Kahlo y Diego Rivera”, 1931, ele enorme, de grandes pés bem assentes na terra e ela como que uma menina de mão dada, flutuante a seu lado... porém no amor feminino há sempre algo de materno, um amor telúrico que abrange tudo. quem nos deu o ser e o ser que damos: patentes no quadro El abrazo de amor de El universo, la tierra (México), Yo, Diego y el señor Xólotl, 1949.

Frida autoretratou-se em todas as fases da sua vida, mesmo aquelas que apenas pode adivinhar: o seu nascimento; o aleitamento pela sua ama - porque nada a podia impedir de se doar, mostrando, como ela dizia quem conhecia melhor - Frida ela-mesma.

Dualidade de mulher,Las dos Fridas, 1939, assume o seu consciente e os assomos do inconsciente na sua pintura Lo que vi en el agua o Lo que el agua me dio, 1938 -não, não lhe chamassem surrealismo, "eu pinto a minha realidade", e com que frontalidade o fazia! Com a mesma com que assumidamente se declarava uma mulher sensual Yo y mis pericos, 1941 Autorretrato con monos, 1943, porém enferma de solidão Autorretrato con mono, 1938, rebelando-se contra tal Autorretrato con pelo cortado, 1940. -qual a fêmea que rejeita os seus instintos senão a que deixa reprimir-se.

Frieda deixar-se reprimir?! Nunca! Por nada! Nem o mais voraz sofrimento, as sucessivas cirurgias cujo sofrimento físico também não dissimula, antes pungentemente revela. Como se dissesse: sou uma mulher por inteiro, sim: sofro e amo; quero ser mãe e assumo ser mulher, de cabeça bem erguida!

Esta pintora mexicana é mais que um exemplo, é um símbolo de força e persistência. É alguém que desentranhou o seu âmago e o mostrou destemidamente ao mundo. A vida deixou-a liberta e a nós o sonho de nos tornarmos mais fortes; guiando os nossos instintos com inteligência; as nossas emoções sem vergonha.

Viva Frida Kahlo Mulher, Atitude e Exemplo!


Maria Petronilho

Sobre a Obra Poética de Gustavo Dourado



Lucidez.
A clareza explícita em aparentes meandros.
As palavras abrem e expõem as ideias que ocultavam - que o-cultavam?
Também a clara luz se decompões nas sete cores do arco íris e de novo o prisma as reúne na única e primeira branca luz.
Gustavo Dourado tem o poder de desencantar ternura na angústia.
Gusta.vo d.oura.do: Em tudo encontro o poeta definido:Inevitável amor, transparente e precioso; nu; vestido de subtil claridade.
De um lírico som, imagem = pureza. Em cada ponto; em cada letra ... respira poesia e é ar que se respira.
Fonte que flui; água de beber e sede viva. Entendê-lo é como olhar o sol e sentir o calor, os pingos da chuva.
Escutar o mar e sentir o berço.
As estações e rotações.
Os universos tocando-se humana e divinamente – nada os separa.
O entendimento sobrepõe-se.

Escutar o mar e sentir o berço.
A Voz soando no bate-que-bate do coração!


Maria Petronilho

"Louredo"




Naquele tempo não havia em Monsanto qualquer estrada, a não ser as deixadas pelos romanos, de lajes negras e lisinhas de tão gastas, que permaneciam pregadas no chão desde há centos e centos de anos.
O Louredo era uma casa isolada no sopé do “monte-Santo” .
Ao redor, apenas as dependências devidas a uma casa de lavoura: palheiros, cabanal, casa do forno, e bancadas de cantaria monolíticas, imensas, ao livre.
Terreiro, sobreiras esparsas e vários muros de pedra solta.
A casa de grossas paredes negras, tinha dois pisos e balcão alto, sem amparo.
No andar térreo, as lojas, onde se guardavam os potes de barro com os mantimentos: azeite, azeitona, enchidos, salgadeiras, tábuas de queijos, arcas com os cereais de moinho. Os frutos secos ao sol sobre esteiras no Outono.
No piso superior, a cozinha de chaminé, o largo lar, fumeiro estendido por cima durante o Inverno, a sala e os pequenos quartos de tradição, com cortinas.
A rodear o rectângulo da porta e das janelas, uma tarja de tinta azul, da mesma cor da porta de trinco, que nunca se fechava à chave.
Dos lados da janela maior, incrustados na parede, dois aros de ferro ostentavam craveiros de viçosos cravos rubros, pendentes, odoríferos.
Entre o lado norte e o palheiro, de duas divisões, a primeira para guardar o feno, a segunda os animais: burras, cabras e galinhas, um bosque inusitado e inacessível de esplendorosas mimosas sensitivas, como que a desafiar-nos, pois a porta que dava acesso a esse jardim dourado, estava apenas disponível no fim da primavera, quando as reservas de feno chegavam ao termo e se armazenava nova colheita.
Um pouco adiante, as furdas dos preciosos suínos, esterqueira para fermentação do estrume, e duas cancelas: a de ferro, para o caminho que dava acesso à fonte e por onde passavam os animais e os carros de bois e outra de madeira, mais estreita, mesmo ao pé da porta, por onde se ia para a horta, o tanque, o poço da nora.
Muitas árvores de variadas espécies.
Flores plantadas a esmo, crescendo de forma quase miraculosa.
A leira dos morangos, com a cameleira ao centro.
E, à direita, algo que maravilhava: era uma árvore de sombra, folha muito recortada, que na primavera dava resplandecentes cachos de flores brancas, as quais eram apanhadas, laboriosamente separadas as pétalas, e fritas em pastéis dos mais deliciosos que imaginar-se possa!
Depois da horta, a vinha.
As árvores eram escolhidas de forma a produzir fruta todo o ano: havia figos de Inverno, cor de romã por dentro e maçãs crespas, enormes, que supostamente deveriam ser consumidas no Inverno, mas eram sempre intragáveis.
A romãzeira, de enormes flores escarlates, era a minha paixão.
E as pétalas das flores dos marmeleiros, uma delícia ... degustavam-se às escondidas.
Com os diospiros, havia que ter cautela!
Ou deixavam a língua carraspana ou a gente se lambuzava irremediavelmente de doçura amarela, que acabaria por nos valer uma sova!
Tinha um grande desgosto a minha avó: por causa das geadas e nevões, queimavam-se-lhe todas as amendoeiras que, persistentemente, plantava.
Ora reza a lenda que tais árvores foram trazidas por um mouro do sul enamorado por uma donzela nórdica que definhava saudosa da alvura a que estava habituada na sua terra....

Costume de Natal: "O Beijar do Menino"


O fim de Novembro era ainda tempo de azáfama. No alambique de cobre, cujo bojo reluzente assentava na fornalha, o bagaço de uva cozia interminavelmente. Do cano, que atravessava um comprido tanque de alvenaria, caía pingo a pingo, do outro lado, a água-ardente.
Provavam e faziam caretas, aventavam os restos dos copos, até que o pingo se transformava em fio e o líquido era recolhido num funil de zinco enfiado no gargalo dos garrafões empalhados pela paciência do António Figueiredo.
As bilhas do azeite chegavam da Vila, no dorso dos burros, que inteligentemente escolhiam com os cascos um caminho por entre as pedras que resvalavam ladeira abaixo.
Na loja, media-se e guardava-se em talhas de barro, parecidas na minha imaginação, àquelas aonde se escondiam os quarenta ladrões de Ali Babá quando planeavam os assaltos.
As borras turvas iam para um caldeirão enorme, suspenso na ponta de um gancho farrusco, cuja corrente se perdia no escuro incógnito.
Alteava-se o fogo, juntava-se soda cáustica comprada na mercearia do adro. Alguém tomava assento num tropeço de cortiça e, o dia inteiro, vira que vira com um pau, até que a mistura esbranquiçada se tornava espessa, era deixada a arrefecer, cortada em barras e arrumada em prateleiras.
De noite as geadas caíam e as manhãs acordavam branquinhas e frias. Até o cimo do castelo se embrulhava num manto cinzento.
Passara há pouco o tempo do reboliço das dornas e pipas, atravancando o terreiro de baixo.
Mil vezes esfregadas, acertados a martelo os círculos dos aros, vedadas a pez as tampas redondas e torneiras, embutidas as rolhas de cortiça, lá repousavam enfim na paz misteriosa da fermentação.
À medida que o frio se intensificava, os cânticos na missa dos Domingos, iam tomando maior alegria.
Eu, de véu branco entre os véus negros, saía da minha habitual abstracção, distraída com os movimentos do incensório, o palavreado inteligível do padre, que as senhoras muito sérias e compostas fingiam acompanhar nos missais, mesmo se analfabetas. Iam respondendo sabe-se lá o quê, num infindável latinório ora pró nobis....
Eu ajoelhava, juntas as mãos em frente do peito conforme me era ordenado, persignava-me com a destra, saltitava ora num pé ora no outro, enfadada.
Mas por este tempo, algo me atraía: as cantigas!
Cantigas que eu sabia, pois as lera nos livros do meu avô e não eram lamentos intermináveis, mas cantos alegres, cujo acento se prolongava muito nas últimas sílabas:
“Ó meu menino Jesus
Ó meu Menino tão belo
Logo tu foste nascer
No tempo do caramelo”
E, escorregando no caramelo, a água que embebia a terra saturada e os musgos, gelando os caminhos, voltava enregelada, sentando-me de mãos estendidas frente ás chamas da lareira.
Uma manhã havia em que a minha avó decretava que a Henriqueta pegasse numa escova de piaçaba, numa barra de sabão branca, e esfregasse a casa de ponta a ponta.
O Vicente armava com tábuas uma mesa comprida ao cimo da escada.
Minha avó abria as arcas e retirava as preciosas toalhas bordadas, ornadas de rendas finas.
Armava-se o “altar”, com pratos repletos de doces, douradas broas de mel, filhós, frutos e flores, garrafas de licores pacientemente macerados em garrafas cujos topos eram selados com cera.
A bisavó, na sua casaquinha com folhinho na cintura sobre saia rodada, tomava assento de rainha e esperava.
Minha avó, a roupa mais negra que nunca, remirava tudo, alisava aqui uma prega, compunha e ajeitava defeitos que só ela via.
Por fim, o padre chegava, montado num burro pardo, com o sacristão e os meninos de opa vermelha, palmilhando atrás.
Desmontava no terreiro, tirava do alforge um embrulho de pano branco, subia o balcão, onde nos enfileirávamos todos.
Enquanto o prior deitava um olhar de viés à mesa que esperava no interior, o sacristão desvendava a imagem de um menino nuzinho de dentro do pano e colocava-lha nas mãos.
Os meninos desencantavam a caldeirinha e o aspersório da água benta.
Fazia-se silêncio, colocávamos os véus e ajoelhados, beijávamos a imagem fria.
O padre abençoava tudo, murmurando monotonamente qualquer coisa que não se conseguia perceber.
A seguir, embrulhava de novo o menino, passava-o ao sacristão, que ia arrumá-lo no alforge e começava o alvoroço:
- Senhor prior faça favor de entrar! Prove disto, coma daquilo...
O senhor prior provava de tudo, se provava!
Ia abanando a cabeça, ignorando os guardanapos, limpava as mãos à batina e fazia sinal aos meninos, que iam levando o que restava nos pratos e os despejando nos alforges.
Provava o licor de laranja, de tirinhas cortadas muito finas, e dava estalidos com a língua.
Depois o de ginja, sempre abanando a cabeça, que sim, que sim, mas estava com pressa...
Corado, empanzinado como um cortiço, despedia-se das velhas, que o miravam com um sorriso contemplativo, as mãos cruzadas sobre as barrigas redondas.
Tão subitamente como chegara, assim partia o prior, o Menino no alforge repleto de doces, ao menos protegido pelo eterno pano branco e amarrotado, às três pancadas.
O padre de preto tomava assento sobre a albarda do burro e o sacristão e os meninos de opas vermelhas seguiam-nos palmilhando, pelos descampados agora no lusco-fusco, esteva aqui, tojo acolá, enquanto a geada caía, cobrindo tudo de um branco uniforme e frio.

