quarta-feira, setembro 24, 2008





    Travessura
    Era o tempo da Ditadura.
    Havia dois agentes reconhecidos da PIDE (polícia internacional para defesa do estado, treinada por agentes da Gestapo)... Um era o Bolas, outro o Cabide.
    O primeiro era professor de francês, enorme, passava os intervalos a devorar bolas de Berlim (bolos fritos)
    Um dia entrou numa aula do 4º ano, meninos que tinham soletrado o francês três anos a fio, e perguntou:
    - "Comment fait le burr?"... Queria informações acerca da voz do burro (âne)... toda a sala estremeceu de gargalhadas!
    O Cabide era contínuo.
    Um perseguidor implacável e mesquinho, esqueleto vivo donde pendiam as ombreiras do casaco assertoado.
    Um dia, em plena aula, em que se desfazia em mesuras diante da S'tora (era como tratávamos a professora, abreviando Senhora Doutora)... eu, nas carteiras da frente, enjoada com tais maneirismos, deitei-lhe a língua de fora.
    A S'tora viu!
    - Maria: Rua!
    Ai que baque no peito!
    Enfiei-me na casa de banho, ajoelhei-me a rezar até tocar a sirene, apavorada: Se tiver falta por mau comportamento o meu pai mata-me!
    Não tive falta.
    Já constava que eu tinha problemas em casa e, afinal, ninguém gostava do Cabide nem um bocadinho!
    Se calhar a S'tora também tinha vontade de lhe deitar a língua de fora!

quarta-feira, janeiro 23, 2008

Comedores de Flores








Comedores de Flores


Como em muito outros jardins, havia neste um jardineiro que era visceralmente inimigo de flores!

Pisava-as sem dó nem piedade, favorecendo antes as ervas daninhas, que prosperavam e medravam felizes, oprimindo e empurrando as flores que, por dever, deveria cultivar.

Tinha este jardineiro uma espécie de devoção a seu amo, um louco apreciador de coutadas onde pudesse caçar seres inocentes, que tratavam das suas vidinhas, dos seus territórios, da sua procriação e alimento.

O jardineiro vacilava entre o ciúme e a ambição!

Cortava as flores das principais hastes, impedindo que crescessem; não as regava; jamais adubava o solo, antes fazia queimadas a torto e a direito, destruindo as mais rasteiras, as sem espinhos, os amores-perfeitos, dálias, jasmins olorosos cujo perfume o enfastiava.

Odiava sobretudo os cravos e, dentre estes, destruía ferozmente os de cor vermelha, pois lhe lembravam não sei que tristes tempos da sua infância perdida.

Em vão choravam as margaridas e oravam as açucenas!

Colhendo-as sem cuidado, apresentava-as em vistosas coroas a seu amo louco, que nem tão pouco cuidava de as colocar numa jarra, deixando-as murchar no auge da sua beleza.

Claro que sem flores não há frutos e sem frutos não há sementes!

Bem se ralava o jardineiro!

Tivesse boas fardas para seu uso, tivesse bons ginetes para os seus passeios... afinal o emprego parecia ser efémero, o que viesse a seguir que replantasse, que se desenvencilhasse, que fizesse o que lhe aprouvesse... por essa altura já ele estaria fora; teria dado o pulo para um jardim mesmo seu, que comprara num paraíso distante!

