segunda-feira, abril 05, 2004


A crueldade sobre a « Não-se-Diz »




A “Não-se-Diz” era uma cadelinha mansa.
Não era útil porque não era feroz, logo não servia para guardar a casa.
Amarela-arruivada, vivia no desamparo do terreiro, enxotada se se aproximava faminta, as costelas salientes sob o pelo.
Tinha cachorros com frequência porque assim que nasciam lhos matavam.
Talvez a sua carência de afecto a fizesse ser tão prolífica.
Era muito infeliz.
Até uma criança notava o amor rejeitado nos seus olhos meigos.
Na casa de meus avós, nasciam muitos animais: cachorros, gatinhos, cabritos, burros, coelhos... havia sempre grupos de pintainhos deambulando atrás das mães.
Pude ver a lenta agonia de minha mãe, que morreu a meu lado, na mesma cama. Mas era um mistério total o acto de se nascer.
Uma tarde, a “Não-se-Diz” não teve tempo de se recolher num canto para parir, ou não a deixaram, porque saiu a ganir do palheiro, escorraçada.
À medida que tentava fugir, iam-lhe dando pontapés no dorso, na barriga inchada.... ela ia correndo enquanto os filhotes iam caindo de si, na carreira.
Voltava aos humanos um olhar de súplica, gania, gania!
O terreiro ficou atravessado por uma longa lista de sangue e pequeninos seres que se contorciam.
Aí, sim, a minha curiosidade fez-me olhar atentamente aquela horrível cena, que perpassa constantemente ante os meus olhos em lágrimas.
Estava aterrada e em pranto: não sabia mas entendia o sofrimento daquele animal desgraçado.
Corri e gritei, mas não me deixaram intervir: enxotaram-me também.

Calada num canto olhava e pensava:
Quando eu mandar (porque sempre falavam "quem manda agora sou eu;amanhã mandarás tu")não vou permitir que tal se faça!