Costumes de Natal :
"O Madeiro e a Missa do Galo"



Era no adro da igreja que o Natal se festejava.
Muito tempo antes se sorteara entre os lavradores, a honra de oferecer a árvore para a festa.
Pelo vigésimo quarto dia de Dezembro, juntavam-se os homens da aldeia. Iam em romaria, de pé sobre uma carroça que, mesmo indo leve, gemia vereda fora.
No bornal, pão e chouriço, um naco de presunto, um punhado de azeitonas.
E o garrafão de tinto, empalhado, preso aos varais pela asa.
Os machados afiados jaziam a um canto.
Contavam-se pilhérias. Alinhavam-se umas quadras. Soltavam-se umas cantigas.
Soavam risos e palmas.
No campo, erguia-se altiva a árvore premiada, que seria abatida no seu fulgor e pujança.
Os homens saltavam alegres do tabuado, rosetas nas faces, machados em riste.
Erguiam-nos bem alto acima da cabeça, nas mãos calosas, e desferiam o primeiro golpe:
- hemp!
Faziam fila, o segundo golpe soava:
- Hemp!
E assim se consumava o sacrifício, por longo tempo, soando em meio ao silêncio
- Hemp!
- Hemp!

Até que chegava a hora do golpe de misericórdia.
Faziam grande algazarra, berravam-se cautelas, davam-se passadas largas, retrocedendo às fosquinhas... como se esta fosse a primeira árvore derrubada nas suas vidas!
Uma vez caída, as enchós nas mãos experientes, podavam os verdes ramos.
Iam-se buscar cordas, que se atavam aos extremos e se puxavam aos ombros.
- Eia..!. Eia...! num ritmo cadenciado pelo esforço.
Içava-se o tronco parra o carro e passava-se à merenda.
Redobrava a alegria, atiçada pela boa pinga.
Enfim, rumava-se à vila.
A carroça, de pesada, mais gemia, lentamente, às passadas retesas das bestas.
Chegavam em frente da igreja, onde o padre os esperava, de aspersório e caldeirinha.
Tiravam com grande pompa o madeiro e depunham-no no adro.
O padre chegava-se perto, andava em volta examinando-o, ora abanando a cabeça ora franzindo o sobrolho.
Por fim conformado, mas nunca satisfeito, aspergia de um lado ao outro.
Borrifava-o ao de leve com água benta, murmurando sabe-se lá que mistérios.
E recolhia-se ao agasalho da ceia.
Juntava-se alguma lenha e ateava-se o fogo ao lenho.
A noite vinha descendo, a seiva ia crepitando, se derramando, cedendo.
Na torre, tocava o sino:
- Dling dlong dling dlong... dling!
De todas as direcções vinha o povo convergindo.
Elas de xaile de marino com franjas, lenço de arabescos atado debaixo do queixo; eles de capote ou samarra, gola de pele de raposa, cajado na mão direita.
Passada a passada, iam tomando lugar em volta do fogo, que resplandecia e soltava estrelas de ouro no negrume da noite fria.
Elas entravam na igreja.
Eles juntavam-se mais: tirava de sobre o ombro a garrafa de água-ardente, atada por um baraço à asa tosca de um copo.
Passavam-na de mão em mão, para aquecer a garganta, que protestava tossindo:
- Está mesmo boa!
- Mesmo boa, a bagaceira! Replicava outro, sério.
De dentro do templo, soava uma cantilena, uma voz se erguia, outras se lhe juntavam em coro:
“Da vara nasceu a vara
Da vara nasceu a flor
E da flor nasceu Maria
De Maria o redentor”
Subia o bafo no ar.
As crianças, agarradas à barra da saia das mães, esfregavam os olhos de sono.
O padre movia-se com lentidão, de paramentos brancos, bordados a ouro.
O sacristão e os meninos de coro, faziam gestos servis: ora lhe depunham nas mãos gorduchas e inertes o cálice; ora lho retiravam; mudavam a folha do livro; chegavam-lhe o incensório fumegante, que ele agitava com uma lentidão hipnótica, acima abaixo, esquerda direita... e os olhos dos fiéis seguiam-no, vidrados.
Murmurava algo que se não ouvia... e mesmo que ouvisse, quem destrinçaria palavra daquele fraseado monótono?!
Nas filas, as pessoas faziam gestos automáticos a um tempo, como se manejadas pelos fios invisíveis de marionetas:
Ora se erguiam, ora se ajoelhavam, ora se sentavam esperando...iam murmurando algo inteligível, de olhos postos no vago.
Excepto se encontravam outro olhar e se aproveitava o ensejo para um breve mexerico:
- Então a vizinha já sabe o que dizem daquela? Dizem que ela e o António é um Deus nos acuda!
- Ai coitado do marido, que é corno e ainda não sabe!
Subentendiam-se olhares contristados, misturados de sorrisos à socapa.
Uma cotovelada certeira, fazia-las retomar o lugar em cena e a deixa na ladainha.
Respondiam automaticamente o que não sabiam, ao que nem escutavam.
Era a tradição que as movia, como um mágico coreografo.
No fim, lá iam em fila deitar a ponta da língua de fora, com ar contrito, em fileira cerrada.
O padre, retirava do fundo mágico de um cálice de ouro, uma hóstia precariamente segura entre o polegar e o indicador e depunha-a complacentemente, de boca em boca, com ar de asco.
Se uma moçoila se apresentava, rosada, na sua frente, os olhinhos chispavam-lhe concupiscentes, como quem diz:
- Toma lá, mas não foi para tomar a sagrada hóstia que Deus te deus te fez uma boca tão redondinha... ai se te apanho a jeito!
De língua recolhida no céu-da-boca, não fossem os dentes macular inadvertidamente a sagrada ceia, a boca seca recusando-se a engoli-la como a uma pastilha, elas retiravam-se, de cabeça baixa, dando a Deus o sacrifício do acto por mor dos seus pecados.
Mais uma bênção, mais uma vénia e ala... para a saída, às arrecuas quase até chegar à porta.
Cá fora, risadas altas, em volta das altas chamas!
Rubras as faces e as brasas, que iam consumindo o tronco, numa incandescência rubra, varando-o de lado a lado.
Os homens olhavam as mulheres, contrariadas.
Elas aguardavam-nos, em silêncio, a alguns passos.
Acabara-se a festa... Missa do Galo e Madeiro, só para o próximo ano!
Cada um se aproximava da sua consorte, sem uma palavra, um gesto.
O hábito acertava-lhes os passos, que soavam caminho abaixo, rumo ao casebre de pedra nua e telha vã, à enxerga de palha sobre os ferros pintados da cama, onde se consumaria o acto que seria Natal no fim do verão.

segunda-feira, abril 05, 2004


Diamante





...
Lembro-me vagamente de ser transportada por dois bombeiros muito jovens:
Ela conduzia e ele sentou-se ao meu lado.
Disse-me que me deitasse na maca, mas eu sentia falta de ar.
Armou a cadeira, e fixou-a nas traseiras da ambulância.
Pegou na minha mão. Perguntei-lhe baixinho o nome e a idade.
Tinha a idade da minha filha. Sorrimos.
Deixaram-me no corredor do Hospital, mesmo em frente da sala do assistente do meu cardiologista.
O meu grande amigo, provera a tudo:
Reservara-me (reserva-me) uma caminha para o caso de me sentir aflita.
Dera-me o número de casa, fizera-me inúmeras recomendações; medicação rigorosa,ensinou-me como aplicar as injecções a mim própria.
Não pude falar com ele, porque depois da dor atroz sob o esterno, ficara sem poder falar. Balbuciei auxílio aos bombeiros, que com muito custo me entenderam dizer a morada.
Escrevia... mas com a grafia que aprendera nos livros antigos do avô Petronilho... grafia onde coisa era “cousa” e farmácia “pharmácia”
Trocara breves impressões com o meu primo Carlos, médico com longa prática de cardíaco... acabou o doutoramento no ano passado, após vinte e três dias de lhe terem colocado um outro coração a bater dentro do peito.
Meu primo imaginava que eu tivesse receio: Explicou-me em pormenor como me fariam a angiografia e que não doía nada... eu ri:
- Mas, Carlos, eu não temo agulhinhas!
Volto ao corredor do Hospital, à cadeira de rodas e ao rebuliço causado por um internamento que urgia, sem que ninguém ou documento algum me acompanhasse.
Ia de roupão. Não pudera tomar banho mas conseguira, devagarinho, meter numa pequena bolsa a escova de dentes, um bloco, uma esferográfica e três livros:
Dois de Fernando Pessoa e um de Isabel Allende.
Passou por mim um senhor que me olhou com um entendimento indizível, acenou respeitosamente com a cabeça e, sem uma palavra, seguiu.
Senti-me confortada.
As enfermeiras andavam numa lufa-lufa: mas eu era doente e amiga do Professor Ravara e estava no lugar que me indicara: Medicina 1, o que ele chefia.
A enfermaria era pequena: tinha três camas.
Numa delas, um casal despedia-se de uma senhora idosa.
No visor da máquina junto a ela as linhas coloridas seguiam vias desconhecidas.
Soava um tiq-tiq-tiq, em simultâneo com as linhas quebradas por ângulos, para mim enigmáticos, que subiam, desciam, subiam, seguiam...
Aos pés da cama um nome: Noémia.
Uma enfermeira chegou e, com suavidade, convidou o casal a sair, murmurando:
- “Vão tranquilos, ela já está inconsciente, não sente nada...”
Na outra cama, uma menina dos seus vinte anos.
Ligada ao soro, levantava-se de vez em quando, tinha dores, era de uma simpatiatão radiosa que parecia florir o quarto.
Lia um livro, ou fingia ler.
Telefonava à mãe.
Aos pés da cama, um nome:
Marina.
A D. Noémia estava muito agitada.
Afligia-a muito sentir os pulsos atados às grades levantadas da cama.
Pedia para fazer xixi... e Marina ia junto dela, dizendo-lhe muito docemente:
“Faça na fraldinha, vá lá, D. Noémia, tem fraldinha, faça...”
Depois, a D. Noémia ficava longo tempo longe.
Um pombo torquaz alojara-se-lhe na garganta. Tentava enrolar os lençóis de forma obstinada.
De quando em vez, falava.
Falava com muita gente: com as filhas, os genros, o marido, os criados...preocupavam-na todas as tarefas.
Decidida e autoritária, chamava.
Dava ordens.
De repente, caía na abstracção total.
Agitava os pulsos.
Quedava-se.
Os olhos quase sempre fechados mexiam-se muito.
Suplicava que lhe desatassem os pulsos, por favor, por favor!
Aquilo não era coisa que se fizesse a ninguém!
Eu, que divagava ora ali ora noutro lado qualquer, escutei a catequista ou a professora de religião e moral dizer:
- Nunca se deve negar o último desejo de um moribundo!
E vi o desenho idiota do catecismo: de um lado chamas, do outro um padre, um homem agonizante ao meio.
Não sei como desci, peguei na mão da D. Noémia, lhe desamarrei a gaze dos pulsos.
A moça tocou à campainha, enquanto a senhora tentava libertar-se dos eléctrodos.
Olhei profundamente o rosto da senhora e pensei: A morte está na tua frente: Encara-a!
Encarei e era tranquila, doce, pacífica.
A enfermeira alarmou-se, pediu auxílio.
Achei-me de novo na cama, com a máscara de oxigénio, e um enfermeiro, com os olhos mais azuis e compreensivos do mundo, disse-me:
- Todos os sensíveis são julgados loucos, por serem diferentes.
A D. Noémia foi ligada a tudo o que era preciso: à máquina, às grades da cama... desprendia-se da vida.
A moça, da sua cama, explicou que a senhora tinha mais de noventa anos e fora uma grande fazendeira em Angola...
O tempo não existia, mas a D. Noémia percorria a vida em ordem inversa, ficando mais jovem à medida que o tic-tic-tic abrandava e as linhas no visor se iam tornando menos quebradas, de ângulos mais espaçados.
Eu, ora me apercebia disto tudo ora mergulhava no mais profundo de quanto profundo possa ser o sono.
Falava com a minha filha, ralhei com ela, sentada na beira da cama, de pernas penduradas na borda... mas num lapso vi que as grades da cama estavam levantadas.
Peguei no livro de Fernando Pessoa, deixei-o aberto sobre o vão das páginas, às cegas.
A menina sorria-me e olhava se eu pegava no bloco e escrevia... Perguntou-me porquê.
Eu disse-lhe que só sabia escrever.
O último poema Chama-se “diamante”... Ela pediu-mo, eu dediquei-lho mas recomendei-lhe que o copiasse, pois gostava de guardar certos papéis...Prometeu que sim.
Cada vez ia ficando mais tempo numa doce ausência.
Sentia-me um rio a percorrer um deserto, dividindo-se em muitos braços, como um delta... e ia sendo sorvida no nada, no absoluto nada, doce, tão docemente...na paz completa, na ausência de todo o sofrimento.
Percebi que estava morrendo e perguntei-me:
- Mas onde estará Deus nesta sala?!
A D. Noémia, que tinha atravessado a sua vida inteira, e recomeçara a viver agora, terminou balbuciando
- “pa-pa-pa-pá... ma-ma-ma-mã »… e os tic-tic-tic que já eram pingos de som,tornaram-se num zumbido.
E o rio ia sendo absorvido... e eu deixava de ser e minhas últimas perguntasforam:
- Aquele homem seria mesmo meu pai?
Depois, no fio derradeiro:
- Será que comecei por falar ou escrever?
Depois a paz, nem branca, nem negra, nem nada... paz absoluta...
Nada.
Quanto tempo depois me dei conta de mim?
Estava onde?
Nua sob um lençol, de fralda, ligada a fios e tubos.
Um enfermeiro disse-me, de muito longe:
- Agora vamos drogá-la a valer, sim?
... Deslizaram-me para uma sala em penumbra.
No monitor do computador, corredores cinzentos perpassavam.... Eu, drogada,tentava olhar...
O médico sorriu:
- Com que então a ver o seu coração por dentro?!
Movia-se!
Depois o nada... o longo nada... de quando em vez pressentia movimento, as enfermeiras murmuraram entre si:
- Já viste, no dia de hoje estamos cheios?!
... Seria dia de Ano Novo.
Doía-me muito a garganta.
Tentei uma posição mais confortável.
Tentei afastar a máscara transparente, que incomodava...
- Tch tch thc... não pode!
Tem de ficar de modo a que o oxigénio lhe encha os pulmões, e sem a máscaraainda não consegue!
Disseram-me que o Professor Ravara telefonara.
Não sei como, vi-me de novo na primeira cama, na enfermaria onde dera entrada.
Sozinha.
A cama da D. Noémia estava impecavelmente arrumada e anónima.
A de Marina... onde está Marina?
- Marina teve alta!
... Marina, levaste o meu último poema... onde estás, que lhe faltam os dois últimos versos, que deixei escritos no bloco e ainda tenho:
“Reviver
Partir para onde?”
Uma enfermeira, pegou no meu livro e disse-me:
- Olhe o que estava a ler:
“O poeta é um fingidor”
... Olhou-me e sorriu.

"....De Ver Poesia"




A minha mãe morreu em Abril... nunca a primavera foi tão linda!
Por todo o lado havia flores brancas e roxas, que sempre lá estiveram mas
eu - que tinha seis anos - nunca tantas vira!
As brancas eram dos espinheiros, breves como os flocos de neve ...que sempre
tentava guardar nas palmas das mãos fechadas.
As outras eram lírios e açucenas - que cobriam o vestido de noiva com que
minha mãe seguiria para sempre vestida.
Houve outra primavera quase tão linda: cheirava intensamente a eucalipto e
os campos eram verdes verdes - o rio mais azul que nunca!
Eu passava na minha rotina, pesada com a minha filha, que nasceu noutro
Abril, dezanove anos depois.

"Os saltimbancos"

Chegaram em carroças.

Os miúdos da aldeia medieval onde estive entregue ao abandono, corriam atrás, rindo muito dos velhos chapéus de palha que os burros levavam enfiados nas cabeças, as orelhas felpudas surgindo por entre buracos, disfarçados com flores de papel desbotado.

À noite, lá fomos: eu, a minha avó e a Henriqueta, juntar-nos à roda de povo no pequenino largo.

As pessoas, de escuro no escuro, ficaram de pé.

Os aparelhos eram cadeiras, mesas e duas estacas espetadas no chão de terra batida, uma corda esticada entre elas.

Os artistas vestiam farrapos, velhos e rotos.

Na roda dos pobres, aquela miséria extrema provocou comentários.

Sobretudo a magreza da menina que atravessou de braços no ar, a corda. Levezinha como uma borboleta, ameaçando partir a voar.

A contorcionista vestia um maillôt e estava tão grávida que as mulheres cochichavam entre si:

- Coitados, já começam a trabalhar na barriga da mãe.

Na meia-luz dos lampiões, pouco mais vi que a lástima.

Escutava o que se dizia à volta, e no fim um menino pequeno e sério passou por entre todos o chapéu que talvez fosse do pai, que apresentara o espectáculo, sem fausto.

Os homens remexeram as moedas raras no fundo dos bolsos das calças surradas, as mulheres remexeram as bolsas de feltro que ainda se usavam por baixo dos aventais.

E os tostões, pequeninos e negros, iam caindo um a um, dois a dois... com esforço, num mudo entendimento da fome compartilhada.

Só as crianças sorriram e bateram palmas. Os artistas aplaudiram no fim a plateia improvisada.

Nunca, nunca na minha vida gostei de circo!

Nem no Coliseu, por detrás da praça dos Restauradores, onde ofereciam bilhetes no Natal aos filhos dos funcionários, nem na TV do Circo do Mónaco, nem do magnífico circo de Moscovo.

Aquele primeiro que vi e ainda vejo por detrás das lágrimas que sinto bastou-me para toda a vida!

"Conto de Um Natal"





Até as outras crianças, quando nos viam, fugiam de nós ou nos atiravam pedras e gritavam sempre:
- fora, maltrapilhos!
Era o que ouviam dizer ás mães quando, famintos, nos atrevíamos a bater às portas das casas pequenas do bairro.
Andávamos quase nus, descalços, sujos, feridos, o cabelo desgrenhado, o estômago vazio, mas sempre com a boca a sorrir, sempre dispostos a fazer diabruras àqueles que nos escorraçavam.
Éramos três: o Ruivo e a Sardenta eram irmãos. Tinham ambos as cabeças vermelhas e as caras salpicadas de pontinhos, muitos pontinhos negros. Ela era a mais velha, tinha uns nove anos. Isso dava-lhe uma certa importância e autoridade quando, por uma caixa velha encontrada no lixo, discutíamos.
Eu era a mais nova e vivia com eles na barraca, depois da morte dos meus pais, que aliás nunca tinham querido saber muito de mim. Mas como a caridade se vê sobretudo nos mais pobres, eles lá conseguiram arranjar-me um lugar na sua miserável casa já cheia.
Num dia de inverno, frio, escuro e triste, depois de termos procurado debaixo de chuva em todas as latas do lixo, de termos roubado uma laranja a um vendedor ambulante e conseguido um pão fresco na padaria da esquina, escondemo-nos na escada de um prédio velho e começámos a comer, com delícia, o nosso almoço.
Nisto o Ruivo, esperto e matreiro, de quem havia sempre algo de extraordinário a esperar, levantou-se, abriu os braços, fez uma pirueta, sentou-se outra vez, pôs-se a olhar para longe, para muito longe de nós e disse:
- Eh malta! Vocês sabem porque é que está tanto frio?
Nós, nem resposta. Estávamos habituados a perguntas deste género vindas da parte dele. Continuámos a comer em silêncio.
- Sabem, ou não?
- Não! – respondeu-lhe a irmã.
- Mas eu sei! – disse com uma voz triunfante. Nós, caladas. Isso pareceu irritá-lo porque se levantou de um pulo, cerrou os punhos e gritou:
- Vocês querem ou não querem saber?
- Porque é? – perguntei eu.
- Porque vai ser o Natal.
- Natal?! – Admirou-se a Sardenta – O que é o Natal?
- Ah, agora sim! Ora oiçam lá o que eu ouvi os Lanzudos estarem a dizer:
Lanzudos era a nossa maneira de tratar os outros, os ricos, os que se vestiam de lã e corriam e brincavam sem ninguém lhes fazer mal.
- Que é que ouviste? Conta! – pedimos.
- Eles estiveram a dizer que o Natal é uma festa e que se dão prendas às pessoas e que é por isso que as montras estão tão bonitas.
- Oh, temos de ir ver as montras! – disse eu. E logo a Sardenta:
- Isso! Experimenta, que logo vês o que te acontece! Eu cá não vou, não! Já estou farta de apanhar!
47 Baixei a cabeça, triste, mas o Ruivo consolou-me:
- Deixa lá, Macaquinha, vamos nós, queres?
- Quero sim! – respondi logo eu. Quando é que há-de ser?
- Logo à noite, quando há muitas luzes e pouca gente na rua.
_- Está bem!
À noite, a Sardenta foi para a barraca, para junto dos pais e irmãos e eu e o Ruivo partimos à aventura. Tínhamos medo, mas ainda maior curiosidade de ver as coisas com que os Lanzudos fariam a tal festa Natal.
Já era bastante tarde. O vento zumbia, cortante. Passavam alguns carros e pessoas embuçadas que não reparavam em nós. As luzes deslumbravam e aquelas enormes janelas enfeitadas com bolas grandes e brilhantes, com ramos verdes, com sinos de ouro e prata, com grandes bonecas sorrindo, com castelos de chocolate, bolos, pão, fruta.... com tanta coisa deslumbravam-nos ainda mais. E abríamos muito os olhos redondos, e soltávamos ohs e ahs e esborrachávamos os narizes de encontro aos vidros.
- Ruivo, olha como é grande aquela bola! E como brilha!
- Sim, tão linda! E vês aquele carro, mais abaixo? Quase jurava que anda sozinho. Até parece a sério!
- E aquela boneca além? Parece mesmo um bebé. Oh se eu tivesse uma boneca assim!
- Que sorte têm os Lanzudos !
- E porquê só eles, Ruivo? Porquê?
- Sei lá! Afinal isto tudo é para lembrar o nascimento de um miúdo pobre... Vê se entendes!
- O quê? De um miúdo pobre?
- Sim, foi o que eu ouvi. Disseram que ele dormia na palha como a gente.
- Ah, ainda bem que ele não era Lanzudo!
- Lanzudo? Bom, parece que sim, rei ou lá que é. É muito esquisito. Também disseram que era muito rico, tinha não sei quê mais que a gente.
- Ora! Estás a ver aquele bolo grande, todo branco? Que bom deve ser!
- Oh, sim! E aquele castanho mais abaixo? Tem uns molhinhos de palha e em cada um um bonequinho cor-de-rosa, vês?
- Que engraçado!
E assim fomos, rua após rua, demorando-nos diante de cada montra, fazendo conjecturas, admirando tudo. Mas o tempo passava e o sono chegou. Combinámos vir mais vezes.
- Amanhã a gente volta, sim, Macaquinha?
- Sim! Quero ver tudo, tudo. Que coisas tão lindas, hein, Ruivo?
- E agora? Vamos Para a barraca?
- não! Tenho muito sono. Olha uma portada aberta, vamos!
Não tardou, estávamos a dormir num canto, com um sorriso nos lábios, sonhando ser os donos de todas aquelas maravilhas.
Ao outro dia não parámos de falar à Sardenta em todas aquelas belas coisas que tínhamos visto na véspera. Ela já estava meio resolvida a acompanhar-nos, mas o medo foi mais forte. Ficou.
Chegada que foi a noite, lá fomos nós outra vez e a cena repetiu-se por muitos dias, e em todos eles nos extasiávamos diante das mesmas coisas, descobrindo outras, cada vez mais encantados.
Mas naquela noite o vento era tão frio, a chuva tão forte, que resolvemos refugiar-nos em qualquer lado à espera que o temporal amainasse para depois continuarmos o nosso passeio. Por entre as grossas bátegas de chuva começámos à procura de qualquer canto seco, até que avistámos uma grande porta por onde, durante certo tempo, entrou muita gente. Depois, mais ninguém. Resolvemos espreitar: para lá dessa porta havia uma outra, fechada. Olhámos um para o outro e encolhemos os ombros, desanimados.
- Nada feito! Está fechada, disse.
- Atenção, Macaquinha! Vem aí alguém!
Rapidamente, escondemo-nos atrás da porta grande. Uma velhota entrou, empurrou a porta fechada e sumiu do outro lado.
- Olha! Afinal a porta pode-se abrir!
- Vamos dar uma vista de olhos?
- Vamos!
Devagarinho, abrimos a porta e espreitámos para dentro: havia várias filas de bancos e, no meio deles, muitas pessoas. Lá ao fundo, à volta de uma estranha mesa, vários padres falavam uma linguagem que nunca até então tínhamos ouvido. Mais atrás, um grupo de rapazes, todos vestidos de igual, cantava.
Não sei de onde, vinha uma música bela, suave. Havia também muitas luzes e velas ardiam em redor da mesa. De vez em quando os padres, sempre cantando, faziam grandes gestos em direcção ao céu e ao povo, ajoelhavam e tornavam a levantar-se e as pessoas imitavam-nos e falavam muito baixinho.
- Céus! Os padres parecem zangados!
- Não me parece! Todos fazem como eles.
- O que será isto? Seja o que for, lá de dentro vem um calor muito bom.
- E se a gente entrasse?
- Está bem, vamos.
A porta fechou-se silenciosamente atrás de nós, que nos metemos no canto mais escuro que encontrámos e aí ficámos a observar.
Mais uma pessoa entrou na casa e, com ela, o vento frio da rua. Arrepiei-me e o Ruivo estremeceu. Encostei-me mais a ele, que me passou um braço pelos ombros.
- E se nos sentássemos? Aqui atrás ninguém repara na gente. Estão todos tão atentos. Achas que nos mandam embora se nos descobrem aqui?
- Não, acho que não. Chega-te mais para cá. Está tanto frio, mesmo assim!
Sentámo-nos no chão. Estava-se ali bem. Cheirava a um fumo esquisito que vinha da mesa onde os padres estavam.
O Ruivo perguntou:
- Ainda tens frio?
- Não.... Ruivo, sabes quem é que nasceu?
- Não, não me lembro do nome.
- Um miúdo pobre que depois se passou para os Lanzudos?
- Não, não era bem isso, era muito esquisito, como te hei-de explicar?
- Como é que se chamava?
- Eu ouvi o nome... era Ju... Je... espera, era Jesus E não se passou nunca para os Lanzudos, dizem que eles o mataram por causa disso.
O coro continuava a cantar “Feliz Natal” “Feliz Natal”
Eu pensava que gente ruim eram os Lanzudos que tinham querido apanhar o miúdo pobre e que o tinham matado por ele querer continuar pobre. E em como o mais esquisito de tudo era estarem a fazer-lhe uma festa cheia de coisas que nos faziam crescer água na boca.
As lágrimas correram cara abaixo.
Senti o contacto quente de uns lábios na minha face. Vi o Ruivo despir o seu casaco leve e esfarrapado para me cobrir com ele. Sorri.
- Pobre do miúdo, o tal Jesus, se tivesse vindo com a gente....
Sorriu.
Lentamente, a cabeça descaiu-me, escorregou no ombro do amigo que ainda tinha e adormeci.