sexta-feira, janeiro 11, 2008

O MENINO DE SUA MÃE





Chegou a casa com maus modos, para jantar.
Tirou do bolso um papel branco e atirou-o para a prateleira da estante.
Olhei-o interrogativamente. Desviou os olhos de mim e, saindo da sala, disse:
- Estás grávida, estás!
O meu coração disparou, batendo muito depressa.
Angústia. Medo. Perante a ameaça e a raiva daquela frase dita entre dentes.
Ele saíra da sala sem mais uma palavra.
Eu fiquei presa ao sofá, em frente do aparelho oco da TV.
Os maus modos dele diziam:
- Só faltava estares grávida!
Como se fora algo que eu fizera sozinha!
Comeu e saiu.
- Vou trabalhar! – Era por essa altura a frase com que se despedia quando ia ter com a tal “menina”...
Tratei da minha filha, com três anos e meio, deitei-a na sua caminha branca de grades.
Fiquei muito tempo junto dela, até que adormecesse, pois saíra do nosso quarto havia pouco tempo, onde, descida a grade, sempre dormira com a sua caminha encostada a mim, atenta, afagando-a se se agitava, tapando-a se se descobria.
O pai habituara-a a dormir de luz acesa.
Conversei muito com ela, contei-lhe uma história, afagando suavemente os seus caracóis loiros de bebé.
Quando os olhinhos se lhe fecharam, a mão agarrando a minha, fiquei ali ainda, pensando junto dela na sobressaltada alegria que sentira ao ler no papel vindo da farmácia aonde levara uma amostra de urina:
- Positivo!
Exactamente a mesma palavra, num papel semelhante, estava escrita naquele outro, que o pai atirara sobre o móvel da sala, irritado, impaciente, indiferente ao filho que semeara e crescia no meu ventre.
Pus-me a olhá-la bem, à minha menina: recordei todos os seus momentos: o seu primeiro olhar, o seu primeiro sorriso, os seus primeiros passinhos... lágrimas de alegria desciam-me pelo rosto: em breve repetir-se-ia o milagre da vida que despertara e vivia, ainda silenciosamente, no aconchego de mim, se alimentava do meu sangue; era uno e indiviso comigo... Devagarinho, o amor por esse filho descoberto tomou conta do meu coração!
Deitei-me. Não sei quando o meu marido voltou: havia tanto tempo que só chegava de madrugada, cansara-me de o esperar, sequer de me afligir.
Ao outro dia, cumprida a rotina matinal das mães que têm muitas missões a cumprir antes de iniciarem as suas oito horas de trabalho numa cidade e deixarem os seus filhos entregues aos cuidados de uma pessoa longe, entrei no autocarro apinhado, corri para a fila do barco, segui no aperto de milhares de outros que vão de manhã para o trabalho de olhos mortiços, cumprido o destino de animais que vão para o matadouro e regressam à noite, exaustos e partidos, afim de recomeçarem as tarefas adiadas.
Da outra vez tinha dito às minhas colegas que estava grávida, tínhamo-nos congratulado juntas... desta, algo me fez calar o despontar da alegria, uma incerteza indefinida, algo aparentemente inexplicável: a ameaça pairava como um cutelo afiado no brilho frio dos olhos do pai dos meus filhos.
Quando chegou para jantar, resmungou:
- Agora tens de te livrar disso, já sabes!
O meu coração apertou-se. Senti-me reduzida a nada, tremendo. A minha boca não se abriu, toda eu me concentrava no que acontecia dentro da minha barriga.
Ele foi “trabalhar”, como de costume.
Cumprida a lida da casa, deitada a filha no berço, encolhi-me na beirinha do colchão, sem me mexer, as lágrimas enfim soltas.
