segunda-feira, abril 05, 2004


"Ouçam a longa história de meus males
E curai a vossa dor com a minha dor
Que grandes mágoas podem curar mágoas"

Luiz de Camões





Terei sido das primeiras crianças salvas na primeira maternidade de Lisboa.
Chegando à noite meu pai do trabalho, me encontrou-me a chorar a chorar. Meu pai calou-me com um valente par de açoites.
Dizem que não tereia mais de quinze dias.
Passados uns tempos fui à terra dos antepassados, afim de ser baptizada na velha igreja matriz.
Contrataram uma ama-seca, a Henriqueta, afim de ajudar minha mãe a cuidar de mim.
Mas meu pai não permitiu que ela nos acompasse para Lisboa.
Adoeci com a febre tifóide. Ouvi dizer que durante muitos dias ardi em febre, os médicos não descobriam que mal teria.
Roxa, fui levada a correr para o Hospital de Santa Maria, que estava em obras. Lembro-me vagamente de ir ao colo de alguém e ver pedras amontoadas nos cantos dos patamares.
De umas portas castanhas com vidros pequenos, que me separavam-me dos outros. Do carinho das enfermeiras.
Ás vezes dois vultos negros apareciam, indistintos, além dos vidros.
Então chorava de medo que me levassem.
Ouvi a minha avó contar que eu “odiara a família"... quantos meses teria?
O negro dos vultos seria o luto pela morte recente do meu avô Petronilho, também meu padrinho.
Fazia frequentes visitas à casa da minha madrinha (avó materna), com os meus pais - que estranha soa esta expressão!
Relâmpagos de memórias, cenas dispersas, cruzam a minha mente.
Vivíamos em Campolide numa casa enorme, com o tio Tomás e a mulher dele, a tia Sílvia.

Paira ainda diante dos meus olhos aquela cena inexplicada e violenta, cuja causa reposa no túmulo dos dois irmãos, como Abel e Caim, tentando matar-se.
Achava-me no meio da cozinha ladrilhada de vermelho, no chão via lagos de sangue.
A minha mãe vestia uma blusa azul clara com rendinhas brancas e uma saia com losangos de xadrez, salpicada de vermelho.
Eu, umas chinelitas encarnadas feitas de uns antigos sapatos e uma camisita cor de açafrão.
No fogão, uma enorme cafeteira aquecia água para o banho.
O meu pai e o meu tio lutavam debruçados da janela, que tinha anteparos de ferro forjado: um de pistola em punho e o outro tentando atirar o adversário pela janela abaixo. Tudo era confuso.
De novo se arrastaram para dentro, aos murros e vociferando.
De repente, a tia Sílvia pega na enorme cafeteira e acerta em cheio na cabeça do meu pai, que caiu inerte.
Lembro-me de ir ao hospital ver o meu pai, pálido, a cabeça toda enfaixada em gaze.
Sofrera uma fractura no crânio, perdera muito sangue e, dizem, estivera à beira da morte.
O caso saiu nos jornais mas o processo foi abafado por um primo advogado.
Quanto a mim, andava a correr pelos corredores brancos e polidos.

A minha mãe piorava dia a dia, foi passar uns tempos ao Louredo.
Não sei se terei ido também se terei vindo passar mais uma temporada em casa da tia Benvinda.
Depois de meu pai ter escrito inúmeras petições dizendo que minha mãe padecia de uma doença incurável, acabámos por ir viver para Coimbra, a terra dos doutores... o último reduto de esperança.
Pouco tempo tinha vivido com a minha mãe e menos ainda com ela e o meu pai.
Nas minhas andanças, fui criada um pouco com a minha avó materna, a minha mãe, o meu pai, a tia Benvinda e as tias-avós, irmãs do avô Petronilho.
A vida mudava radicalmente de cada vez que me mudavam de uma para outra casa: ora estava na cidade, ora estava no campo. Ora as coisas deveriam ser de uma maneira, ora ao contrário.
Nunca tive família nem estabilidade, nem ninguém se afeiçoou à incómoda criança, que era um fardo a transportar de um lado para o outro, conforme as conveniências de cada um.
Em Coimbra, porém, as coisas não corriam de melhor feição.
Minha mãe já estava farta de correr médicos e cada dia estava pior.
Apenas havia um a mulher-a-dias que vinha limpar a casa e passar a ferro.
A Henriqueta ficara a servir a minha avó, que se lhe afeiçoou à medida que se ia desapegando da filha condenada a morrer em breve.
Era eu que ajudava em tudo quanto o inchaço da minha mãe não a deixava fazer.
A tragédia que era cozinhar arroz, que ora ficava aguado ora se pegava ao fundo do tacho!
Depois, num alguidar no chão da cozinha, diluíam-se na água quente umas raspinhas de sabão que vinham numas caixas parecidas com as dos fósforos.
O esfregão depressa passava a boneca... e eu perdia-me durante horas naquela tarefa que prolongava o mais podia.
Minha mãe já estava toda inchada e começavam a abrir-se chagas nas pernas, por onde um líquido escorria.
Sentava-se na beira da cama e eu no chão, sobre o meu tapete feito de pele de coelho e forrado de tafetá cor-de-rosa.
Molhava um pano limpo num alguidar com água morna, lavava aquelas feridas e enfaixava com ligaduras as pobres pernas reluzentes e disformes.
Eram momentos de uma silenciosa intimidade... até que um dia o meu pai chegou e nos viu.
Desatou a gritar, vociferando veneno como era o seu jeito, que aquilo não era trabalho que eu fizesse; que podia ser contagioso....mas quem o faria por mim?!
Passava à tarefa seguinte: ler o jornal "Primeiro de Janeiro".
Ainda me lembro dos bonecos dos anúncios: o "Sr. zig-zag", que tinha cabelo de lâmpada e corpo com um raio que viesse acendê-la.
E dos “cabeçudos”, anúncios em que era descomunal o tamanho das cabeças em relação aos corpos, o que me divertia muito.
Havia discussões: o meu pai nunca soube ter compaixão por ninguém e a minha mãe tornava-se impaciente com a doença.
Sem ninguém que a tratasse, foi então para o Louredo, de onde não mais voltou. Não me lembro se fui com ela ou para onde me calhou ir nessa altura, mas foi lá que nos encontrámos para juntas vivermos os seus últimos dias.
A partir do outono desse ano, não mais se levantou de uma cadeira de rodas, ao canto da lareira, nem mesmo para dormir.
Tinham retirado uma rodela do fundo e colocado um bacio por baixo.
Depois de desenganada por todos os médicos, correu todos os curandeiros ... estava perdida; estava por tudo.
Pouco falava. Mas cantava - cantava com uma voz tão linda que vinham pessoas de muito longe escutá-la.
Às noites, em volta da braseira de cobre, lia... lia histórias maravilhosas que se passavam em países longínquos e eu imaginava enquanto escutava... palavra a palavra uma imagem surgia ante meus olhos de criança.
Passei todo esse inverno aos pés dela.
Os outros iam cuidar das suas vidas: iam para perto, para as hortas; iam para longe para as colheitas;os plantios; as podas; ninguém parava aonde nada se pagava.
Era meu dever chegar-lhe um copo de água, uma coisa ou outra de que necessitasse.
Ela fazia rendas intermináveis, criava novos modelos; bordava o seu infindável enxoval - com pontos de ajour, que me ensinava, bainhas abertas e muitas letras entrançadas - um A e um M, em lençóis de fino linho que nuca viriam a ser estreados - ou se o foram, sabe-se lá que iniciais teriam os nomes de quem se deitou neles!
Eu descia a escada, as galinhas esgaravatavam livres no terreiro, algumas com bandos de pintainhos atrás.
Corria, sobretudo se o vento fosse tão forte que quase me levantasse... imaginava-me voando, deliciada!
- Anda cá, sua cadela! – Gritava minha mãe.
O meu voo parava e eu, de cabeça baixa, ia...escutava todas as injúrias calada; nos meus ombros débeis desabava toda revolta contida pelo abandono, pela doença, pela vida cerceada.
Havia ainda a minha bisavó, com mais de noventa anos.
Andava curvada, lábio pendente, blusa com folhos na cinta, encostada à pesada bengala.
Forte e habituada a mandar a vida inteira.
Arengava, arengava... e o melhor era passar de longe, porque a maldita bengala por tudo e por nada se levantava e me zurzia.
Se não, estendia as manápulas e crava-me unhadas na carne, que infectava. Ainda tenho marcas.
Mas se estava de boa maré, contava interminavelmente a história da família, desde tempos imemoriais, desde o tempo de reis muito antigos e falava das juntas de bois, das queijarias, das criadas e do criado que o touro ia matando....
E que, no dia em que proclamaram a Republica, saíra aos saltos no terreiro, todo contente, com as calças ao contrário: a braguilha abotoada no traseiro!

