quarta-feira, janeiro 19, 2005

A ROSA E O SER


A rosa abriu os olhos aos primeiros raios de sol.
Espreguiçou as pétalas e bebeu gotas de orvalho.
O ser pequenino acordou também e nele a esperança de ver o botão cerrado que cuidava. Correu ao jardim e sorriu de alegria ao ver que o sonho acontecera.
Estendeu as mãos pequeninas e, docemente, aconchegou
no côncavo as pétalas frescas e macias.
- Como é bom que tenhas nascido... murmurou. E ia mergulhar o rosto
na corola, para beijá-la e aspirar-lhe o perfume, quando uma vozinha murmurou:
- Tem cuidado!
O ser pequenino assustou-se, mas depois pensou ser a voz da sua imaginação.
Num ímpeto apaixonado, abraçou a rosa.
- Ai ! - Gritaram um e outro.
Um espinho acerado, perfurara a inocência do seu coração.
As pétalas ainda meio descerradas ficaram machucadas, e foram caindo.
Mas do âmago da rosa uma aura doirada se soltou e a ferida cobriu.
A gota de sangue, nele se envolvendo, na terra se embebeu.
O ser pequenino, elevou-se e pousou no coração da flor o seu coração ferido.
Reflectiram juntos acerca da angústia de amar-se demasiado.
A rosa sentiu o calor de uma lágrima e murmurou:
- Não chores, porque nem me destruíste nem o teu sangue se derramou em vão...
o pólen de soltaste, não se perdeu, fecundou o gineceu que esperava este momento. E o teu sangue derramado alimentará a nova roseira por que vim.
Juntos seremos eternos, pois o amor além da brevidade nos guiou.


Maria Petronilho

Menina e o Vento





Não me perguntem porque terei abandonado a rua que sempre pisava e me entranhei nos terrenos baldios cheios de latas e poças, sacos de plástico em tiras como bandeiras de nações despedaçadas.

Andava a custo, por causa dos obstáculos e dos cheiros nauseabundos.

Impelia-me uma espécie de ânsia que dentro do peito gritava, uma voz que ciciava ao meu ouvido.

- Anda! Vem cavalgar comigo! – Voz nítida, concreta, próxima, feita de sons cujas notas soavam fora e dentro da minha cabeça.

Olhei em redor, mas nada vi de estranho e no horizonte, ninguém!

- Anda! Vem cavalgar comigo!

Como estava sozinha, arrisquei:

- Mas quem és tu?! E onde estás?

- Sou o Vento, bradou ele numa voz muito alta.

Dei um pulo:

- Ora essa! O Vento chia, não fala, repliquei, mas sem convicção pois nunca tinha falado com o vento, apenas sabia do som que fazia passando e era inusitado que respondesse, que dialogasse... fosse em que língua fosse.

- O Vento tem muitas vozes, disse-me, como se me adivinhasse... na verdade a sua voz soava dentro e fora de mim, em uníssono.

- Dizem que o Vento canta nas folhas, nos pingos de água... atrevi-me a dizer.

- Pois canta! E assobia nos caules de erva.

- Está bem, mas nunca se disse que o Vento falasse!

- No entanto estás a falar comigo, disse ele rindo.

Eu também ri, porque o riso contagia mesmo se não sabemos do que rimos.

Nós ríamos sabendo que era de nós mesmos e de nos estarmos descobrindo.

- Porque me convidaste a cavalgar contigo se não te vejo, perguntei?

De repente as minhas saias rodopiaram, o meu cabelo levantou-se e vi que o chão ia ficando cada vez mais longe.

- Sentes-me, apesar de não me veres?

- Sinto, respondi eu incrédula, mas sem medo nenhum como se me pegassem ao colo.

À volta, tudo sereno. Parecia que o vento resolvera marcar encontro só comigo.

- E porque me levantaste do chão?

- Porque te convidei a viajar comigo e não me acreditaste!