Ah a dor indizível da impotência que nos consome, sem remissão, sem nada nem ninguém que nos escute!
Na noite seguinte, trouxe uma caixa pequena, redonda, anónima e branca.
- Isto vai resolver tudo. Toma!
Trouxe um copo de água e ficou ali, de pé, verificando se eu engolia os comprimidos todos.
Poderia ser qualquer veneno. Obedeci sem proferir palavra.
Na minha roupa, nem uma mancha vermelha.
Portanto, repetiu-se a cena, a dose, fornecida por um farmacêutico cúmplice dele, amigo de farra, confidente e conivente. Todos os dias, nova caixinha branca redonda, de plástico, sem dizeres, fechada com fita gomada, cheia de veneno a tomar obrigatoriamente à sua vista.
-Toma isto. Amanhã vem-te o período de certeza!
Engolia as lágrimas, os protestos e as drogas.
O filho tinha o nome de “menstruação atrasada”. Entre as mulheres que conhecia e com quem trabalhava esse problema era falado com tal frequência que se banalizara.
Resolviam-se “os atrasos” tomando certos remédios, secretos, miraculosos.
Não lhes chamavam abortos, mas provocar o aparecimento da menstruação que se atrasara...
Na minha estúpida inocência, numa sociedade hipócrita onde não se mencionavam assuntos tabu, nem a palavra aborto, nem a sexualidade era considerada... como se os filhos aparecessem do nada, trazidos no bico da cegonha, nada se discutia, não havia a quem colocar dúvidas, as questões permaneciam camufladas atrás da máscara opaca das “famílias respeitáveis”, aonde não aconteciam “certas coisas”
As senhoras respeitáveis, entre as quais trabalhava e me movia, que me falavam muito bem, me metiam no coração, me demonstravam estima e respeito... sabiam porém muito mais que eu: sabiam da vida dupla de meu marido mas... cala-te boca!
Eu tinha medo. Não tinha ninguém. Tudo se passava na solidão das quatro paredes.
Estava tão fragilizada, vulnerável, insegura!
Acreditava ainda que o homem que amava, porque ainda o amava, deveria ser o meu único confidente, confiava nele, muito embora a sua frieza me assustasse.
Me repugnasse a sua ambição sem escrúpulos; o calculismo com que ia ganhando terreno nos negócios... enquanto eu sustentava a casa, porque seria normal, uma vez que fazia as compras, pagá-las com o dinheiro do meu salário.
Tudo fazia para não o contrariar. Obedecia-lhe como uma cega, tentava não o desagradar nem nos pormenores. Colocava-me a mim mesma em último plano. Anulava-me pelo bem-estar das duas únicas pessoas que tinha por minhas, às quais dedicava a vida: meu marido e minha filha, o conforto da casa, o desempenho profissional, as coisas prontas a horas certas, tudo deslizando como se rodinhas bem oleadas e invisíveis tudo arranjassem: a máquina invisível era eu, o óleo mágico que tudo fazia deslizar sem se perceber era o meu empenho e esforço.
Aos domingos, costumávamos visitar o meu padrinho de casamento, fino e sabido, que enfim decidira assentar junto de uma mulher ainda mais fina e sabida que ele:
Minavam aos poucos os restos do resto da minha família, insidiosamente.
O meu marido contou-lhes ao serão, com a maior naturalidade o “meu caso”... Eles foram unânimes e enfáticos em dizer que tinha de resolver “isso” depressa, pois ele agora não queria problemas... e que isso era fácil, banal, toda a gente o fazia...
Voltei mais animada.
Vínhamos sempre muito tarde e a minha filha deitava-se no banco traseiro do carro e adormecia.