Assim chegou a primavera, a mais linda de todas as que já vi: a mais florida, a mais poética, a mais morna e a mais fresca.
No dia primeiro de abril a minha mãe completara vinte e seis anos - passou despercebida a data, como passavam todas as datas de festa - que festas haveria?
Havia a matança; havia uma altura em que fritavam filhós num grande caldeirão de cobre se ia à missa do galo, onde se cantava; havia o dia em que o padre passava a dar o Menino Jesus a beijar de casa em casa, onde se armava um altar coberto de toalhas de rendas brancas, bolinhos e acepipes, licores e vinhos,
que o sacristão, de opa, carregava para a paróquia.

Minha mãe nos últimos tempos dormitava, dormitava... as jugulares do seu pescoço tão grossas e azuis na brancura da sua pele fina, palpitavam devagarinho.
Haviam-lhe colocado sanguessugas nas pernas, mas as pernas não desincharam. As sanguessugas, porém, fartaram-se até se despegarem e irem de novo para o pote de barro onde se guardavam.
Às vezes o médico passava por lá e via as duas: avó e neta.
- Ai pudesse mudar-se o coração da velha para o peito da nova!,
dizia.
Abanava a cabeça e lá ia, nem sequer se lembrando ou que alguém lhe lembrasse que havia ali uma menina pequena, desesperada com dores de ouvidos, com diarreias, com males de toda a espécie.
Uma menina que mal crescia mas ninguém reparava... Interessava lá se crescia!
Tinha uma missão:
- Se vires a tua mãe morta, corre a avisar a gente antes dos vizinhos darem conta!
De súbito minha mãe pareceu acordar de um qualquer sonho.
Melhorou de um dia para o outro, mandou chamar o padre, confessou-se, comungou, encomendou um novo missal.
Tão logo a visita se foi, recaiu naquela sonolência, cabeça inclinada, as mãos sobre o colo da saia de chita franzida ... ela, que tinha sido uma menina tão bem-posta e enfeitada, que nunca repetia uma toilette, tinha agora duas saias franzidas de quadrados pretos e brancos...
Os seus lindos sapatos de saltos muito altos alinhavam-se no palheiro havia muito tempo.
No dia cinco ficou engasgada, como se algo se lhe entravasse na garganta quando respirava.
Vieram todas as velhas da aldeia, encapuçadas nos lenços pretos puxados por cima dos olhos, de lábios apertados.
Assim entravam, assim saiam, abanando a cabeça de um lado para o outro.

Havia muitos meses que não se deitava.
O corpo imenso tinha tomado as formas da cadeira: as pernas em ângulo recto.
Perguntaram-lhe
- Queres deitar-te esta noite na cama, Alice?
- Tanto me faz, respondeu, rouca.
Levantaram-na, a mãe de um lado, a Henriqueta do outro, lá a arrastaram para a divisão contígua e depuseram o seu corpo disforme sob o lençol. Eu aconcheguei-me a seu lado, a mãe dela do outro. A Henriqueta dormiu nesse dia naquele quarto.
Passei a noite a escutar aquela respiração com um farfalhar alto, por muito tempo.
Pediu uma pastilha para refrescar a garganta. Deram-lha.
Sentia-me adormecer.
No escuro, escutei um murmúrio: “vou-me embora, vou-me embora...”numa voz sumida.
Perguntaram-lhe se queria despedir-se do marido ou de mim
- Não vale a pena, disse ela... vou-me embora...
De repente acenderam todas as luzes. Eu não tinha percebido que ela deixara de viver.
Foi então que a minha avó desatou aos gritos e mandou a Henriqueta tirar todos os espelhos e quadros das paredes, desimpedir a sala da frente, ir buscar as roupas de luto pesado que estavam prontas, esperando na arca.
Perguntei, confusa
- Mas o que aconteceu?
- A tua mãe morreu, já não tens mãe! - foi só o que me disseram.
Apanhada de surpresa, num relance entendi que não tenho sido um sonho
... Nem chorei nem gritei, fiquei semi-consciente.
Uni as mãos em frente ao peito e ia e vinha entre uma e outra sala murmurando "ai Jesus, ai Jesus!" como se estivesse muito longe do burburinho.
Era madrugada, mas as mulheres foram entrando, mexiam roupas, desviavam móveis e murmuravam... murmuravam... negras como corvos.
Encolhi-me num canto e irrompi num choro convulsivo, que durou não sei quanto.

