domingo, fevereiro 01, 2004

Diamante



...
Lembro-me vagamente de ser transportada por dois bombeiros muito jovens:
Ela conduzia e ele sentou-se ao meu lado.
Disse-me que me deitasse na maca, mas eu sentia falta de ar.
Armou a cadeira, e fixou-a nas traseiras da ambulância.
Pegou na minha mão. Perguntei-lhe baixinho o nome e a idade.
Tinha a idade da minha filha. Sorrimos.
Deixaram-me no corredor do Hospital, mesmo em frente da sala do assistente do meu cardiologista.
O meu grande amigo, provera a tudo:
Reservara-me (reserva-me) uma caminha para o caso de me sentir aflita.
Dera-me o número de casa, fizera-me inúmeras recomendações; medicação rigorosa,ensinou-me como aplicar as injecções a mim própria.
Não pude falar com ele, porque depois da dor atroz sob o esterno, ficara sem poder falar. Balbuciei auxílio aos bombeiros, que com muito custo me entenderam dizer a morada.
Escrevia... mas com a grafia que aprendera nos livros antigos do avô Petronilho... grafia onde coisa era “cousa” e farmácia “pharmácia”
Trocara breves impressões com o meu primo Carlos, médico com longa prática de cardíaco... acabou o doutoramento no ano passado, após vinte e três dias de lhe terem colocado um outro coração a bater dentro do peito.
Meu primo imaginava que eu tivesse receio: Explicou-me em pormenor como me fariam a angiografia e que não doía nada... eu ri:
- Mas, Carlos, eu não temo agulhinhas!
Volto ao corredor do Hospital, à cadeira de rodas e ao rebuliço causado por um internamento que urgia, sem que ninguém ou documento algum me acompanhasse.
Ia de roupão. Não pudera tomar banho mas conseguira, devagarinho, meter numa pequena bolsa a escova de dentes, um bloco, uma esferográfica e três livros:
Dois de Fernando Pessoa e um de Isabel Allende.
Passou por mim um senhor que me olhou com um entendimento indizível, acenou respeitosamente com a cabeça e, sem uma palavra, seguiu.
Senti-me confortada.
As enfermeiras andavam numa lufa-lufa: mas eu era doente e amiga do Professor Ravara e estava no lugar que me indicara: Medicina 1, o que ele chefia.
A enfermaria era pequena: tinha três camas.
Numa delas, um casal despedia-se de uma senhora idosa.
No visor da máquina junto a ela as linhas coloridas seguiam vias desconhecidas.
Soava um tiq-tiq-tiq, em simultâneo com as linhas quebradas por ângulos, para mim enigmáticos, que subiam, desciam, subiam, seguiam...
Aos pés da cama um nome: Noémia.
Uma enfermeira chegou e, com suavidade, convidou o casal a sair, murmurando:
- “Vão tranquilos, ela já está inconsciente, não sente nada...”
Na outra cama, uma menina dos seus vinte anos.
Ligada ao soro, levantava-se de vez em quando, tinha dores, era de uma simpatiatão radiosa que parecia florir o quarto.
Lia um livro, ou fingia ler.
Telefonava à mãe.
Aos pés da cama, um nome:
Marina.
A D. Noémia estava muito agitada.
Afligia-a muito sentir os pulsos atados às grades levantadas da cama.
Pedia para fazer xixi... e Marina ia junto dela, dizendo-lhe muito docemente:
“Faça na fraldinha, vá lá, D. Noémia, tem fraldinha, faça...”
Depois, a D. Noémia ficava longo tempo longe.
Um pombo torquaz alojara-se-lhe na garganta. Tentava enrolar os lençóis de forma obstinada.
De quando em vez, falava.
Falava com muita gente: com as filhas, os genros, o marido, os criados...preocupavam-na todas as tarefas.
Decidida e autoritária, chamava.
Dava ordens.
De repente, caía na abstracção total.
Agitava os pulsos.
Quedava-se.
Os olhos quase sempre fechados mexiam-se muito.
Suplicava que lhe desatassem os pulsos, por favor, por favor!
Aquilo não era coisa que se fizesse a ninguém!
Eu, que divagava ora ali ora noutro lado qualquer, escutei a catequista ou a professora de religião e moral dizer:
- Nunca se deve negar o último desejo de um moribundo!
E vi o desenho idiota do catecismo: de um lado chamas, do outro um padre, um homem agonizante ao meio.