Eu tirava-a com cuidado, embora já fosse muito pesada. Trazia-a aconchegada contra o peito, despia-lhe a roupinha e vestia-lhe o pijama sem que ela despertasse. Deitava-a e dava-lhe um biberão de papa-láctea, que ela engolia, tranquilamente, dormindo.
Tinha “muita prática e jeito”, dizia o pai dela.
Mas naquela noite despertou e viemos palrando até chegarmos à porta. Sentia-me aliviada e tão feliz!
Feliz porque a minha filhinha não seria, como eu, uma triste filha única, sem ninguém no mundo que a amparasse.
Sempre desejara ter dois filhos e tinha-os! Um ao colo, outro crescendo suavemente, aconchegadinho dentro de mim.
Enquanto o pai procurava as chaves, eu e a menina brincámos: num impulso, rodopiámos juntas, eu com ela nos meus braços, rindo em coro!
Toldou-se-me a vista e caímos no chão de mármore da entrada. Não nos magoámos, apenas me assustei por ela e pelo bebé pequenino. Consolei-a, subimos, tratei dela e deitei-a.
Nada se sangue na minha roupa... suspirei de alívio!
Quando ficara grávida da menina tivera sintomas de aborto durante muito tempo, fora uma gravidez sobressaltada, sempre no risco de perdê-la. Tinha muito medo que tal se repetisse.
Os medicamentos vinham todas as noites, obrigatoriamente.
Até que foi como se despertasse de um sonho estúpido.
Pensei: meu Deus! Quando estamos grávidas todos os medicamentos são perigosos; nem aspirina tomava receando prejudicar o bebé que trazia no ventre... e agora, que venenos estaria este pequenino recebendo através do meu sangue?
E se o meu filho nascesse deficiente?
Oh angústia suprema!
Oh dor cega! Oh tormento da culpa pela minha cegueira!
Como chegara a tal ponto, eu?!
Como deixara que me toldassem o espírito?!
O meu marido tinha preparado a marinada e ia cozer-me nela: atingira o seu fim.
Vendo-me chorar, porque sempre a morte estivera à minha cabeceira e eu crescera ao abandono, não tendo a quem entregar os meus filhos se algo me acontecesse... que seria do meu filho se caso ficasse só no mundo, não pudesse valer-se?!
Era a oportunidade que ele esperava: insidioso como uma serpente, achando preparado o terreno, disse na sua voz melosa e falsa:
- Agora já nada há a fazer. Tens de ir a uma parteira. Levo-te lá amanhã.
Com a morte na alma, sozinha, pensava... e quanto mais pensava mais negro via: o bebé estaria deformado? O bebé sofreria? Até que ponto o seu sistema nervoso estaria já formado?
Como sentiria a morte, o meu filho?
Teria oito ou nove semanas... idade crucial. Que seria de nós?
Oh meu Deus, vão tirar-me o meu filho!
No dia seguinte, de manhã, fomos a uma vivenda com dois pisos, algures, nos arredores da cidade.
Veio uma mulher receber-nos. Olhou-me com olhinhos de víbora: muito nova, assim como o meu companheiro: íamos desmanchar algum arranjinho, pensou a sanguessuga.
Entrei sozinha, ele foi para o carro ouvir música.
Era uma sala fria, com um sofá à esquerda e cadeiras de espaldar direito a toda a volta.
No meio da sala, uma mesa de vido, nua.
Sentadas nas cadeiras, três mulheres, que não levantaram os olhos do chão.
- Senta-te aqui um bocadinho. Não demora muito.
Atrevi-me a olhar de relance as outras e elas a mim, mas desviámos rapidamente os olhos.
Ninguém disse palavra. Rostos tristes, desanimados, mais frios que o frio que fazia. Ali permanecia um frio de arrepiar.
Sentia-se no ar a culpa. O peso da dor. O medo: o cheiro do éter.
Uma casa de morte; uma casa destinada a matar inocentes na impunidade escondida.