A minha mãe foi despida e lavada, vestiram-lhe o vestido de noiva, colocaram-na sobre um colchão na sala de entrada, os pés virados para a porta. Telegrafaram ao meu pai e esperou-se que chegasse de Coimbra a urna funerária.
Pentearam-lhe os cabelos soltos dos dois lados do rosto.
Encheram-na de algodão em rama, temendo que "rebentasse" (que rebentasse! Que seria isso?!)
Porque lhe faziam ainda tanto mal?!, perguntava a mim mesma.
Chegaram flores e mais flores: lírios, rosas e espinheiros brancos cobriam-na.
De onde viria tanta gente e tanta flor? Acocorei-me junto dela, calada, tão perto quanto pude.... Falavam baixo e rezavam, rezavam.....
Quem vinha chegando aspergia-a com um ramo de oliveira, que se achava mergulhado numa taça de água-benta.
A urna lavrada chegou, mas eis que os joelhos não permitiam que se fechasse a tampa.
Diz a tia Glória:
- Então, vai-se buscar um martelo e partem-se-lhe os joelhos!
Ai o que eu escutei!
Deitei-me sobre o corpo gelado aos gritos:
- Não! Não! Não! A mãe é minha! Não deixei, ninguém conseguiu convencer-me.
O funeral foi no dia seguinte pela manhã:
As flores cobriam o caixão.
Levaram-na em ombros pela montanha acima, a aldeia inteira atrás, caminhando por sobre os musgos, parecia uma festa: tudo verde e perfumado, a cadência dos passos pesados; o murmúrio das orações... eu observa tudo aquilo como se irreal fosse.
Na igreja matriz, colocado e aberto o caixão na coxia central, entre quatro círios, um ramo de oliveira sobre um prato de água benta ao fundo, com que alguém que a vinha de ver, a aspergia.
E decorreu a missa de corpo presente, na voz monótona do padre que a casara, me baptizara e tudo fazia e dizia com a mesma indiferença.
De novo se refez o cortejo, pelas ruelas da vila: encheram de moedas o regaço do meu vestido preto, para que as distribuísse às mãos cheias pelos que esperavam à porta.
No canto do cemitério, junto ao muro do lado direito, estava aberta a cova.
O caixão foi colocado ao lado e aberto, para que a beijássemos pela última vez.
As cordas que desciam foram subidas de novo e um homem saltou para dentro com a pá.
Cobriram tudo daquela terra negra e por fim moveram uma rocha talhada em granito, onde está gravado:
" Aqui jaz Alice de Jesus Gouveia Petronilho
1932-1958"

De volta, deambulava por entre os grupos que conversam no adro da igreja, e eis que oiço:
- Então tiraram a Alice de lá outra vez?
Corro sorrindo de esperança
- Diga-me onde ela está!
Pensei que ela não estava morta ou que fora um terrível engano; um pesadelo.
E que tudo ia voltar a ser como dois dias antes... ao menos como dois dias antes!
O caixão não coubera na cova, daí aquele repuxar das cordas e o homem com a pá, escavando dos lados, alargando o coval.