- Como havia de acreditar-te?! Não te vejo, não tens dorso, já foi difícil perceber que falavas quanto mais que me convidavas para um passeio!

- Conheces-me desde sempre e ousas dizer que sou mentiroso?! Muitas vezes te convidei para passeios mas tu parecias nem dar conta, só olhavas o lugar onde punhas os pés!

- E agora vejo o que pisava, confessei envergonhada... mas onde me levas?

- Aonde sonhares ir!

- Como hei-de sonhar, se não durmo?!

- Não é preciso dormir para sonhar! Os melhores sonhos são os da vigília, pois trazem aos teus olhos o que mais anseias mas não te atrevias a olhar. Os sonhos estão sempre contigo.

Fiquei um pouco a pensar nisto. Senti um novelo de todas as cores desenrolar-se diante de mim e disse-lhe:

- São muitos sonhos e não sei qual escolha!

- Escuta-os, também têm voz!

- Hummm... pois será, mas diz-me: vou vaguear por aí como bruxa sem vassoura?

Ele riu muito alto

- És mesmo distraída! Porque não te aconchegas nas minhas asas e passaremos por onde quisermos, pois se me apetece sou brisa; se me aborreço, tempestade e se os meus companheiros me desafiam quando brincamos nas escadarias do céu, desato a correr e sou furacão...

- Isso é muito mau porque partes tudo, já viste?!

- Vejo depois, quando olho para trás... mas como querias que me divertisse se desde antes do tempo rodopio à volta da Terra, e cada vez me dão menos importância?!

- E que acontecerá quando chegar o fim deste meu sonho?

- Acharás outro e depois outro e outro.... quando te acostumares a viajar comigo, verás que não existe limite algum, pois o teu pensamento não tem princípio nem fim... como eu não tenho!

- Já sei aonde quero ir.... mas é muito longe, disse eu baixinho.

- Não existe longe para o vento, que te disse eu?!

E o vento ia ficar zangado mas olhou-me por cima do ombro, viu-me os olhos embaciados e eu já agarrada com confiança nas suas penas transparentes, determinada...

Acalmando, perguntou

- Desculpa, sou impetuoso... onde queres ir primeiro?

- .... a um lugar que existiu há muito, muito tempo...

- O Vento não conhece o tempo, gritou!

- Ao colo de minha mãe!



Maria Petronilho

terça-feira, janeiro 18, 2005

Estava Óscar em sossego...