Só quem nunca lá esteve fala à boca rota... quem lá esteve cala-se e tenta esquecer o horror.
As mulheres foram entrando, uma a uma. Passada cerca de meia hora, voltava uma e entrava a que se lhe seguia. Realmente, tudo se passava num instante.
A minha vez chegou. O meu coração encolhia-se, como o de um passarinho apanhado.
Tinha medo. Uma incomensurável pena. Sentia um fardo pesadíssimo: ou nasce deficiente ou morre, pensava. Se nascer defeituoso seremos infelizes para sempre.
Subi para a marquesa suja. Pelo chão imundo, aparelhos cirúrgicos esquisitos. Havia, atirado para um canto, um molho de tubos, que lembravam um aparelho de ordenha, mais pequeno que aqueles com se tira o leite.
No quarto pequeno, duas damas autoritárias e secas. Estava tudo muito sujo e cheirava a éter, a sangue, a suor requentado.
Iam usar o método de aspiração, que estava na moda.
Perguntaram-me que tipo de anestesia queria: geral ou parcial. Disse-lhes do meu problema de coração.
- Nesse caso não te damos nenhuma, não vamos arriscar-nos a que nos morras aqui na marquesa!
- Afasta os joelhos, dobra-os, abra as pernas e descontrai-te.
- Respira fundo.
Uma dor lancinante rasgava-me o ventre. Tinha tanto frio!
Iam-me perguntando se era a primeira vez. Ficaram muito espantadas quando lhes disse que tinha uma filha de três anos e meio, que era casada e que o meu marido me esperava no carro.
Tremia de dor e de frio.
Num rasgo de benevolência, deitaram-me o meu casaco sobre a parte superior do corpo.
Não havia lençol, nem pudor, muito menos um cobertorzito.
As dores eram terríveis. Não pude impedir-me de gemer alto.
Ao fim de algum tempo senti um líquido morno molhar-me as pernas; senti o aspirador dentro de mim.
- Este estava bem agarrado! Riu-se a parteira.
Meu querido filho, que assim se ia!
Limparam-me com uma toalha turca e ajudaram-me a descer da marquesa.
Toda eu era dor, sentia o ventre em chaga viva.
Deram-me um calmante e deixaram que me deitasse um pouco, no tal sofá da sala de entrada, com o meu casaco por cima.
Já havia outras mulheres tristes na sala, mas mal as vi.
Só queria encolher-me em posição fetal e que me esquecesse ali!
Caí numa sonolência atordoada. Pedi que me mostrassem o que tinham sugado de mim.
Trouxeram um frasco dos de Tofina, cheio de água com uns fiapos de sangue a flutuar lá dentro.
Estendi a mão: estava frio, não era o meu.
- Acha que ele sentiu alguma coisa? Perguntei numa voz entaramelada.
- Se soubesse que estavas de tão pouco tempo, não to fazia!
- Se fosse de mais tempo, não fazia, não! Garanto-lhe que não! Só espero que não tenha sofrido muito!
Olhou-me como se eu estivesse doida:
- Um desmancho é um trabalho e um feto é uma colher de sangue coagulado!
Passados uns minutos, obrigaram-me a levantar do sofá e arrastaram-me até à porta da rua.
Lá fora estava o meu marido. Falavam em dinheiro. Eu estava com muitas dores e muito confusa, mal me aguentava de pé.
- Então, não tens aí cinco contos para pagar isto? – Perguntou o meu esposo, assassino.
De repente, fiquei lúcida, chocada, ofendida. Tinha feito aquela pergunta num tom desprendido, indiferente, como se eu fosse uma prostituta a quem ele dera boleia.
Respondi que nem carteira trazia.
Ele pagou e amparou-me de má vontade até ao carro. Fui entrando devagarinho, gemendo. Sentei-me no banco, encostei-me, respirei fundo.
A maldição dele tinha-se consumado! Já nada havia a fazer.
O meu filho estava morto. O meu filho estava morto. O meu filho estava morto....Com esta frase a latejar-me na cabeça, nem dei pelo caminho.
Chegada a casa, deitei-me no sofá da sala para recuperar um pouco.
Ele saiu, foi para o trabalho.
Eu perdera um filho, sofria, perdia sangue, chorava.
Ele vencera: custara-lhe cinco contos e perdera, do seu tempo, uma manhã.
Aos poucos, agarrada às paredes, lá me arrastei para a cama.
Estive toda a tarde sonolenta, as lágrimas corriam-me pela cara abaixo.
O penso estava encharcado de sangue e eu sem forças para ir buscar outro.
Muito quieta, as pernas muito unidas, dobrada como um feto, sofria e chorava alto: Mataram o meu filho! Mataram o meu filho e eu, estúpida, deixei!
... Mas se nascesse deficiente, que seria dele, quando crescesse e eu lhe faltasse?
Oh, porque mataram o meu bebé?!
À tardinha, não havia jantar... ralhos e ameaças. Desta vez foi ele que cuidou da menina e a deitou.
Saiu de novo.
No meu emprego, dei parte de doente.
Ao segundo dia, arrastei-me até à sala, deitei-me no sofá.
A minha filha passava os dias na ama, não sei se esta sabia se não.
Não contei a ninguém.
Chorei dias e dias seguidos. Sentia-me molhada e vazia. Sentia-me de luto.
Sentia muitas dores, mas sobretudo sentia a perda do meu filho.
Tive febre. Fui à minha ginecologista, minha amiga, que viu e nada comentou.
Tratou-me da infecção e fingiu aceitar uma desculpa esfarrapada, até que eu estivesse preparada para desabafar com ela.
O meu ventre curou-se pouco a pouco, a minha alma há-de doer sempre!
Carreguei esta minha dor sozinha, por quinze anos, a chorar todas as noites.
Por fim coloquei este defunto bem à minha frente, despedi-me dele e coloquei-o com carinho ao lado dos outros, que guardo num lugar da alma, pois não consigo enterrá-los.