"Boca do Inferno"





Erguia-se no bordo da escarpa, rente ao mar, um enorme castelo, solitário, altivo e sombrio.
Nele, habitava, solitário, um bruxo.
Um dia porém, achou ser tempo de temperar com mais do que sal a sua vida.
Consultou a sua lâmina de cristal de rocha e ordenou-lhe que lhe mostrasse a mais bela donzela do reino, assim como o lugar onde pudesse encontrá-la.
Reuniu o séquito e cavalgou a dias a fio.
Levava riquezas nunca antes vistas, com que a seus pais a comprou.
Deslumbrado pela sua beleza, mandou que se velasse num véu preto e assim a levou de volta, a caminho da desventura.
Enquanto bem desfrutava da sua mal empregada formosura, mandou erguer alta torre, de uma só porta, escadaria estreita a toda a volta, e reservou-lhe aposentos no extremo da inusitada cornucópia.
Mandou vir de longe um criado que jamais a vira e, sob ameaça de morte certa caso a utilizasse, confiou-lhe uma das chaves, que guardava dependuradas de uma corrente à cintura.
Guardou a mulher como se guardam as coisas que se amam e detestam ao mesmo tempo, pois tanto o deslumbrava quanto temor lhe infundia.
Frente ao mar, o tempo passava, cronometrados os dias pelas marés, as semanas pela sucessão dos dias e das noites, os meses pelas luas.
Tão só se sentia o guardião como a cativa do seu senhor.
O horizonte de ambos era o mar, eternamente sempre outro e o mesmo.
A música que a ambos chegava era a dos pensamentos, a do marulhar revolto ou terno das ondas, o sibilo do vento por entre as rochas.
Assim passava o tempo e não passava, porque o tempo para ser tempo tem por referência a vida, de que ali só se sentia a ausência.
Mas um dia o ócio provocou no carcereiro uma curiosidade inadiável.
Deu por si a pensar obsessivamente que mulher seria aquela que merecia tão triste sorte.
Pouco depois, descerrou a fechadura, com a chave confiada mas jamais tirada da cinta.
A porta rangeu de ferrugem, ele apoiou sobre os gonzos todo o seu peso e, aos poucos, sentiu-a cedendo.
Enquanto ia subindo a escada de caracol que levava a câmara da cativa, mil pensamentos se lhe entrecruzavam no cérebro:
O que iria encontrar?
Seria bonita ou horrorosa?
Aleijada?
Muda ou doente?
E se estivesse morta?
Calou todas as vozes de inquietação que o assediavam e subiu, subiu, subiu sem pensar em mais nada.
Frente à porta da câmara, parou para se acalmar e tomar coragem.
Quando conseguiu dominar a tremura das pernas e das mãos, empurrou a porta.
O sol, que entrava por uma das ogivas da torre, bateu-lhe nos olhos e cegou-o por momentos.
Pouco a pouco retomou a visão, deparando-se com a silhueta de uma jovem dama, meia voltada, silenciosa, que em nenhuma das suas conjecturas, lograra imaginar.
Ela olhava-o, interrogativa, mas como ele de repente sentisse esquecidas todas as palavras, acabou ela por perguntar:
- Quem és tu, cavaleiro e porque vens perturbar a minha solidão?
E o homem, quando achou de novo a voz, respondeu finalmente:
- Sou o vosso guardião, senhora!
- O meu guardião? Guardião de quê? Desta solidão sem nome e sem razão?
Vê como se consomem os meus dias, sem prazer, sem ilusão!
... Ao menos tu!
- Eu, senhora? Eu estou ali em baixo tão só como vós, e a guardar... a guardar o quê? Para quê?!
Talvez que a partir de hoje possamos partilhar, senão redimir, as nossas horas perdidas neste ermo.
Ordenai, senhora, farei o que quiserdes.
Levar-vos-ei aonde desejardes!
Mas a nenhum lugar quisera ir a senhora, sedenta de presença humana, e ficaram a conversar por horas esquecidas...
Da cumplicidade e da troca de seus segredos e solidões, uma louca paixão nasceu.
O tempo que era tão lento cristalizou-se naquele instante.
E o instante fizeram eterno, esquecendo o lugar e o perigo, tão só um ao outro se entregando, em delícias se esquecendo, nada mais que um ao outro querendo.
O exterior esvaíra-se, pois não o sentiam nem mais lembravam.
Mas numa noite acordaram apavorados num mesmo pesadelo, em quem uma onda imensa de repente os engolia.
Aflitos, desceram as escadarias correndo.
Montaram o cavalo branco que por ali deambulava peado e acudiu de pronto à voz do dono.
Partiram a toda a brida sobre os rochedos fronteiros ao mar.
No paço, o feiticeiro olhou a sua lâmina de cristal e, louco de fúria e de ciúme, chamou a si todos os dons mágicos que possuía, ordenou que num repente se abrisse a terra e transformou a noite num cataclismo medonho, rochas deslizaram sobre rochas e um abismo sem fundo abriu-se: cavalo e cavaleiros despenharam-se e foram engolidos para sempre.
Assim que os dois amantes desapareceram no redemoinhar infernal, acalmou a tempestade e o mar voltou a ficar manso como se nada houvera acontecido.
O buraco nos rochedos, porém, nunca mais se fechou, como se essa ferida da natureza quisesse perpetuar a história.
Mas muitas vezes volta o vento e a fúria do mar retorna, tal como na noite em que a cativa e o guardião da torre desapareceram.

"Viagem de Mariana ao centro da vida"





Foi num dia de acaso cinza que Mariana descobriu a porta.
Era redonda e estava tão dissimulada na estrutura rugosa que, não fora ter sonhado que ali estava, por sete noites seguidas, jamais daria com ela.
Procurara, procurara... e lá estava:
Quase invisível, a frincha.
Carregara com um dedo na abertura e o círculo, saltando, envolveu-a
Deu-se conta de estava sobre seda, raiada, húmida, intensa.
À sua frente, um vasto horizonte, que era feito de protuberâncias, um labirinto entre elas, onde baloiçavam plumas, leves, macias, pequenas.
Ante seus olhos faiscavam minúsculas partículas, brilhantes como centelhas, bolinhas eriçadas que divagam incertas.
Mariana olhou ao alto e deslumbrou-se perante a abobada lisa, feita de azuis transparências.
Até onde chegaria?
Esse era o mistério que intentava desvendar Mariana, no caminho dos seus sete sonhos seguidos, que nunca se concluíam em respostas.
Estendeu os braços, as palmas das mãos viradas para cima.
As bolinhas, envoltas em sedosos pelos, vieram suavemente cobri-las.
A pouco a pouco,sentiu-se coberta, revestida, como se a escondessem, a acolhessem, a quisessem.
Sorriu, estendeu a língua e sentiu doçura.
Olhou aos pés:
Os sapatinhos brancos desapareciam sob o tapete fofo, as pernas meio submersas naquelas partículas, que ora assentavam, ora levitavam em suaves mas não pressentidas brisas.
Tudo era silêncio.
Deu um passou e
não sentiu nem o seu peso nem o das fofos grumos de amarelo intenso que quase a submergiam.
De repente, algo tremeu.
Mariana arrepiou-se, não se susto ou de arrependimento, mas de uma saudade inaudita.
Sentia-se escorregar de modo quase imperceptível.
As pequeninas ogivas iam estalando uma a uma, abrindo-se como se pétalas, e de dentro de cada um talo lácteo e vigoroso brotava e crescia, tenso e determinado.
Quis tocar-lhes, mas a distancia ente o labirinto eriçado e os pequenos braços ia-se tornando pouco a pouco maior; era impossível palpá-los, saber ao tacto de que matérias seriam feitos.
As pluminhas amarelas iam encolhendo, dobrando-se em espirais de fios secos, como pequeninos tentáculos inertes.
A luz suavizou-se.
Olhando o alto de novo, Mariana notou que a abóbada passara de transparente a translúcida e que um brilho de nácar se notava além dela.
De repente, sentiu-se em desequilíbrio e o circulo redondo onde penetrara, expulsou-a de repente, deixando-a estupefacta diante da parede lavrada, de novo uniforme, sem marca.

Por muito tempo lhe ficou na memória das papilas aquele sabor de doçura.
E os sapatinhos brancos ficaram para sempre salpicados de minúsculas estrelas.