O Óscar, um tipo calmo, via o tempo passar tranquilo.
Sozinhez de quando em vez, sim, mas quem a não tem, digam lá?!
Chegava na esquina, puxava conversa, dormia uma sesta, e pensava que bem lhesabia a liberdade que tinha.
Com isso se contentava.
Sentava-se junto à janela, às tardes, a ver quem passava.
Conhecia a D. Ana da Praça, o Zé Joaquim da Taberna, o Manuel da Hortaliça, aJoana da Mercearia.
... Mas um dia prendeu-se na saia dela!
Na saia e na bundinha, que ao andar rebolava,
E no pedaço de perna, torneada que aparecia, depois da bainha da saia, atésumir na chinela.
Um dia e outro ainda, quase sempre à mesma hora, lá ia a moça e o Óscar marcavaponto, no peitoril da janela.
Subiu os olhos à cinta, subiu pelas costas acima, e demorou-se na nuca.
Santo Deus, que coisa linda!
Ansiava ver-lhe a cara.
Passou a ir ao quiosque, a comprar uma revista, ficando a lê-la na rua.
A lê-la!
Fingia! E esperava. Da primeira vez que viu aquele palminho de cara, o Óscaraté tremeu, ficou corado e de olho arregalado.
Ai minha nossa senhora, tinha de saber quem era a moça morena que há tantotempo fazia, que andava de olho nela!
Virou-se num só impulso, como se fosse segui-la, esquecido de onde estava, docavalheiro que era... sentindo subir-lhe um viço, um arrepio, que era?!
De repente apercebeu-se, puxou o lenço do bolso e assou-se com estrondo,tentando disfarçar o embaraço com o alarido.
A vizinhança olhou e, à socapa, sorriu.
E ele, de novo composto, foi-se embora rua abaixo, enfiou-se porta dentro, foitomar um duche fresco.
Naquela altura, passou. Passou-lhe uma coisa, veio-lhe outra: um catarro mesmoa sério, que o manteve no recato por três dias, de resguardo.
Ao quarto, saiu do quarto e voltou para a janela, à espera dela.
E ela passou, donairosa, abanando a saia, rebolando a anca, os ombros a dar adar, ai o Óscar, que arrepios sentia!
Se era febre ou o contrário, quem saberia?!
Voltou a comprar revistas, às vezes repetidas, a ser fiel cliente do Janeca doQuiosque e foi metendo conversa.
Uma coisa leva a outra, e lá descobriu que a moça tinha por nome Jacinta.
Jacinta... ai que flor de moça, pensava!
Ja-cinta; Já-sinta... já sentia o cheiro dela, mesmo ao longe, da janela,quando passava na rua...
Mais adiante não ia. Isto é: querer, quereria, pior que não se atrevia a pisar ao tempo que ela as pedrinhas da calçada.
De noite é que eram elas!
O pobre já tinha olheiras, sonhava, que não dormia.
Sonhava com tantas coisas que nem posso descrevê-las!
Um dia a linda moça não é que lhe bate à porta?!
Truz-truz-truz!
- Quem vem lá? – Perguntou ele, arrepiado que nem um gato.
- Sou a Jacinta, senhor Óscar, faça favor de chegar à janela, que querodizer-lhe uma coisa!
Ai quer-me dizer uma coisa... pensou o Óscar e ia-lhe dando outra, ali mesmo,enquanto abria a vidraça.
- Ora viva, menina Jacinta, que já sei a sua graça! Que me quer a senhorita? Etodo ele se curvava, as mãos convulsas agarradas ao peitoril, os nós dos dedosbrancos, com medo de cair, com medo de saltar, de alçar a perna esquecendo-seda altura... não era muita, mas para quem o único desporto era comprarrevistas, a queda era certa.
- Sabe, senhor Óscar?! Sei que o senhor comprou um folheto de modas que eumuito procuro e era o último que o Janeca do Quiosque lá tinha... tinha ofeitio de uma blusa com folho na golinha... será que o senhor que me oempresta?
- Ó menina Jacinta, até lha faço, ora essa!
Entre, entre, faça obséquio! Não repare na modéstia da casa, já vê, sou umhomem solteiro...
E tremia-lhe a mão no trinco, afastava-se para o lado só uma fresta, convidandoa moça a entrar por ela... e a moça, que não se ralava com frestas, entrava, umpouquinho à força, roçando o peito de repente atrevido do Óscar, que escutava ocoração lá dentro, ecoando em toda a casa
Tum-tum-tum-tum!
- A menina sente-se na sala, que eu vou buscar a revista.
- Ora muito agradecida! – Retorquiu ela – e assomou-se à janela.
- Com que então é daqui que tu me comes com os olhos todas as tardes, e nem ostens para me dizeres bons-dias!
Ele apareceu com folhas várias, dispersas, nas mãos aos trémulas.
- Veja! Veja à sua vontade! Escolha qual é a tal que procura,
ia dizendo, porque não se achava, perdido de todo, numa hesitação desvairada,com vontade de ser folha desfolhada.
- E já escolheu o tecido, a menina?!
- Porque pergunta? Sua mãe é costureira?
- Eu vivo sozinho, menina. É que ia buscar a fita métrica, tirava-se o molde àmedida...
- Está bem lembrado, sim senhor! Vá buscar a fita, vá lá, senhor Óscar, e tenhacuidado não caia, olhe que tropeça!
Tropeçava. Tropeçava em tudo: na esquina da mesa, na ponta do tapete, nabiqueira da bota, malvada! Até a bota conspirava contra ele nesta hora, quemdiria!
A fita métrica... ora onde teria ele uma bendita fita métrica, que se enrolasseà volta de uma cintura?!
Tinha uma de alumínio... serviria?!
Revirou a caixa das ferramentas e veio de lá com uma fita extensível.
- Ó menina Jacinta, acha que presta, esta fita?
Ora se me permite... e espero que me permita!
- Permito, sussurrou ela, levantando ambos os braços: Ora meça!
- Ora meça... Homessa, se meço!
- Meço e não só!
- Meço, teço, ai que desta é que me atiro!
E foi-se chegando, chegando... ela esperando, esperando... ah como é infinitoàs vezes o tempo...
Mas chega sempre o tempo de dar o primeiro beijo!


Maria Petronilho

A gota de orvalho e o coelhinho Pimpão


O dia amanheceu cheio de sol.
De noite, o coelhinho Pimpão deliciara-se escutando a chuva a bailar no ar e a dançar sapateado no chão.
Pimpão adormeceu embalado pela música do céu.
A noite passou e o vendaval seguiu...
O dia acordou azul e sereno, resplandecente de sol.
Pimpão, olhou pela janela e sorriu
- Hummmm, exclamou sorrindo, espreguiçando muito as patinhas, quase tocando o topo da toca.
Saiu abanando a cauda e foi ter com a família, que preparava o pequeno-almoço na cozinha.
Comeu as ervinhas frescas que a mamã lhe serviu e depois saiu correndo, para brincar no ar, saltitar nas poças da chuva caída na noite anterior, mordiscar as pétalas de flor tenrinhas, que tinham desabrochado nessa mesma manhã.
No alto viu um girassol novinho em folha, olhando deslumbrado a grande e linda estrela que luzia no alto.
Era tão lindo!
Amarelinho, viçoso, as pétalas reflectindo a luz.
Pimpão quis chegar mais perto e sentir o perfume da flor.
Colocou-se sobre as patitas traseiras, estendeu a mãozinha macia e puxou para si o caule da planta,
Mas ai!
Uma gota fria, muito fria, escorregou lá de cima e caiu certeira sobre o seu nariz.
Pimpão levou um susto, sentiu um forte arrepio e correu, correu, correu...
Entrou assarapantado na toca e refugiou-se junto à bola de pelo macio que era o seu pai descansando.
- Papá, papá, está chovendo muito – gritou o coelhinho em alvoroço.
O pai voltou a focinho sorridente para o filho.
- Confusão tua, Pimpão! Choveu foi durante a noite. E também fez frio.
Mas assim que o sol nasceu, a chuva seguiu o seu caminho no céu e as gotinhas que ficaram reuniram-se sobre as pétalas e flores, em perolazinhas de orvalho.
- Mas pai! Uma gota de chuva molhou e esfriou o meu narizinho! Não estou dizendo mentira nenhuma vem ver!
- Eu sei o que acoteceu mesmo sem ir ver, porque quando eu era um láparo como tu também corria pelo campo de manhã e apanhava gotas de orvalho que caíam das flores que eu espreitava e caíam no meu nariz, pregando-me sustos como o que tiveste agora.
- Então não foi um pedaço de chuva que se atrasou e choveu sobre o meu narizinho, papá?
- Não, tolinho, não foi um pedaço de chuva... As gotas de chuva são irmãs muito amigas e vão juntinhas para todo o lado embaladas em nuvens de muitas cores. O que te caiu no nariz foi uma inofensiva gotinha de orvalho que o sol deixou sobre a flor, afim de a refrescar.
Caiu sobre ti, não está lá mais. Queres ir verificar?
Papai coelho queria que seu filho crescesse sem medo, embora no mundo dos coelhos seja necessário ser-se muito cuidadoso.
Pimpão respirou fundo, bateu com o pé no chão, encheu o peito de ar fresco e declarou:
- Vou ver de novo, papá! Verificarei com os meus próprios olhos tudo quanto me explicaste.
E saiu correndo, aprendendo como é bom viver escutando a chuva, brincando ao ar livre, aspirando o perfume das flores desabrochadas ao sol da manhã

E contar com o conforto de pais que sossegam os sustos da gente e nos explicam a arte de crescer com coragem e sabedoria.


Maria Petronilho

Quilos de Adrenalina

"Quilos de Adrenalina"



O Fonseca, bigodudo, tesudo, grisalho, encarrapitado no alto da cadeira,
meditava.
Acontecia-lhe de quando em quando, essa coisa de falar consigo mesmo, sobretudo
desde que via a sua vidinha ir-se por água abaixo....
- Ó diacho, dizia consigo mesmo, tenho de sair disto!
Mas sair disto era cada vez mais um caso bicudo.
- Arre, que parece que ando embruxado...
E cofiava o bigode farto, para distrair olhares das entradas, que lhe mostravam
a testa alta e, em baixo, da incipiente papada.
Para a idade que tinha, não estava nada mal o Fonseca!
Todas as manhãs se examinava escrupulosamente ao espelho, quando metia o pé na
banheira, para o duche ritual e a seguir, já fresco, ao fazer (aliás desfazer)
a barba.
Nu, pois claro.
O espelho não era qualquer de armário, era uma parede inteira da casa de banho.

O Fonseca virava-se e revirava-se:
Era a barriga, era a gordurinha sobre a anca... nada mal!
- Nada mal, nada mal, nada mal...
Cantarolava, enquanto se escanhoava.
Mas sentia-se vazio.
Nos últimos tempos, além da decadência da idade, da crise económica que também
o afectava, sentia uma inexplicável angústia, um nó na garganta...
- Que coisa, não posso andar a vida inteira na cepa torta!
Acordar não era fácil: revirava-se na cama e apalpava, apalpava... o lençol, a
almofada... melhor dizendo:
Tomava real consciência da sua vida solitária
- raio de vida!,
Eram as suas primeiras palavras.
Tomava o cafézinho, e o bolo de arroz matinal, na confeitaria da esquina.
Tudo apressado:
- Ó Zé, vê lá se a bica sai!
- E o empregado olheirento, coitado, nem sabia a quantas andava.
Tudo desabava, essa é que era essa.
- O mundo não é dos inteligentes, é dos espertos...
Pensava o Fonseca, enquanto lançava olhares de carneiro mal morto sobre a borda
da chávena.
- E rodava os olhinhos agudos pela sala apinhada.
O costume: pelintras de merda!

Uma dama de lilás entrara, no entanto, em cena.
Pedia “por favor” ao empregado, com pano de cozinha pendurado do avental;
pegava na asa da xícara de dedo mínimo espetado; limpava cuidadosamente os
lábios à pontinha do guardanapo de papel, com muito cuidado, fazendo boquinhas
para não esborratar o baton cor-de-rosa
- Tenho de conhecê-la! Homessa!
Deve ser mulher de massa... de alguma, pelo menos, da que me falta!

E lá conseguiu arranjar pretexto, que palavra puxa palavra...
Era uma dama de meia idade, ainda boazona, solitária, que vivia de uma pensão,
de uma renda... ao certo, ao certo, não sabia.
Mas que parecia bem de vida, parecia.

Um dia, pensou num negócio, enquanto olhava distraídamente o noticiário
- Vou vender adrenalina!
E disse-lho a ela, já pegando-lhe familiarmente no cotovelo, em ar de
confidência:
- Olha, sabes o que é que está a dar? Adrenalina!
- Adrenalina?! - Espantou-se ela, pensando que fosse alguma doença rara.
- Pois, mulher!,
Então tu andas ao de cimo da terra e não vês?!
Olha-me aqueles palermas a atirem-se de pontes e abismos, atados que nem
palaios, de cabeça para baixo... pagam fortunas, o que pensas?!
Ia fazendo gestos, encenava, arrebatava-se.
- E sabes para quê?
Ela olhava-o como se hipnotizada e ia acenando com a cabeça, ora para cima ora
para baixo...
- Ai, ele é uma grande cabeça!
– Ai as coisas que ele pensa!
Pelo rabinho do olho malandro, ele palrava e observava o efeito.
Sinaizinhos piscavam num lugar qualquer, lá num recôndito entre a
sub-consciência e o aflorar da consciência.
Luzes amarelas: “cuidado Fonseca!”
Luzes vermelhas: “olha que deitas tudo a perder, rapaz!"
Luzes verdes: “avança, avança, que ela está de maré!”
E ele avançava...
Avançava um passo, a metê-la num canto, e avançava um sonho, murmurando:
- Olha lá! E se a gente alugasse uma avioneta e lhes vendesse adrenalina?

Pronto, os dados estavam lançados!
Ela mirava-o de boca aberta:
- Mas ó Fonseca, sussurrou, quem é que ia comprar uma doença?!
Ele riu à gargalhada:
- Quem beneficiasse do Seguro, ora essa!
Ela percebeu a brincadeira e aligeirou a pressão na moleirinha.
Ele avançou de novo:
Explicou-lhe que adrenalina era uma espécie de bebedeira sem ter bebido, o que
levou horas em exposições e contradições – arre porra!
- Mas o que é tens na ideia, homem, diz de uma vez por todas!
- Então a gente juntava os trocos e alugava uma avioneta... e depois
vende-se-lhes adrenalina aos quilos!
- Mas como assim, se é uma bebedeira sem bebida?!
- Arre que é estúpida a mulher!, impacientava-se o Fonseca, subindo o tom
vários decibéis.
- Ó mulher, então não percebes?!
- A gente sobe... sobe... e eles atiram-se lá do cimo, atados a fitas de
nailon!

Quanto mais alto estiverem mais bêbados ficam!
- Ai que cabecinha, Fonseca, que cabecinha abençoada que tu tens, homem!
E afagava-lhe a nuca com a direita e a cabecinha com a destra...


Maria Petronilho

Série Contos de Fadas - A verdadeira história do principe-sapo no séc XXI


Kátia Alexandra Sofia da Silva retirou sem sombra de pejo aparte de cima do
seu biquini e esparramou-se na relva, de modo a ser atingida pelos
respingos, já que era tarde tardezinha e o Manel Jaquim jardineiro, regava
o toro

de uma ameixoeira, que o empresário da construção civil, Silva pai, não era
de desperdiçar terreno nem despesas com coisas que não dessem fruta ou, ao
menos, umas hortaliças.

O Caldo verde da D. Birgolina tinha fama, feito com as tenras couves que
adornavam as alamedas.

Boné para a nuca, testa meio calva meio grisalha reflectindo o fulgor do sol que declinava,
o Manel Jaquim, declinado dos ossos e de outras miudezas de que a gente não
fala, nem olhou para a moça, que se virava e revirava na toalha turca dum
lado e do outro aveludada.

Olhava enfastiada os restos da revista Caras que folheara,molhando a ponta
do dedo mindinho na ponta da língua, ficando as páginas coladas com uma
mistura de saliva e cola... nada a fazer senão mirá-las,remirá-las, e
arrancá-las, lançando-as por cima do ombro, que a brisa se encarregava de
levá-las a passeio para onde não a incomodassem..

Por isso, aproveitavam a frescura das águas do tanque a que chamavam
Piscina, quando se reuniam lá em casa as Tias,

modelos, príncipes artistas... vogavam deliciados, que estavam habituados a
frescuras.

Ela, Kátia Alexandra Sofia, à água... só vê-la!

Ou senti-la morninha, debaixo do chuveiro de uma das três casas de banho da moradia
recoberta de azulejos.

Os banhos de sol junto da Piscina eram pretexto para se apresentar bronzeada
nas festas, dizendo que acabara de chegar de férias nas Caraíbas.

Rebolava-se a inconsciente adolescente, impaciente vá-se lá saber porquê, os
olhos postos no ondear das páginas...

