segunda-feira, abril 05, 2004


"Para que males se não repitam, é preciso que não esqueçam!"


Mocinha, não teve mocidade.
Se a teve, passou-a em dor, que sublimou como em criança: evadindo-se!
Sublimava os maus-tratos e o desespero escrevendo, lendo muito e sonhando....

Não me lembro de ter um vestido mesmo meu.
Não me lembro de ter os livros nem o material que me exigiam no liceu.
Nem mesmo podia comprar as folhas regulamentares, timbradas, em que eram entregues os testes. É que custavam três tostões: pedia-os ao meu pai, mas ele respondia:
- Ainda ontem fizeste um teste, e já me vens pedir dinheiro para o papel de outro?!
- Vai mas é....


Parecia um doutor, mas tinha uma língua porca. Fazia-me tanto nojo ouvi-lo, ver-lhe o esgar de troça e desprezo no rosto!
Os olhos, que mudavam de cor, a brilhar cinzentos de raiva, de ódio, como facas que me quisessem trespassar!
Dizia sempre que me desejava ver morta, e à minha avó, e à minha madrasta, e aos cunhados, e aos irmãos.
Vivia ora de bem ora de mal, com uns ou com outros.
- Ah se não houvesse cadeia!
- - Maldita a hora em que não te peguei pelas pernas e não te esmigalhei a cabeça contra uma parede!
Tratava-me por “estupor”, não pelo meu nome.
Mandava-me “ganhar dinheiro para a beira das estradas”... eu nem entendia o que ele dizia, mas que era mau pela forma como o dizia.
Passava por mim e remordia:
- “A morte anda cega!”
Tinha tanto ódio dentro dele e tanta sede de matar!
Andou em tribunal a vida inteira, por isto e aquilo, com este ou aquele... só sabia dizer mal. Gritar por tudo e com todos.
Quando entrei no secundário, aos dez anos, acabada de chegar do desterro em que me deixaram aquando da morte de minha mãe, num abandono completo, no isolamento que nem era uma aldeia, vi-me de repente numa “família” desconhecida, citadina, de hábitos completamente diferentes.
Vinha cheia de ilusões!
Quando era pequena, perguntava a toda a mulher simpática:
- Posso-lhe chamar “Mãe?”
Por bem-parecer, matricularam-me num colégio de padres, para crianças ricas, e a pobre menina que eu era viu-se caída de repente naquele ambiente estranho.
O meu pai e a mulher dele viviam numa quinta.
Eu vinha de manhã, em jejum, de autocarro, sem conhecer os caminhos que tinha de percorrer, enganando-me com frequência na paragem em deveria sair...era tão pequena que não chegava ao botão da campainha para avisar o condutor, a viagem era um sobressalto.
Se me enganava, percorria apressadamente a mesma estrada, sem passeio, pela berma estreita.
As matérias das aulas eram fascinantes!
Queria sempre aprender mais e mais: perguntava de tudo aos professores que, vendo o meu interesse, se detinham a explicar-me assuntos além do programa escolar nos intervalos.
E havia a biblioteca!
A minha sede encontrara ali uma fonte!
Lembro sempre com carinho as minhas professoras, compreensivas, em contraste com as da escola primária, onde eu nada tinha a aprender, e até por isso me hostilizavam.
Era boa aluna. Lembro-me de que um dia, no intervalo entre duas aulas, a professora de Ciências Naturais me explicou resumidamente a Teoria de Relatividade!
Absorvia tudo, tal era a minha fome de conhecimento.
Só não me dava bem com a Matemática.
Chegado o fim do primeiro ciclo, deu-se o estranho caso do exame:
Tirara, numa escala de 1 a 20 tirei 3,4 a matemática, mas nas outras disciplinas as notas eram tão altas que tinha, ainda assim, média para dispensar da prova oral.
Tirara a melhor nota a francês; recebera um prémio extra.... Mas como se explicaria esta discrepância?!
Fiz a prova oral, a única da minha vida, e ainda bem: subi em todas as disciplinas.
Não continuaria, porém, no colégio... e não havia liceu a não ser em Setúbal, enquanto se esperava a conclusão de um pavilhão pré-fabricado.
E lá fui eu, na camioneta das seis da manhã, perdendo-me quase todos os dias, pois nada conhecia, nem conhecia ninguém tão longe.
Perguntando aqui e ali, lá chegava, para indiferença geral, pois era certo que estava ali de passagem.

O meu pai e a mulher vieram morar nesta cidade, eu passei a frequentar o liceu de madeira, onde nada se assemelhava ao colégio onde antes estudara.
Foi o tempo em que vivi entre a raiva e avareza de meu pai e a vingança sem sentido da minha madrasta.
Fazia todo o trabalho doméstico, mas as desavenças entre eles desabavam em mim, que era o bombo da festa; um saco de pancada.
Sem refúgio, no total desabrigo, sequer o amparo de bem me sentir na escola desconhecida, só me ocorria o suicídio.
Olhava por todos os ângulos a minha vida, porém nenhuma saída!
Pedi a meu pai que me internasse num colégio em Tomar, famoso pelos castigos, que transpiravam das paredes altas da Ditadura Salazarista.
Ele ainda pensou um pouco, mas respondeu que não: teria de levar enxoval, e não iria fazer despesa por minha causa!
Todas as noites a minha madrasta, que era enfermeira, me dava quatro comprimidos de Izonox,: tinha de tomar um na sua presença, depois dizia:
- Se tomares os quatro, morres!
E voltava costas, de lábios cerrados.
Atrás da porta fechada, eu pensava:
- Não! Não te darei esse gosto!
Deixava-me cair na cama. O corpo ia ficando dormente, primeiro nas extremidades, depois aquela dormência alastrava e apagava-se tudo.
Ao outro dia de manhã, saltava ao ouvir o estremecer da porta, com um forte pontapé da bota militar de meu pai.
Era como se uma mola me impelisse, num susto, num sobressalto sem nome!
Mas se o torpor me tomava, ele atirava-me para a cara um copo cheio de água fria e eu, encharcada, nem sabia onde estava, tremendo na confusão, voltava ao escutar os insultos inexplicáveis do costume.
Não aceitaria a morte fácil que me era sugerida... mas ficava no passeio, observando a velocidade dos carros... escolhendo a hora de dar o salto.

Não me ocorria que poderia ficar aleijada, sempre e só me imaginava enfim liberta.
Naquela casa o pouco que ouvia era acerca de acidentes, o meu pai chefiava uma divisão de Polícia de Transito.
Esta a ideia: morrer atropelada, repentinamente e pronto!


... Mas olhava pela janela e vinham-me à mente as conversas que escutava acerca dos problemas ocorridos com condutores, embora contadas ao inverso... e tinha pena de quem me matasse sem culpa e fosse sofrer consequências...
E por este dó, é que estou aqui ainda.

Trabalhava muito: na casa de minha madrasta, na de minha tia...que tinha um filho pequeno e ajudei a criar.
Valeu-me o amor que dedicava a esse menino.
Escrevia muito, lia muitíssimo.
Porém, pouco lia dos livros de estudo: aprendia no ar, retomei a paixão de aprender que me levou sempre a querer saber mais...
Frequentava as bibliotecas públicas, emprestavam-me livros, que devolvia pontualmente, aproveitando todos os momentos para ler, pelo que todas as pessoas me emprestavam livros com confiança.
No liceu, fiz amizades para toda a vida, entre as colegas e professores.
Ganhei respeito e afecto.
Na casa, só insultos, tareias de cinturão diárias, palavrões aos berros, estaladas ao mínimo pretexto.
Quer dele, quer dela.
Tinha vergonha de vestir o fato de ginástica, pois o meu corpo estava cheio de vergões, eram de todas as cores: vermelhos, negros, roxos, esverdeados...
Dava uma desculpa, que estava adoentada... que me doía a barriga...
Por essa altura já me autorizavam a que tirasse, com cuidado, uma folha do meio dos cadernos agrafados para responder aos testes... As faltas de material, porém, não podiam ser toleradas... e ao chegar a casa a nota respectiva, o inevitável castigo desabava.
Entre o meu pai e madrasta, vivia-se em guerra aberta.
Ela era especialista em guerra psicológica e, se bem me batesse, o seu maior prazer era fazer-lhe queixas, inventando histórias, exagerando pequenas faltas... e ver o furor e a raiva cega com que ele me desancava.
Eu não abria a boca. Não me desviava.
Tremia de medo e chorava, quando sozinha, porém nunca nenhum deles me viu uma lágrima!
A pancada era tão natural como a chuva. O que mais doía eram as palavras; o sentir-me a mais; o saber-me objecto de um ódio que nada explicava.
Na presença deles, sobretudo de meu pai, a minha atitude era de total obediência e passividade.
Tal devia acrescentar-lhe a raiva, pois por pior que fizesse não sentia que me dominava.
Um dia fechou a porta da sala, ele de um lado, eu do outro, em frente à janela:
Zurziu-me de alto abaixo, com o cinto silvando e só dizia:
- Choras ou não choras?
E de novo
- Choras ou não choras?
Cansou-se. Fartou-se... mas não me mexi nem chorei!

Não se iludam: as crianças maltratadas não falam!
Ou não falavam.
Os vizinhos escutavam coisas, saberiam coisas... mas temiam-no.
Eram conhecidos e respeitados; eram possuidores de bens, eram funcionários que ocupavam cargos elevados para a época.
Na mais funda Ditadura, nem um dedo se mexeria. Tudo era silêncio e foi silêncio até que a morte de uns e maturidade e independência conquistada por quem sofreu quebrou a casca dura e opaca do silêncio.
Que os tempos mudem e nunca mais se repitam!
Mas para que tal aconteça, é preciso que não esqueçam!