Depois os sonhos voltaram, de vez em quando, intercalados.
Neles, Mariana sobrevoava a cúpula, que crescia, se ampliava.
Estendidas, as palmas das mãos abertas resplandeciam, lançando longe, a perder de vista, raios de luzes coloridas, vibrantes, intensas.

Dentro de si, as perguntas respondiam-se a si mesmas e um sorriso de indecifrável serenidade fazia com que diante dela todos se sentissem aliviados de quaisquer mágoas.

"A PRINCESA ENCANTADA NA FONTE"





No seu palácio forrado de azulejos coloridos, o velho vizir escutava o tropel dos cascos, o tinir surdo das espadas batendo nas ilhargas das armaduras, o grito incompreensível dos cavaleiros, saído das frestas abertas no ferro dos elmos.
Uma lágrima muito lenta rolou-lhe dos olhos, fechou cuidadosamente o livro carmim com bordados de ouro e levantou-se como se carregasse um peso de mais de mil anos.
Chamou os criados e ordenou-lhes que estancassem os repuxos que brotavam das fontes nos pátios lajeados e reunissem apenas os mantimentos necessários para uma viagem de três dias.
Do harém, mandou chamar as três filhas e encerrou-se com elas num aposento, exigindo que por nada os interrompessem.
Usando dos seus conhecimentos de alquimia e álgebra, procedeu à sua transubstanciação. Quem passava junto à porta, escutava uma ininterrupta e monótona litania.
Por três vezes o sol, fogoso e rubro, se derramou apaixonadamente no regaço da terra e se levantou renovado.
Na terceira aurora enfim, a porta abriu-se e o vizir saiu sozinho, transportando nas mãos uma pequena arca ricamente lavrada de misteriosos arabescos.
Chamou o mais fiel dos servos e disse-lhe:
- Em breve estes muros serão derrubados. Os jardins devastados. Estão cada vez mais perto os futuros senhores dos meus domínios, cobiçosos cavaleiros em demanda das minhas riquezas.
Que tudo levem e bem lhes aproveite. Nesta arca que te confio estão três pães, os únicos bens verdadeiramente preciosos que possuo: minhas filhas, encantadas, pois não terei tempo de as levar comigo na zarpa que além me espera.
Na côdea de cada um deles, gravei os seus nomes: Zoraida, Lídia e Suleima: deixo-as à tua guarda.
Aproximar-te-ás, sem que ninguém te veja, da fonte de Al-Fahgar. Retira os pães, que guardarás no teu alforge, e atirara à água a arca, em sinal de aliança.
Depois dirige-te para tua casa, fora das muralhas e mistura-te com a população, nada dizendo do nosso segredo, aconteça o que acontecer.
Terás notícias minhas em todas as noites de luar, através do espelho de água da fonte. Dir-te-ei assim qual a hora certa para que, atirando lá dentro os pães, tires as três princesas do encanto.
O servo jurou que tal seria feito e partiu.
Chegado a casa com os pães, guardou-os entre cobertas, nada contando a sua esposa.
Passaram-se os dias e o que era esperado, aconteceu: a horda de cavaleiros, de espadas desembainhadas, entrou aos gritos pelas portas das muralhas, calando e derrubando à sua passagem quantos se lhe opusessem.
Calcando quanto o seu furor encontrasse, invadiram o palácio, que foi revirado e pilhado de alto a baixo.
Depois ordenaram que lhes fosse preparado nas cozinhas um lauto banquete, com que se refizessem.
E por fim dirigiram-se ao harém, onde as mulheres se haviam refugiado em pânico.
Em vão protestaram! Foram-lhes arrancados os véus e tratadas como ânforas que para acolherem os prazeres dos novos amos tivessem sido feitas.
Fora das muralhas, todas as noites de lua, o fiel detentor das princesas salvas de tais desonras, ia espreitar à fonte Al-Fahgar as ordens esperadas.
Entreluzia no cimo das águas um rosto austero, de semblante triste, que lhe dizia dentro do seu peito não ter chegado ainda a hora do resgate.
Lembrando as lindas princesinhas que vira crescer, o homem ia pegar os pães escondidos e, acariciando-os, dizia-lhes palavras de conforto.
Tal levantou muitas suspeitas a sua esposa que, numa das suas ausências, foi em busca do que traria tão preocupado o seu marido, submisso aos invasores, sem uma palavra proferir, ao contrário dos outros aldeões.
Afastadas as cobertas, a mulher estupefacta descobriu tão só três pães frescos!
Como estava grávida, à curiosidade juntou-se o apetite e, pegando numa faca, resolveu deliciar-se com um deles.
Mas mal o espetou, saiu dele um fio de sangue!
A mulher, afogando um grito, devolveu os três pães ao seu esconderijo e correu a enfiar-se, tremendo, no leito.
Quando o marido chegou, não ousou dizer-lhe os borbotões de perguntas que exigiam respostas e fingiu-se adormecida.
Com o passar do tempo, o que era novidade passou a ser costume.
Alguns dos cavaleiros retomaram as suas montadas e partiram em busca de novas conquistas.
Outros, gostando do que encontraram e da beleza morena das habitantes daquelas terras, com elas se entenderam e por ali ficaram.
Os afazeres foram retomados.
No palácio, outro senhor tomou posse do trono e exigiu vassalagem de quantos o rodeavam.
Retomaram-se as ceifas e a cobrança de impostos.
Era a noite do solstício de verão e, no espelho de água da fonte de Al-Fahgar, o servo viu nitidamente o rosto sorridente do vizir e sentiu bem alto dentro do peito a sua voz dizendo:
- É hora! Atira os três pães à fonte e desencantarás as minhas filhas.
Correu a casa, buscou os pães escondidos e procedeu conforme o combinado.
Atirado o primeiro pão, ergueu-se lentamente da água uma bolha imensa, de verde-esmeralda. Nela, uma jovem bela lhe acenava, e se foi elevando no céu, luzindo magnífica na direcção do mar, do sul, até que desapareceu.
Atirou o segundo pão e uma outra bolha prodigiosa, dourada, se ergueu. Dentro, outra jovem sorrindo subiu lentamente no espaço, tomando o mesmo rumo que a irmã.
Atirou o terceiro pão, feliz pelo êxito da sua tarefa... porém as águas borbulharam por muito tempo e por fim um grito lancinante se ouviu.
O homem, que já se sentia desafogado da sua difícil tarefa, estremeceu de pavor e angústia, perguntando que acontecera.
Uma débil voz surgiu do fundo:
- Tua mulher, na sua inocência, espetou-me uma faca, julgando-me apenas um pão e cortou-me uma perna. Assim, não mais posso sair da fonte, pois o sangue é mais pesado que o ar e a água.
Mas em paga do teu fiel desempenho do compromisso, toma o meu cinto nupcial, que a mim de nada servirá. Chegado a casa, coloca-o na cintura da tua esposa e o vosso filho nascerá rico de venturas.
À superfície da água surgiu um cinto belíssimo, resplandecente de pedrarias que, faiscando ao luar, parecia uma miríade de estrelas que tivesse descido do céu.
- Agora vai! O teu dever está cumprido, e o meu Fado ainda mal começou!
Ficarei aqui por toda a eternidade.
Quando alguém passa perto da fonte de Al-Fahgar, escuta um inconsolável pranto.
Alguns dizem vislumbrar, nas noites aluaradas, um busto de mulher tentando erguer-se nas águas e os seus longos cabelos esparsos rebrilhando à superfície, como se reflectissem a luz das estrelas.

"Caminhos campesinos"





Descia-se por um carreiro ladeado de verduras viçosas, diferentes nas tonalidades, da prata da oliveira ao verde-escuro da margaça.
Os olhos deslumbravam-se perante os insectos e as flores!
Joaninhas cor-de-laranja com pintinhas pretas “joaninha voa voa, que o teu pai foi a Lisboa... dizíamos, em cantilena).
Papoilas enormes, vermelhas, a que voltávamos as pétalas e, com uma ervinha de junça atada ao meio, fazíamos efémeras bonecas de saia rodada e cabeleira negra..
Lagartixas pálidas, esverdeadas, escapuliam-se lépidas, por entre as pedras.
A cega-rega das cigarras era quebrada pelo reco-reco das rãs, sinal de que o riacho estava próximo.
Um tronco velho ligava precariamente as duas margens.
Cheirava a funcho: as margens estavam cobertas de erva-doce, tão intenso era o aroma que nos dava pressa de sair dali!
Dava o primeiro passo, agarrando a mão de alguém maior que eu.
No fundo havia uma laje imensa, que eu sabia não poder olhar, mas me hipnotizava, fazendo-me balançar em desequilíbrio.
Levantava a cabeça, e dava mais um passo; não dava era parte de fraca!
Avançava-se depois por entre a erva alta e os ramos dos salgueiros, debruçados sobre a água.
Em breve surgiam as hortas: leiras de abóboras grávidas estiradas ao sol; depois o milheiral de bandeiras altas; pimentos vermelhos; beringelas roxas.
Já perto da casa granítica, negra, erguiam-se os feijoeiros enrolados nas estacas e os tomateiros de folhas urticantes, amareladas pelo sol.
O verde vermelho dos frutos reluzia como jóias inesperadas.
E lá estava ela, a Alice, com o cabelo cor de palha, muito escorrido e cheio de praganas de aveia.
Quando chegávamos perto, fazia menção de fugir, mas ficava. Tensa, um sorriso tímido mas malandro tingindo-lhe os lábios.
Chamava a mãe.
Esta, saia do buraco negro, que era a porta da casa de terra batida, sem janelas.
Uma única divisão, sempre pejada de sacos de batatas, molhos de palha, maçãs estendidas em esteiras.
A mãe da Alice trajava sempre de preto. Sobre a cabeça, o lenço de pontas cruzadas, atadas no alto da cabeça.
Do biôco do lenço, sorria à gente, boca quase sem dentes, lábios e pele crestados, dando as boas vindas e desculpando-se:
- “Vindes em má hora, sem avisar”!
Punha-nos as mãos nos ombros, entendidos os braços:
- “Crescestes! Estais bons, ou quê?!”
Dizíamos que sim, estávamos de passagem, muito que fazer em Lisboa!
Atrás dela ficava o luxo da casa, que permitia se distinguisse através da lonjura: uma lista de cal logo abaixo do telhado.
Tão alva que quase destoava ali, onde predominavam os tons castanhos da terra, verdes pálidos dos líquenes e musgos secos que cobriam as pedras.
No meio dos tons áridos, só aquela lista branca!
Desembaraçada, remexia no lume, ajustava o testo da panela de ferro bojuda sobre o tripé.
Ia tirar água da nora e gritava ao marido:
- Ó António! Traz aí uma melancia, que os gaiatos estão com sede!
Gostais de queijo de cabra, não gostais? Vou lá dentro partir o pão, cozi hoje, estais com sorte!
Voltava com pratos de esmalte, o queijo, o pão partido.
- Nós já estamos avesados com o cheiro do queijo, agora vós! Comam, comam!
O António chegava com a melancia debaixo do braço. Sorria. Cumprimentava a todos. Apresentava o enorme fruto, sopesando-o
- Ó Maria, traz mais um prato, que eu tenho aqui a navalha!
Vinha o prato. Cortava as extremidades da melancia, depois talhadas largas a toda a volta, a casca a estalar ao partir.
Tirava a primeira fatia, rubra e húmida e dizia:
- Olha que é das boas, ó Manel! Prova lá se queres ver!
- Boa, boa! – Dizia o outro, melado do sumo doce, a cuspir as sementes pretas.
Às tantas, estávamos todos lambuzados do mel da melancia, das ameixas que entretanto puseram em cima do madeiro que fazia de mesa.
A Alice nem comia nem tirava os olhos de nós. Era como se estivesse fascinada pelo movimento dos nossos dedos, dos nossos dentes ao cravarem-se na crista vermelha, sorvendo, que se desfazia na boca.
- Ó Adelaide, não cresceste muito desde que te vi na Festa do São Miguel!
Encolhia-me. Estavam todos a olhar para mim. Sem o dizerem, todos concordava: não crescera lá muito, não.
- Ah, cachopa! Deixa lá: a mulher e a sardinha quer-se da mais pequenina, animava-me o António.
- É pequenina, mas rija, vede lá se apanhou o andaço de vómitos e caganeira que nos calhou a todos no ano passado!
Mau! A conversa tinha de mudar de rumo.
- Alice, para o ano já vais à escola?
Ai! Agora era a Alie que estava na baila, coitada. Zangada, escondia-se atrás da mãe, tapava a cara com o avental.
- Vá lá, moça, que as palavras não custam dinheiro!
- Por enquanto, António, por enquanto! E há palavras que custam: as dos jornais, da telefonia, dos livros...
- Ó cachopo! A gente não tem cá desses luxos, rapaz!
O António soltava um riso que parecia tosse.
- Nós aqui, se não vamos nós a falar, só ouvimos o gado e os grilos, ah ah!
- Pois é, António, não ouves porque há quem queira que não oiças, percebes? Para bom entendedor...
- Cala-te mas é!
A Maria ficava de repente séria, como se os repreendesse por terem dito algum palavrão.
- Tens razão, Maria, é melhor a gente falar de outra coisa.
Olha, já viste que este ano há-de haver muita azeitona?
- Pois é, o pior é arranjar que na apanhe: quatro homens e seis mulheres, vê lá, pelo menos. Os homens a dois alqueires, as mulheres, a metade. Vê lá tu quanto é que não é!
A conversa já tinha saído do diâmetro dos meus interesses.
Começava a olhar à volta: procurava primeiro as crias: gatinhos, poldros, cachorros, cabritos se os houvesse.
Ia atrás deles. Queria pegar-lhes ao colo, fazer-lhes festas, obrigá-los se possível a caminhar com uma pata na minha mão, sobre as pernas traseiras: “lavá-los a passear”...
Se não havia crias, ficava desiludida e triste.
Parava um bocado. Ia-me afastando dos outros, arrancando erva e chegando-me às ovelhas, de mão estendida.
Ou surripiava umas cascas de melancia para os porcos.
Os porcos! Chegava-me devagar, em passinhos, à beira da pocilga funda, pejada de lama e excrementos, como se atraída por um poço.
Pé ante pé, ia-me aproximando sem ruído, cheia de medo, até ver os dorsos arredondados, os rabos enroladinhos; as orelhas pontudas. Depois os ohinhos brilhantes, os focinhos fremindo, a grunhir.
Atirava-lhes uma casca: iam a correr, empurravam-se, mastigavam num instante, com os grandes dentes à mostra.
Mais um passo, mais uma casca. Agora os grunhidos eram mais insistentes ainda.
Eu ia-me chegando para lá e eles para cá. Às tantas a situação era de risco: eu a pontos de rolar atrás de alguma pedra da beira; eles empinados à parede, esticados e de boca aberta, querendo tirar-me o que quer que fosse das mãos.
E ali, no limite imponderável, quase a resvalar, ia repartindo a comida, de forma a prolongar mais aquele instante.
- Ó miúda! Olha que cais na furda e os porcos comem-te! És parva, ou quê?! Sai daí!
Ficava ainda um momento, de braços caídos, as mãos tocando a saia, em posição de sentido, eles a olhar-me expectantes, a tromba fremindo.
Recuava um passo, fitando-os ainda. Depois virava-me e desatava a correr, envergonhada e em susto, para junto dos outros.
Pegava um naco de pão, fingia que comia enquanto olhavam para mim.
À medida que as suas atenções derivavam para outros assuntos, ia-me retirando de mansinho.
Lá estava a capoeira dos pintos, com as mães. As outras galinhas e frangos, assim como o belo galo vermelho de crista em riste e cauda de brilhantes penas longas, podiam ciscar aqui e ali. Chegavam a entrar em casa, de onde eram corridos com o abano de palha.
- Xô, Xô! Larguem as sacas das sementes, seus filhos da puta! Deixa chegar a romaria, que eu vos digo! Vão para a panela! Xô!
A Maria, no fundo, era como eu: à sua maneira também amava os bichos e falava com eles, como se fossem uma espécie de gente, pois melhor que muita gente a entendiam.
Era um crá-crá-crá, um reboliço de asas, um revoar de penas, e lá iam eles a correr até chegarem a outro canto do terreiro, onde se juntavam e recomeçavam a eterna fadiga de esgaravatar e debicar insectos e sementes encontrados aqui e ali.