Não sei como desci, peguei na mão da D. Noémia, lhe desamarrei a gaze dos pulsos.
A moça tocou à campainha, enquanto a senhora tentava libertar-se dos eléctrodos.
Olhei profundamente o rosto da senhora e pensei: A morte está na tua frente: Encara-a!
Encarei e era tranquila, doce, pacífica.
A enfermeira alarmou-se, pediu auxílio.
Achei-me de novo na cama, com a máscara de oxigénio, e um enfermeiro, com os olhos mais azuis e compreensivos do mundo, disse-me:
- Todos os sensíveis são julgados loucos, por serem diferentes.
A D. Noémia foi ligada a tudo o que era preciso: à máquina, às grades da cama... desprendia-se da vida.
A moça, da sua cama, explicou que a senhora tinha mais de noventa anos e fora uma grande fazendeira em Angola...
O tempo não existia, mas a D. Noémia percorria a vida em ordem inversa, ficando mais jovem à medida que o tic-tic-tic abrandava e as linhas no visor se iam tornando menos quebradas, de ângulos mais espaçados.
Eu, ora me apercebia disto tudo ora mergulhava no mais profundo de quanto profundo possa ser o sono.
Falava com a minha filha, ralhei com ela, sentada na beira da cama, de pernas penduradas na borda... mas num lapso vi que as grades da cama estavam levantadas.
Peguei no livro de Fernando Pessoa, deixei-o aberto sobre o vão das páginas, às cegas.
A menina sorria-me e olhava se eu pegava no bloco e escrevia... Perguntou-me porquê.
Eu disse-lhe que só sabia escrever.
O último poema Chama-se “diamante”... Ela pediu-mo, eu dediquei-lho mas recomendei-lhe que o copiasse, pois gostava de guardar certos papéis...Prometeu que sim.
Cada vez ia ficando mais tempo numa doce ausência.
Sentia-me um rio a percorrer um deserto, dividindo-se em muitos braços, como um delta... e ia sendo sorvida no nada, no absoluto nada, doce, tão docemente...na paz completa, na ausência de todo o sofrimento.
Percebi que estava morrendo e perguntei-me:
- Mas onde estará Deus nesta sala?!
A D. Noémia, que tinha atravessado a sua vida inteira, e recomeçara a viver agora, terminou balbuciando
- “pa-pa-pa-pá... ma-ma-ma-mã »… e os tic-tic-tic que já eram pingos de som,tornaram-se num zumbido.
E o rio ia sendo absorvido... e eu deixava de ser e minhas últimas perguntasforam:
- Aquele homem seria mesmo meu pai?
Depois, no fio derradeiro:
- Será que comecei por falar ou escrever?
Depois a paz, nem branca, nem negra, nem nada... paz absoluta...
Nada.
Quanto tempo depois me dei conta de mim?
Estava onde?
Nua sob um lençol, de fralda, ligada a fios e tubos.
Um enfermeiro disse-me, de muito longe:
- Agora vamos drogá-la a valer, sim?
... Deslizaram-me para uma sala em penumbra.
No monitor do computador, corredores cinzentos perpassavam.... Eu, drogada,tentava olhar...
O médico sorriu:
- Com que então a ver o seu coração por dentro?!
Movia-se!
Depois o nada... o longo nada... de quando em vez pressentia movimento, as enfermeiras murmuraram entre si:
- Já viste, no dia de hoje estamos cheios?!
... Seria dia de Ano Novo.
Doía-me muito a garganta.
Tentei uma posição mais confortável.
Tentei afastar a máscara transparente, que incomodava...
- Tch tch thc... não pode!
Tem de ficar de modo a que o oxigénio lhe encha os pulmões, e sem a máscaraainda não consegue!
Disseram-me que o Professor Ravara telefonara.
Não sei como, vi-me de novo na primeira cama, na enfermaria onde dera entrada.
Sozinha.
A cama da D. Noémia estava impecavelmente arrumada e anónima.
A de Marina... onde está Marina?
- Marina teve alta!
... Marina, levaste o meu último poema... onde estás, que lhe faltam os dois últimos versos, que deixei escritos no bloco e ainda tenho:
“Reviver
Partir para onde?”
Uma enfermeira, pegou no meu livro e disse-me:
- Olhe o que estava a ler:
“O poeta é um fingidor”
... Olhou-me e sorriu.


Sem comentários: