segunda-feira, abril 05, 2004


"De Amor e Drama"



Com um suspiro cansado, Isabel limpou o último prato, arrumou-o no armário,dobrou o pano da loiça.
O João vinha do quarto, onde deitara os meninos nas suas camas.
A chuva caía desde que raiara a aurora.
Infiltrava-se, pouco a pouco, nas brechas das paredes, tantas vezes recobertasde gesso e disfarçadas com a tinta, preciosamente guardada.
O vento zunia, abanava a casa, parecia que queria levar as telhas em revoada.
O frio infiltrava-se por baixo da porta.
João assomou-se à janela: lá fora, um rio escuro corria pela rua, arrastandolixo, que flutuava.
Puxou a cortina, sentou-se na beira da cama, apoiando a cabeça na concha dasmãos ambas.
Isabel foi ter com ele.
Passou-lhe o braço pelos ombros, puxou-o de encontro ao seio, afagando-lhe opescoço.
Ele pousou a cabeça no seu ombro.
Ficaram assim abraçados, por tempos infinitos, em silêncio.
Partilhavam a aflição do momento.
- Aconchegaste a roupa aos meninos? – Perguntou ela, baixinho.
- Sim. Coitadinhos, estão ambos muito assustados. O Chico pediu que dormissemjuntos, mas expliquei-lhe que o Zé é pequenino... prometi que para o ano...

Enquanto isso, uma língua de água infiltrou-se sob a porta.
Isabel levantou-se e acorreu a limpá-la, de balde e de esfregona.
Intentava absorvê-la, impedi-la que entrasse em casa.
Mas de nada servia!
Os chinelos encharcados tornavam-lhe os movimentos penosos, doíam-lhe as costase os braços, mas a água subia.
António não a impediu, nem lhe disse coisa alguma.
Não ousava afogar o seu instinto de mulher, dona de casa. Não ousavaadmoestá-la do desespero da hora.
A água chegava-lhe já aos tornozelos. Num ápice tornava num lago a sala,manchava a parede limpa, empapava o fino tapete.
Em breve não mais se viam os pés da mesa e as cadeiras flutuavam, como se ummágico perverso as desarrumasse por gosto.
António levantou-se de num salto, dando-se conta da dimensão do desastre.
Correu ao quarto, tocou ao de leve no filho mais velho:
- Acorda, Chico, não tenhas medo.
O menino olhou-o surpreso. Mas vendo diante de si a face doce do pai, numinstante readormeceu.
- Veste-te, filho, depressa! Temos de sair de casa.
Chico reabriu os olhos, pensando ser madrugada.
Puxou pela camisola e começou a enfiá-la, sonolento, sobre a outra, do pijama.
No berço, o bebé dormia, sorrindo na inocência, abria e fechava a mãozinhadescoberta sobre a colcha tricotada.
Isabel entrou chorando.
Desistira.
Entendia enfim, sem palavras, o dilema do marido, que prefira deixá-la lutarsozinha, tomar consciência da iminente desdita, afim de que encontrasse em simesma coragem para enfrentá-la.
O seu bom senso acordara.
Puxou dos cobertores, envolvendo neles o menino, que retirou do berço eaconchegou contra o peito.
O menino, apertado no embrulho, fez beicinho, choramingou, mas reabrindo osolhinhos e encontrando o rosto da mãe, sossegou.
O mais velhinho, porém, olhava em volta, assustado.
Já entrava água no quarto.
O menino pôs-se em pé, descalço ainda, sobre a cama.
Não encontrara razão para a azáfama inusitada. Sustinha o choro, que ameaçairromper da boquinha entreaberta.

Estendia os membros inertes ao pai, que lhe ia vestindo a roupa. Na cabeça, ogorro; nos pés as peúgas pequeninas, os sapatos desgastados.
Sentiu-se erguido, ganhou confiança de novo.

António e Isabel entreolharam-se, num mudo entendimento.
Tentavam não transmitir de si mesmos a aflição aos filhos.
De coração em alvoraço, olharam em volta, nada encontrando que valesse a pena ser levado, iam-se despedindo do pouco que haviam juntado com empenho.
A água subia depressa, o tempo urgia.
Era preciso ir embora.
Abrindo a porta, uma torrente negra quase atirava Isabel por terra. Agarrandodesesperadamente o filho, firmou-se apesar do impacto medonho da água quejorrava, da rua pela casa adentro, em remoinho.
António passou-lhe a frente, segurando-a

Chico, percebeu enfim que algo de muito errado se passava à sua volta.
Agarrado a seu pai, abriu a torrente do pranto, dando vaza à aflição.
Seguiram os quatro, no escuro, à procura de abrigo.
A correnteza aumentava. A chuva continuava.
Sirenes soavam longe.
- Socorro! Socorro! - Gritavam.
Mas ninguém os escutava.
Iam sozinhos num mundo que desabava.
Avançavam passo a passo, os pés escorregando na lama, os braços envolvendo osfilhos, que choravam ambos, desconhecendo porquê, mas sabendo-se em perigo, porinstinto.
Quanto tempo terá durado a deriva?
A correnteza ora os arrastava ora os impelia.
Alguém gritava do escuro:
- Está aí alguém?
- Socorro! Socorro! - Responderam eles, aflitos.
A voz tremia, mas a coragem redobrava.
Iam chocando com o vulto de uma carrinha.
Nada se via, se distinguia, a não ser quando quase se tocava.
Um vulto, de fato iridescente, atirou-lhes uma corda.
Lesto, António agarrou-a e passou-a na cintura.
Apertou a mão de Isabel, que se lhe estendia. Puxou-a para si com força eenrolou-a no extremo, com muito cuidado não fosse magoar o bebé, acordado,porém silencioso.
Da carrinha, o homem que agora se via ter um colete de riscas amarelas,puxou-os com toda a força.
Entraram a custo pela porta estreita.
Sentaram-se no banco. Um suspiro de alívio soltou-se. Sentiram todas as forçasesvaírem-se dos seus corpos.
Entregues, abraçaram-se um ao outro, no colo os filhos, presos no amor que osunia, agora mais do que nunca!