A crueldade sobre a « Não-se-Diz »




A “Não-se-Diz” era uma cadelinha mansa.
Não era útil porque não era feroz, logo não servia para guardar a casa.
Amarela-arruivada, vivia no desamparo do terreiro, enxotada se se aproximava faminta, as costelas salientes sob o pelo.
Tinha cachorros com frequência porque assim que nasciam lhos matavam.
Talvez a sua carência de afecto a fizesse ser tão prolífica.
Era muito infeliz.
Até uma criança notava o amor rejeitado nos seus olhos meigos.
Na casa de meus avós, nasciam muitos animais: cachorros, gatinhos, cabritos, burros, coelhos... havia sempre grupos de pintainhos deambulando atrás das mães.
Pude ver a lenta agonia de minha mãe, que morreu a meu lado, na mesma cama. Mas era um mistério total o acto de se nascer.
Uma tarde, a “Não-se-Diz” não teve tempo de se recolher num canto para parir, ou não a deixaram, porque saiu a ganir do palheiro, escorraçada.
À medida que tentava fugir, iam-lhe dando pontapés no dorso, na barriga inchada.... ela ia correndo enquanto os filhotes iam caindo de si, na carreira.
Voltava aos humanos um olhar de súplica, gania, gania!
O terreiro ficou atravessado por uma longa lista de sangue e pequeninos seres que se contorciam.
Aí, sim, a minha curiosidade fez-me olhar atentamente aquela horrível cena, que perpassa constantemente ante os meus olhos em lágrimas.
Estava aterrada e em pranto: não sabia mas entendia o sofrimento daquele animal desgraçado.
Corri e gritei, mas não me deixaram intervir: enxotaram-me também.

Calada num canto olhava e pensava:
Quando eu mandar (porque sempre falavam "quem manda agora sou eu;amanhã mandarás tu")não vou permitir que tal se faça!

O ASSASSINATO DA "NÃO-SE-DIZ"


ESTOU SEMPRE A VER O MEU PAI A LEVANTAR O SACHO UMA E OUTRA VEZ PARA PARTIR A ESPINHA DA POBRE CADELINHA AMARELA E MANSA, AMARRADA AO TRONCO DO PESSEGUEIRO, COM A COVA ABERTA AO PÉ DO TORO.
A POBREZINHA GANIA, SUPLICAVA E TENTAVA DESVIAR-SE, MAS A CORDA ERA CURTA E O SACHO CAÍA SEMPRE E SEMPRE SOBRE ELA, NÃO PARA A MATAR DE UMA VEZ, MAS PARA LHE IR QUEBRANDO AOS POUCOS OS OSSOS, QUE ESTALAVAM, E ELA A RASTEJAR SOBRE OS QUARTOS TRAZEIROS, E O SACHO IA E VINHA...

UM SATISFEITO
- "AHÃ!, AHÃ!, AHÃ!" ESCAPAVA DA GARGANTA DO ALGOZ.

NÃO ME ERA PERMITIDO FUGIR: PEQUENINA QUE ERA, NÃO PODIA ARREDAR PÉ.
TANTO O CORAÇÃO ME DOÍA E OS OLHOS SE ABRIAM DE ESPANTO... NÃO PODIA ENTENDER, MAS PRESSENTIA O HORROR QUE ME PERSEGUE E POR TODA A VIDA
CHORO.

... ESTOU SEMPRE A VER AQUELA CENA E É COMO SE FOSSE A MIM QUE O SACHO ATINGISSE .... E À CADELINHA AS ESTALADAS, AS SOVAS, OS PONTAPÉS, AS TAREIAS COM O CINTURÃO, QUE ME DEIXAVAM RISCADA DO NEGRO AO ROXO, DO ESVERDEADO AO AMARELO.

A CARA DELE SÓ MOSTRAVA SATISFAÇÃO QUANDO A FACA GOLPEAVA O PESCOÇO DA GALINHA OU A MÃO EM CUTELO EXECUTAVA UM COELHO.
COM O BRAÇO ERGUIDO, LUTAVA COM AS CONTORÇÕES DAS ENGUIAS A SEREM ESFOLADAS VIVAS, ÀS VOLTAS PELO PEQUENO PÁTIO DE CIMENTO, TAL ERA A LUTA, TAL ERA O GOZO.

OS OLHOS ESVERDEADOS TOMAMVAM UM BRILHO DE AÇO E A BOCA SEMI-ABERTA FICAVA-LHE BRANCA DE ÓDIO.

"Nem todos os Natais serão iguais"





Havia uma menina que não sabia a data certa do Natal.
Sabia, pelo frio, que era no Inverno.
Sabia, pelos cânticos na missa, qual era a época.
Vivia numa casa deserta de ternura.
Ao serão, de vez em quando, fervia-se azeite num grande tacho de cobre luzente, colocado sobre a tripeça de ferro, nas brasas da lareira.
Alguém tendia a massa das filhós, sobre um pano no joelho e as deitava na fervura, enquanto outra pessoa as voltava.
A si davam-lhe, por simpatia, a honra de as polvilhar com a mistura de açúcar e canela.
Árvores, só as que cresciam lá fora, agora de folhinhas recolhidas.
Por vezes a neve caía, recobrindo tudo de mágico encantamento.
A menina olhava o céu, que a deslumbrava! Parecia que descia, rodopiando do azul, em fiapos levezinhos e brancos.
Deitava a língua de fora e, sorrindo, estremecia, num arrepio delicioso, bebendo a água pura que se lhe desfazia na boca.
Nas mãos ambas, apanhava pedaços de neve, que tentava guardar consigo, para sempre prolongar esse momento mágico.
Levava-a para dentro de casa, resguardava-a. Era tão linda!
Porém, tão pouco durava! Logo desaparecia e a menina chorava lágrimas de pura inocência.
Nunca ninguém lhe dissera que o Pai Natal existia, e aos meninos visitava.
Dizia-se que o Menino Jesus deixava prendas no sapatinho... mas ela nem o sapato deixava, no limiar da borralha...
A menina só queria que o frio se fosse embora e viesse a primavera!

"De Amor e Drama"



Com um suspiro cansado, Isabel limpou o último prato, arrumou-o no armário,dobrou o pano da loiça.
O João vinha do quarto, onde deitara os meninos nas suas camas.
A chuva caía desde que raiara a aurora.
Infiltrava-se, pouco a pouco, nas brechas das paredes, tantas vezes recobertasde gesso e disfarçadas com a tinta, preciosamente guardada.
O vento zunia, abanava a casa, parecia que queria levar as telhas em revoada.
O frio infiltrava-se por baixo da porta.
João assomou-se à janela: lá fora, um rio escuro corria pela rua, arrastandolixo, que flutuava.
Puxou a cortina, sentou-se na beira da cama, apoiando a cabeça na concha dasmãos ambas.
Isabel foi ter com ele.
Passou-lhe o braço pelos ombros, puxou-o de encontro ao seio, afagando-lhe opescoço.
Ele pousou a cabeça no seu ombro.
Ficaram assim abraçados, por tempos infinitos, em silêncio.
Partilhavam a aflição do momento.
- Aconchegaste a roupa aos meninos? – Perguntou ela, baixinho.
- Sim. Coitadinhos, estão ambos muito assustados. O Chico pediu que dormissemjuntos, mas expliquei-lhe que o Zé é pequenino... prometi que para o ano...