Eis senão quando algo no meio do tanque, de fundo pintado de azul turquesa,
começa a emergir, a emergir, a emergir... e os olhos castanhos,delineados,
de Kátia a aumentar, a aumentar, a aumentar...

Sacudiu a loiríssima cabeleira escadeada por três vezes ebenzeu-se

- Ai! Então não querem lá ver que o sol me fez mal?!

Da água, uma cabeça, depois uns ombros musculosos, um tronco de atleta,
abdominais firmes, foram surgindo... a Katia ia-se soerguendo... seguindo o
lento caminhar do jovem que passo a passo se encaminhava para o bordo, o
agarrava com as mãos poderosas e se içava para fora de água.

Pisou a relva.

Kátia olhava hipnotizada.

O Manel Jaquim, depois interrogado, jura ter visto um sapo,apenas um sapo.

- Juro pela minha mãezinha que Deus lá tem, ó Patroa!

E cuspia nas palmas nas mãos, que limpova aos fundilhos das calças de
bombazina.

... Mas a Kátia viu um jovem aproximar-se, inclinar-se suavemente sobre ela,
olhando-a bem no fundo nos olhos, a boca em botão de rosa,pedindo um beijo.

Em pasmo, retroflectida, a cabeça em pé-de-vento, Kátia Alexandra Sofia da
Silva, esticou-se toda, seios à vela, que importava... nem se lembrava quem
era nem onde estava!...A proximidade foi um filme em câmara lenta... um
momento mágico, um parar do tempo

- Ai que nojo!

Num repente, agarrou a toalha meio-de-veludo e esfregou, obaton dos lábios,
repugnada.

- roaaac - roaaac - roaaac ...



Tanto um quanto outro desataram aos saltos, desatinados.

A moçoila desatou aos berros.

O Manel Jaquim deitou a mangueira ao chão e desatou a fugir caminho abaixo,
metendo a mão no bolso traseiro das calças, atropelando as couves, sem
atinar com o telemóvel muito menos com o número do serviço nacional de
emergências.

De dentro, a D. Birgolina acudiu de facalhão em punho, que estava a cortar o
chouriço.

Passada hora e meia vieram os polícias, os bombeiros a protecção civil.

Postados em fila no sofá da sala, foram interrogados por repórteres
cépticos, os únicos que colocaram algumas dúvidas na veracidade dos
factos narrados.

A história foi notícia de abertura no Notiário da Noite do canal oficial da
TV.

Uma fotografia da bela desnuda saiu nas páginas centrais da revista Caras.

O Silva, todo engravatado, compareceu nos estúdios ao lado da filhinha, nas
entrevistas.

Foi abordado por uns senhores graúdos do mundo do futebol,discretos e
circunspectos porque sim mais que também, pois lhes sobraram uns materiais
da construção dos estádios e que poderiam fazer... o que fizeram.

Venderam a moradia e compraram um palacete na Linha do Estoril,com piscina
verdadeira, com filtros e tudo, onde se dão as melhores festas da Socialite,
com champanhe e pastelinhos de bacalhau.

Nadam em euros e dão grandes sardinhadas aos domingos.



... E agora, já acreditas em contos de fadas?


Maria Petronilho

O Pisco e o Figo



"O Pisco e o Figo"


Segurei-me com toda a força nas minhas oito garras tremendo.

Do cimo, as enormes folhas agitavam-se rindo:
- Vem, Pisco, pica se te atreves!E abriam nesgas de brilhos azuis que me ofuscavam.
Os pomos pendentes e maduros convidavam tremelicando a gota de mel dos umbigos:
- Vem, Pisco, pica se te atreves!
As penas represas, eriçaram-se-me.
As meninas dos olhos abstraíram-se de tudo.
Num instante imenso transformei-me num projéctil movido pela ânsia... até que senti a doçura rosada do figo desfazer-se ao mergulhar o bico

De pálpebras cerradas, sorvi longamente o dulcíssimo frenesim do acometimento.


Maria Petronilho