Durante muito tempo sempre que subia as escadas julgava encontrar lá em cima a minha mãe na cadeira de rodas, a dormitar - mas ao ver o espaço vazio, deitava-me no chão e chorava amargamente.
Andava horrorizada.
Na noite a seguir ao funeral sonhara com as mãos dela, decepadas, brancas, de uma brancura que resplandecia, cruzadas sobre um prato, no fundo de uma cabana de pastor.
Vi todos os pormenores: as unhas longas, tratadas e polidas e minha mãe, por trás daquela oferta da única parte do seu corpo que sempre pudera mover, embelezar, utilizar, sorria.
Sempre que alguém lhe perguntava,
- Alice, sofres?
Ela não dizia que sim nem que não, só sorria!
Dias depois fomos com as burras carregadas de todos os seus pertences, campos fora, eu, a minha avó e a Henriqueta, até um ribeiro lindo, que corria e cantarolava por entre erva verde num leito de cascalho miúdo.
Tudo luzia de limpidez, parecia irreal.
Lavaram tudo na água corrente e eu subi para um penedo em forma de cogumelo que ali estava e passei o dia a chorar, escutando o ruído da água no silêncio.
Porque não fora eu em vez dela?!
Tantas vezes pedira de joelhos e mãos postas – Senhor, Senhor! – salva a minha mãe e leva-me a mim!
Contavam incessantemente a história de que minha mãe ficara doente desde que eu nascera, que se não fosse eu ela não estaria a acabar assim....
Seguiu-se novo calvário: o da herança.
Eu era obrigada a comparecer diante de advogados que me faziam sofrer. Que me importava tudo aquilo?
A minha mãe estava morta! Só queria que me deixassem em paz... e nunca o consegui.
Distribuí esmolas pelos pobres e as roupas pelas raparigas da aldeia. Gostaria de dar tudo – tudo me parecia pouco, mas alguém se opunha – tudo desapareceu porém, nem um objecto me restou.

Que fazer de mim, perguntavam-se?
Ouvia dizer que iam meter-me num orfanato; mas respondia alguém que "parecia mal"....
Ninguém disse: eu tomo conta dela, ninguém, ninguém!
Da caterva de tios e de tias, duas avós, irmãos e cunhadas do meu avô, todos jovens e com posses, frios de egoísmo.
A primavera decorreu assim: de luto pesado, tristemente.
O meu pai estava em Coimbra e, de vez em quando, escrevia à minha avó umas cartas tarjadas de preto.
No verão fui passar uma temporada com ele. Vivíamos numa pensão. A casa de Santa Clara continuava intacta mas fechada.
Como tinha passado bastante tempo na aldeia tive de adaptar-me novamente à vida citadina. Às vezes ia com o meu pai.
Em frente do edifício onde trabalhava havia um jardim com um lago e patinhos.
Ele dava-me uma sandes e marcava-me o perímetro por onde podia andar
– Nem mais um passo daqui, ouviste bem?
E eu ali andava para a frente e para trás, sem jamais me ocorrer sequer colocar um passo além dos caminhos marcados.

Passei na pensão sofrimentos grandes demais para a sensibilidade dos meus sete anos precoces. Quantas humilhações e injustiças!
Divertiam-se martirizando-me. Eu mal reparava no que faziam, só mais tarde compreendi. Gente podre aquela!
Era uma casa onde três mulheres se digladiavam pelo viúvo D. Juan.
E usavam-me, como usavam a minha ternura pelo miúdo da casa, o Rogério, com os seus dois ou três anos, a única criança com quem podia brincar.
Sossegados toda a tarde, colhíamos ervas no quintal e plantávamos jardins.
Mas todas as noites havia queixas e o meu pai mostrava o seu vigor e devoção às damas desancando-me diante delas, sem eu jamais perceber porquê.
A tarde significava espancamento e a vinda de um ser temível, de quem tentava esconder-me.
Elas foram passar um mês à Figueira da Foz e levaram-me.
O meu pai ia nos fins-de-semana, exibir-se e namorar todas ou cada uma...
Quanto melhor não seria às vezes a gente ter nascido sem capacidade de entender as coisas!
Regressei ao Louredo, já era mais que tempo de ir para a escola.
A pequena escola era ao cimo da penedia, mal se via a vereda.
Não tinha água, nem luz, nem casas de banho, nem aquecimento no inverno.
Ainda eram os professores do meu pai que leccionavam.
Não havia horário nem era certo que a D. Elvira ou o marido – agricultores de facto, que acumulavam funções, aparecessem.
Fui sozinha. Sentei-me na carteira da frente, puxei do caderno e da caneta de pau com aparo fendido, mergulhei-o no tinteiro e escrevi na capa o meu nome completo.
Depois pus as mãos debaixo do queixo e disse às atemorizadas companheiras:
- Veêm?! é assim que se está na escola!