Enquanto isso, uma língua de água infiltrou-se sob a porta.
Isabel levantou-se e acorreu a limpá-la, de balde e de esfregona.
Intentava absorvê-la, impedi-la que entrasse em casa.
Mas de nada servia!
Os chinelos encharcados tornavam-lhe os movimentos penosos, doíam-lhe as costase os braços, mas a água subia.
António não a impediu, nem lhe disse coisa alguma.
Não ousava afogar o seu instinto de mulher, dona de casa. Não ousavaadmoestá-la do desespero da hora.
A água chegava-lhe já aos tornozelos. Num ápice tornava num lago a sala,manchava a parede limpa, empapava o fino tapete.
Em breve não mais se viam os pés da mesa e as cadeiras flutuavam, como se ummágico perverso as desarrumasse por gosto.
António levantou-se de num salto, dando-se conta da dimensão do desastre.
Correu ao quarto, tocou ao de leve no filho mais velho:
- Acorda, Chico, não tenhas medo.
O menino olhou-o surpreso. Mas vendo diante de si a face doce do pai, numinstante readormeceu.
- Veste-te, filho, depressa! Temos de sair de casa.
Chico reabriu os olhos, pensando ser madrugada.
Puxou pela camisola e começou a enfiá-la, sonolento, sobre a outra, do pijama.
No berço, o bebé dormia, sorrindo na inocência, abria e fechava a mãozinhadescoberta sobre a colcha tricotada.
Isabel entrou chorando.
Desistira.
Entendia enfim, sem palavras, o dilema do marido, que prefira deixá-la lutarsozinha, tomar consciência da iminente desdita, afim de que encontrasse em simesma coragem para enfrentá-la.
O seu bom senso acordara.
Puxou dos cobertores, envolvendo neles o menino, que retirou do berço eaconchegou contra o peito.
O menino, apertado no embrulho, fez beicinho, choramingou, mas reabrindo osolhinhos e encontrando o rosto da mãe, sossegou.
O mais velhinho, porém, olhava em volta, assustado.
Já entrava água no quarto.
O menino pôs-se em pé, descalço ainda, sobre a cama.
Não encontrara razão para a azáfama inusitada. Sustinha o choro, que ameaçairromper da boquinha entreaberta.

Estendia os membros inertes ao pai, que lhe ia vestindo a roupa. Na cabeça, ogorro; nos pés as peúgas pequeninas, os sapatos desgastados.
Sentiu-se erguido, ganhou confiança de novo.

António e Isabel entreolharam-se, num mudo entendimento.
Tentavam não transmitir de si mesmos a aflição aos filhos.
De coração em alvoraço, olharam em volta, nada encontrando que valesse a pena ser levado, iam-se despedindo do pouco que haviam juntado com empenho.
A água subia depressa, o tempo urgia.
Era preciso ir embora.
Abrindo a porta, uma torrente negra quase atirava Isabel por terra. Agarrandodesesperadamente o filho, firmou-se apesar do impacto medonho da água quejorrava, da rua pela casa adentro, em remoinho.
António passou-lhe a frente, segurando-a

Chico, percebeu enfim que algo de muito errado se passava à sua volta.
Agarrado a seu pai, abriu a torrente do pranto, dando vaza à aflição.
Seguiram os quatro, no escuro, à procura de abrigo.
A correnteza aumentava. A chuva continuava.
Sirenes soavam longe.
- Socorro! Socorro! - Gritavam.
Mas ninguém os escutava.
Iam sozinhos num mundo que desabava.
Avançavam passo a passo, os pés escorregando na lama, os braços envolvendo osfilhos, que choravam ambos, desconhecendo porquê, mas sabendo-se em perigo, porinstinto.
Quanto tempo terá durado a deriva?
A correnteza ora os arrastava ora os impelia.
Alguém gritava do escuro:
- Está aí alguém?
- Socorro! Socorro! - Responderam eles, aflitos.
A voz tremia, mas a coragem redobrava.
Iam chocando com o vulto de uma carrinha.
Nada se via, se distinguia, a não ser quando quase se tocava.
Um vulto, de fato iridescente, atirou-lhes uma corda.
Lesto, António agarrou-a e passou-a na cintura.
Apertou a mão de Isabel, que se lhe estendia. Puxou-a para si com força eenrolou-a no extremo, com muito cuidado não fosse magoar o bebé, acordado,porém silencioso.
Da carrinha, o homem que agora se via ter um colete de riscas amarelas,puxou-os com toda a força.
Entraram a custo pela porta estreita.
Sentaram-se no banco. Um suspiro de alívio soltou-se. Sentiram todas as forçasesvaírem-se dos seus corpos.
Entregues, abraçaram-se um ao outro, no colo os filhos, presos no amor que osunia, agora mais do que nunca!

"Carta de Natal de um menino iraquiano"



Meu querido Pai Natal, nem sei o que peça.
No ano passado deste-me uma metralhadora e uma manta, mas este ano já nem sei oque te peça!
Talvez uma escola nova.
Faz tanto frio, que estou apertado com os meus companheiros, uns contra osoutros, na formatura.
Todos os dias, a minha mãe se despede de mim como se fosse para muito longe.
Enfia-me o barrete justo na cabeça e, ao abraçar-me, chora.
Depois fica muito tempo a olhar, de lá do arame farpado.
A professora só grita. Parece sempre zangada.
Desde a primavera passada tudo mudou na vida.
Há três meses que venho de novo às aulas.
Passo por poças de sangue, que já ninguém cobre de areia.
Se vejo gente deitada, pode estar viva ou estar morta. Tem de se termuito cuidado, passar de longe, seja lá como for.
Desde que o Abi morreu não tenho com quem brincar.
Não me deixam ir à rua, nem sequer correr no pátio de casa.
Tenho de ficar de ficar sentado no chão a ver a minha mãe medir o arroz e aágua, o chá e a farinha, o sal e tudo.
Aborreço-me, temos sempre de comer as mesmas coisas.
No fim a mãe raspa as panelas e as colheres e limpa tudo com trapos antes de aspassar por água, porque a água é pouca e nem sempre se encontra.
Fico a olhar para os livros, os velhos têm páginas a menos e os novos têmfolhas em branco.
Dantes, a fotografia do Grande Pai e Mestre estava em todas elas, em todas asparedes, em todos os lugares.
Agora nesses lugares estão buracos, os tijolos aparecem por entre a argamassavermelha. Tiras de papel esvoaçam, comidas pela areia. Quando passamosarrancamos tiras, fazemos bolas pequenas, mas nem podemos ir aos pontapés pelasruas, porque há mil perigos espalhados, se a gente tropeça pode ser levado nosares de repente.
Quando oiço tiros estremeço e o xixi escorre-me pelas pernas.
A minha mãe olha-me com cara séria, mas já não ralha.
Sobretudo desde o dia em que a bomba rebentou dentro da escola.
A professora cantava e nós em coro com ela.
De repente um grande estrondo, um vento forte, abanou tudo, caímos no chão aosgritos.
Queríamos fugir mas estávamos desorientados.
Os vidros voavam e entravam em nós sem darmos por eles.
Só depois olhámos uns para os outros e nem nos reconhecíamos, estávamos negros,cheios de feridas, de sangue, de farrapos.
À nossa volta não se distinguiam senão destroços. Ouviam-se muitos gemidos ealguns não se levantaram.
As ambulâncias demoraram, levaram os que puderam, ficámos agarrados uns aosoutros, tremíamos e rezávamos, as feridas agora doíam muito muito mas nãotínhamos remédios.
Sonho sempre que oiço estouros e acordo aos saltos.
Tenho medo dos soldados, vistam o que vestirem, não gosto os ver passear pelasruas, armados até aos dentes.
Falam uns com uns com os outros numa língua que não se entende.
Se me acenam e sorriem, fujo. Se me estendem a mão, penso que vão agarrar-me ecorro o mais puder, escondo-me.
Este ano não se fará nenhuma peça de teatro.
Cantaremos o hino à pátria iraquiana e pronto, disse-nos a professora que andaaterrorizada desde que os filhos morreram.
Já não consegue dar aulas, por mais que disfarce.
Puxa o lenço para os olhos, mas fica muito tempo a olhar os livros sem ler,volta-nos as costas, mas eu percebo que chora em silêncio, tem sempre os olhosvermelhos.
Irrita-se à mais pequenina falta.
Pai Natal, faz com que a mãe consiga uma posta de carne, na carrinha branca.
De vez em quando vêm jornais velhos a embrulhar coisas e a mãe fica a ver asnotícias como se falassem de outro mundo, de olhos arregalados.
Eu tenho muita vontade de lhe fazer perguntas, mas calo-me, afinal sou o chefeda família desde que o pai anda no deserto.
Tenho de impor respeito.
Passando o Natal, em Janeiro, já farei nove anos.
Minha mãe já não me deixa adormecer perto dela nem me dá beijos.
Diz que tenho de ser forte, que vou ser um soldado para libertar a pátriairaquiana dos invasores do ocidente.
Ia dizer um nome, mas é proibido.
Se o disser, ficarei três dias preso.
Sem vir à escola.
Sem cantar no frio do pátio o hino da pátria.
Distraio-me muito pensando. Mas reparam se não canto.
Portanto tenho de cantar enquanto penso em tudo.
Quem sabe se pensar muito sonhe menos e não acorde, na noite escura, aosgritos, o xixi correndo pelas pernas abaixo, a tremer sem conseguir parar.
Pai Natal, não sei que pedir-te este ano.
Trás o silêncio de volta!

"O Homem, a Mulher e a Sabedoria de Ser"




... E após ter secado, endurecido, o barro com que fizera Adão, Deus olhou,
olhou, e pensou para consigo:

- Geová (deve ser apelido), Tu és capaz de fazer melhor!

Aí, pegou noutro pedaço de barro e moldou, maravilhosa, a Mulher.

Ficou contente Deus e mais contente Adão, quando a viu... chamaram-lhe
Lillith.

Mas aí, quando lhe mandaram A Lei da Submissão... disse Lillith que não!

Quiz igualdade em tudo: - nada de ficar por baixo!

Deus, irritado, expulsou-a do Paraíso. E Adão guardou-a no coração saudoso,
que nem... o céu alto e azul em que uma linda nuvem desaparecera.

Chorava Adão sem parança, inquieta sua alma, ardente sua solidão
celibatária.

Deus condoeu-se e, estando Seu filho adormecido, retirou-lhe uma costela,
das de menor importância e fez de carne e osso a Mulher Eva.

Mandaram-lhe A Lei da Submissão.

Astuta, nem disse que sim nem que não... mas quedava-se sonhadora,
passeando, recolhendo em si quanto via mas mais queria, ansiava por mais...
Sabedoria.

A Serpente observava dos ramos daquela - A - árvore... e um dia, em que Eva
meio adormecida, deitada nua junto do tronco sonhava, murmurou-lhe:

- Eva! Prova desta fruta!
- Não me é permitida, retorquiu Eva, assombrada!
- Prova, deixa de ser parva! É a fruta mais desejada, o Dom da Sabedoria....

Eva fechou os olhos e comeu-a, deliciada. Tão sumarenta e doce a achava que
correu, correu... e deu parte da sua parte a Adão!

Ele, vendo-a tão bela e ansiosa, nem se lembrou de mais nada... engoliu... e
já se arrependeu!

Ficou-lhe A Sabedoria entalada na... garganta!!!

... e a Mulher, embora castigada, pegou-lhe na mão, acompanhou-o tanto tempo
quanto o que a Humanidade tem, luta que luta, em toda a hora, na tristeza e
na alegria.

Deixa que contem proezas! Sorri, em Sabedoria e floresce a cada dia, de mão
dada com o Adão da tua, para a tua Vida!

"Algumas palavras sobre intolerância e não-violência"




Intolerância é o estado de espírito daquele que se sente inseguro; não tem valores firmes; se sente ameaçado.
Sem capacidade de resposta inteligente, recorre à violência do poder, ao autoritarismo, para subjugar os que, por diferentes, lhe são estranhos.
Apoia-se no poder económico, corrupto, pois é o trabalho da maioria pobre e trabalhadora que sustenta uma minoria de privilegiados, ociosos e arrogantes.
Os mais fortes (força fictícia, porque baseada em riqueza efémera) submetem os mais fracos.
Este poder é fictício porquê?
Dou o exemplo que no nosso tempo fomenta a guerra que nos leva ao caos; a tanto sangue derramado; a tanta aflição e sofrimento de toda a ordem e em tantos países do mundo.
Sabemos que o petróleo é objecto de cobiça.
Porém, sabemos também que é uma fonte de energia não renovável.
Causadora de poluição: o ambiente no nosso Planeta (e não existem outros habitáveis, que se saiba) degrada-se dia a dia.
O aquecimento global altera o clima, provoca catástrofes, que tendem a piorar a curto, médio e longo prazo.
Seria inteligente empregarem-se os recursos de que dispomos, juntando as mentes brilhantes do mundo, na investigação de fontes de energia alternativa, sadia, perene, tais como a força dos ventos; dos rios; da luz solar; das marés.
Mas não!
Em vez disso os senhores do Poder investem em armas cada vez mais destrutivas.
Tentam superar-se em força.
Superam-se em falta de visão e em estupidez!
Faltam escolas, faltam hospitais, faltam livros, faltam meios para que os pobres capazes possam fazer cursos superiores.
Desgastam-se os bens públicos dando cursos a jovens enfastiados, improdutivos, que tiveram a sorte de nascer em berços de ouro.
Por que caminhos seguimos?
Os artistas são tidos como visionários e loucos; a não ser uns poucos cujos meios económicos lhes permitem a auto-promoção; cujos “estômagos” lhes permitem o servilismo aos Poderosos.
Para onde caminhamos?
É necessário educar os meninos, para que não seja preciso castigar os homens... mas seguimos num ciclo vicioso de consumo, de ambição desmedida para consumir mais ainda.
Impera o imediato, não se pensa verdadeiramente no futuro, com olhos de ver e medir as consequências dos caminhos que trilhamos.
O exemplo deveria vir de cima; é péssimo o exemplo que nos chega!
E sem informação nem formação, onde o discernimento, o exercício do livre arbítrio dos povos?
Onde o exercício efectivo da Democracia por que lutámos e lutamos?
A nós, poetas, resta-nos
Cantando espalhar em toda a parte, se a tanto nos ajudar o engenho e a arte!
Precisamos despertar consciências, lançar pontes cada vez mais firmes entre os Povos de todo o mundo!
Com respeito pelas diferentes culturas, costumes e crenças.
Amando-nos uns aos outros como a nós mesmos!

"Para que males se não repitam, é preciso que não esqueçam!"


Mocinha, não teve mocidade.
Se a teve, passou-a em dor, que sublimou como em criança: evadindo-se!
Sublimava os maus-tratos e o desespero escrevendo, lendo muito e sonhando....

Não me lembro de ter um vestido mesmo meu.
Não me lembro de ter os livros nem o material que me exigiam no liceu.
Nem mesmo podia comprar as folhas regulamentares, timbradas, em que eram entregues os testes. É que custavam três tostões: pedia-os ao meu pai, mas ele respondia:
- Ainda ontem fizeste um teste, e já me vens pedir dinheiro para o papel de outro?!
- Vai mas é....


Parecia um doutor, mas tinha uma língua porca. Fazia-me tanto nojo ouvi-lo, ver-lhe o esgar de troça e desprezo no rosto!
Os olhos, que mudavam de cor, a brilhar cinzentos de raiva, de ódio, como facas que me quisessem trespassar!
Dizia sempre que me desejava ver morta, e à minha avó, e à minha madrasta, e aos cunhados, e aos irmãos.
Vivia ora de bem ora de mal, com uns ou com outros.
- Ah se não houvesse cadeia!
- - Maldita a hora em que não te peguei pelas pernas e não te esmigalhei a cabeça contra uma parede!
Tratava-me por “estupor”, não pelo meu nome.
Mandava-me “ganhar dinheiro para a beira das estradas”... eu nem entendia o que ele dizia, mas que era mau pela forma como o dizia.
Passava por mim e remordia:
- “A morte anda cega!”
Tinha tanto ódio dentro dele e tanta sede de matar!
Andou em tribunal a vida inteira, por isto e aquilo, com este ou aquele... só sabia dizer mal. Gritar por tudo e com todos.
Quando entrei no secundário, aos dez anos, acabada de chegar do desterro em que me deixaram aquando da morte de minha mãe, num abandono completo, no isolamento que nem era uma aldeia, vi-me de repente numa “família” desconhecida, citadina, de hábitos completamente diferentes.
Vinha cheia de ilusões!
Quando era pequena, perguntava a toda a mulher simpática:
- Posso-lhe chamar “Mãe?”
Por bem-parecer, matricularam-me num colégio de padres, para crianças ricas, e a pobre menina que eu era viu-se caída de repente naquele ambiente estranho.
O meu pai e a mulher dele viviam numa quinta.
Eu vinha de manhã, em jejum, de autocarro, sem conhecer os caminhos que tinha de percorrer, enganando-me com frequência na paragem em deveria sair...era tão pequena que não chegava ao botão da campainha para avisar o condutor, a viagem era um sobressalto.
Se me enganava, percorria apressadamente a mesma estrada, sem passeio, pela berma estreita.
As matérias das aulas eram fascinantes!
Queria sempre aprender mais e mais: perguntava de tudo aos professores que, vendo o meu interesse, se detinham a explicar-me assuntos além do programa escolar nos intervalos.
E havia a biblioteca!
A minha sede encontrara ali uma fonte!
Lembro sempre com carinho as minhas professoras, compreensivas, em contraste com as da escola primária, onde eu nada tinha a aprender, e até por isso me hostilizavam.
Era boa aluna. Lembro-me de que um dia, no intervalo entre duas aulas, a professora de Ciências Naturais me explicou resumidamente a Teoria de Relatividade!
Absorvia tudo, tal era a minha fome de conhecimento.
Só não me dava bem com a Matemática.
Chegado o fim do primeiro ciclo, deu-se o estranho caso do exame:
Tirara, numa escala de 1 a 20 tirei 3,4 a matemática, mas nas outras disciplinas as notas eram tão altas que tinha, ainda assim, média para dispensar da prova oral.
Tirara a melhor nota a francês; recebera um prémio extra.... Mas como se explicaria esta discrepância?!
Fiz a prova oral, a única da minha vida, e ainda bem: subi em todas as disciplinas.
Não continuaria, porém, no colégio... e não havia liceu a não ser em Setúbal, enquanto se esperava a conclusão de um pavilhão pré-fabricado.
E lá fui eu, na camioneta das seis da manhã, perdendo-me quase todos os dias, pois nada conhecia, nem conhecia ninguém tão longe.
Perguntando aqui e ali, lá chegava, para indiferença geral, pois era certo que estava ali de passagem.

O meu pai e a mulher vieram morar nesta cidade, eu passei a frequentar o liceu de madeira, onde nada se assemelhava ao colégio onde antes estudara.
Foi o tempo em que vivi entre a raiva e avareza de meu pai e a vingança sem sentido da minha madrasta.
Fazia todo o trabalho doméstico, mas as desavenças entre eles desabavam em mim, que era o bombo da festa; um saco de pancada.
Sem refúgio, no total desabrigo, sequer o amparo de bem me sentir na escola desconhecida, só me ocorria o suicídio.
Olhava por todos os ângulos a minha vida, porém nenhuma saída!
Pedi a meu pai que me internasse num colégio em Tomar, famoso pelos castigos, que transpiravam das paredes altas da Ditadura Salazarista.
Ele ainda pensou um pouco, mas respondeu que não: teria de levar enxoval, e não iria fazer despesa por minha causa!
Todas as noites a minha madrasta, que era enfermeira, me dava quatro comprimidos de Izonox,: tinha de tomar um na sua presença, depois dizia:
- Se tomares os quatro, morres!
E voltava costas, de lábios cerrados.
Atrás da porta fechada, eu pensava:
- Não! Não te darei esse gosto!
Deixava-me cair na cama. O corpo ia ficando dormente, primeiro nas extremidades, depois aquela dormência alastrava e apagava-se tudo.
Ao outro dia de manhã, saltava ao ouvir o estremecer da porta, com um forte pontapé da bota militar de meu pai.
Era como se uma mola me impelisse, num susto, num sobressalto sem nome!
Mas se o torpor me tomava, ele atirava-me para a cara um copo cheio de água fria e eu, encharcada, nem sabia onde estava, tremendo na confusão, voltava ao escutar os insultos inexplicáveis do costume.
Não aceitaria a morte fácil que me era sugerida... mas ficava no passeio, observando a velocidade dos carros... escolhendo a hora de dar o salto.

Não me ocorria que poderia ficar aleijada, sempre e só me imaginava enfim liberta.
Naquela casa o pouco que ouvia era acerca de acidentes, o meu pai chefiava uma divisão de Polícia de Transito.
Esta a ideia: morrer atropelada, repentinamente e pronto!


... Mas olhava pela janela e vinham-me à mente as conversas que escutava acerca dos problemas ocorridos com condutores, embora contadas ao inverso... e tinha pena de quem me matasse sem culpa e fosse sofrer consequências...
E por este dó, é que estou aqui ainda.

Trabalhava muito: na casa de minha madrasta, na de minha tia...que tinha um filho pequeno e ajudei a criar.
Valeu-me o amor que dedicava a esse menino.
Escrevia muito, lia muitíssimo.
Porém, pouco lia dos livros de estudo: aprendia no ar, retomei a paixão de aprender que me levou sempre a querer saber mais...
Frequentava as bibliotecas públicas, emprestavam-me livros, que devolvia pontualmente, aproveitando todos os momentos para ler, pelo que todas as pessoas me emprestavam livros com confiança.
No liceu, fiz amizades para toda a vida, entre as colegas e professores.
Ganhei respeito e afecto.
Na casa, só insultos, tareias de cinturão diárias, palavrões aos berros, estaladas ao mínimo pretexto.
Quer dele, quer dela.
Tinha vergonha de vestir o fato de ginástica, pois o meu corpo estava cheio de vergões, eram de todas as cores: vermelhos, negros, roxos, esverdeados...
Dava uma desculpa, que estava adoentada... que me doía a barriga...
Por essa altura já me autorizavam a que tirasse, com cuidado, uma folha do meio dos cadernos agrafados para responder aos testes... As faltas de material, porém, não podiam ser toleradas... e ao chegar a casa a nota respectiva, o inevitável castigo desabava.
Entre o meu pai e madrasta, vivia-se em guerra aberta.
Ela era especialista em guerra psicológica e, se bem me batesse, o seu maior prazer era fazer-lhe queixas, inventando histórias, exagerando pequenas faltas... e ver o furor e a raiva cega com que ele me desancava.
Eu não abria a boca. Não me desviava.
Tremia de medo e chorava, quando sozinha, porém nunca nenhum deles me viu uma lágrima!
A pancada era tão natural como a chuva. O que mais doía eram as palavras; o sentir-me a mais; o saber-me objecto de um ódio que nada explicava.
Na presença deles, sobretudo de meu pai, a minha atitude era de total obediência e passividade.
Tal devia acrescentar-lhe a raiva, pois por pior que fizesse não sentia que me dominava.
Um dia fechou a porta da sala, ele de um lado, eu do outro, em frente à janela:
Zurziu-me de alto abaixo, com o cinto silvando e só dizia:
- Choras ou não choras?
E de novo
- Choras ou não choras?
Cansou-se. Fartou-se... mas não me mexi nem chorei!

Não se iludam: as crianças maltratadas não falam!
Ou não falavam.
Os vizinhos escutavam coisas, saberiam coisas... mas temiam-no.
Eram conhecidos e respeitados; eram possuidores de bens, eram funcionários que ocupavam cargos elevados para a época.
Na mais funda Ditadura, nem um dedo se mexeria. Tudo era silêncio e foi silêncio até que a morte de uns e maturidade e independência conquistada por quem sofreu quebrou a casca dura e opaca do silêncio.
Que os tempos mudem e nunca mais se repitam!
Mas para que tal aconteça, é preciso que não esqueçam!