Maria Petronilho

domingo, fevereiro 25, 2007


Por um Triz


Ela sabia-o em perigo.Urgia avisá-lo. Tímida, hesitava, a agenda tremendo nas mãos.Com os olhos cheios de lágrimas e o coração saltando do peito, tomou coragem e ligou o número do telefone móvel.Passara a ser acessório: Mesmo nas conferências e espectáculos, de quando em vez um som fulgia e logo se apagava num sussurro.Ouviu o som de chamada longa, longamente …. Depois um dedo enfadado calara o inoportuno.

Sinal monótono:- Fim!



23/11/2006
Maria Petronilho




segunda-feira, fevereiro 27, 2006


Tempo de Escuridão



Na escola primária, onde perdi 4 anos de vida (eu sabia ler e escrever, sequer andava em classe certa: sentava-me onde calhava).
Aí, onde os meninos iam descalços e quase nus sobre a neve, as professoras ficavam furiosas de ser colocadas... e descarregavam toda a raiva sobre nós, pobres crianças: réguada que se escutava à distância ao estalar sobre as mãos enregeladas... que, saindo da escola, ainda tinham de ir trabalhar.
O alimento: pão com azeitonas.
Na casa das minhas avós tudo se fazia: eram economias medievais de auto-subsistência, portanto comida nunca faltava.
Mas faltava amor e cuidado.
Era como se eu não existisse: se aparecia, comia; se não aparecia não comia.
Quem se importava se eu dormia ou me levantava, se estava doente ou triste?!
Nunca na vida alguém foi à minha escola (falo de 11 anos em que andei na escola, até concluir o liceu)
Cheguei no primeiro dia, sentei-me na carteira da frente com um sorriso de orelha a orelha, escrevi os meus cinco nomes na capa do caderno, e fiz pose (como via nas figuras) declarando:
- É assim que se está na escola!
... Ora eu nunca tinha convivido com outras crianças, nem sabia brincar como elas.
Recortava bonecos de papel e fazia teatrinhos, onde contava a mim mesma muitas histórias.
Como andava de casa em casa, nunca tendo poiso certo, ora na cidade ora no campo, captava coisas daqui e dali... inventava cantigas e brincadeiras.
As outras meninas (meninos do outro lado de um muro alto) tinham pais, muitos irmãos, brincavam de imitá-los...
Eu, a quem chamavam "a orfã", era diferente... apanhava pancada de todos: das colegas, em casa, da professora...
Nem falo, depois, do meu pai psicótico e da minha madrasta!
Perdi muitas coisas, mas salvei algumas: escrevia poemas "para guardar" em cadernos que forrava de plástico; escrevi "a minha história" sei lá quantas vees... mas perdi os cadernos do liceu, onde tinha lindas redacções, que passavam em todas as turmas - tenho pena.
Por exemplo: "A Sinfonia da Vida" é uma redacção antiga.
Também tenho pena dos livros escolares... se faltava espaço, as minhas coisas eram deitadas no lixo.
Naquele tempo ninguém se importava com os sentimentos das crianças... era um tempo muito cruel, para todos: tempo de fome, de prisão e tortura, se vires filmes de como vivíamos julgarás que estás a ver a reconstuição de um tempo centenas de anos antes do século vinte.

segunda-feira, janeiro 23, 2006


Saudades da Horta das Carriças



Nota: a Carriça é uma ave que, quando se ara a terra, saltita de rego em rego atrás do lavrador para comer os vermes que a charrua pôs à superfície.

Não era lavrada a Horta, mas cavada à enxada, não se sabe portanto de onde lhe virá o nome.

Na Horta das Carriças havia um poço com nascente a uns três metros de fundo, de onde a água se tirava aos baldes, com uma grande cegonha *.

A cercá-la, uma parede de pedra solta, ao correr de toda ela. Nasciam espontaneamente bastas e pequenas violetas brancas. O cavador não lhes tocava com a sua enxada, talvez porque o comovesse tal gesto da Natureza.

No velho aterro, sobras da terra onde o poço fora escavado, ainda em montão e amparadas por pedregulhos ali deixados ao acaso, alguém espetara estacas de lilases brancos e azuis, que cresceram desvairadamente e floriam em tal abundância que o ar da primavera vivia ali, embalsamado em odores e cores.

A água seguia por um tosco rego escavado no chão rico, há muito tempo. A salsa não secava nunca e existia sem ter sido semeada por ninguém.

A erva cobria tudo e, das fendas na parede, rebentavam videiras bravas, que se aproveitavam às vezes para fazer enxertos na vinha.

Num canto sombrio, numa espécie de caverna de verdor, cresciam violetas dobradas, azuis, enormes como nunca vi, ia jurar que foi Deus que as inventou ali mesmo e só ali existiam.

Rompera o muro, com as suas fortes raízes, entre aquela horta e a do vizinho, uma árvore altíssima. Esta, em vez de provocar discórdia, provocava harmonia: Aproveitávamos todos as suas pequeninas bagas, aromáticas e roxas, que caíam lá do alto do Lamegueiro, em profusão, sobre as duas propriedades.

Os frutos da terra a todos os homens pertencem: eram deliciosas, embora se lhes aproveitasse só um niquinho de polpa e de sumo... o resto era um caroço redondo e negro, que cuspíamos mas nunca germinou.

O rego de verdura desembocava num tanque de pedra granítica, quadrado, pejado de limos, de onde saía a água para a rega, por um buraco feito no fundo que se atafulhava ou desatafulhava com um trapo, conforme as necessidades das plantas: Ervilhas, favas, feijão, couve, árvores generosas de pêssegos, pêras e maçãs.

Mesmo ao lado, inusitada, uma roseira-chá enorme, frondosa, onde me escondia a mascar laranjas e limas-doces e que tinha sempre uma rosa, mesmo no tempo frio, para oferecer à sua pequena amiga.

O outro lado do pomar era o reino das laranjeiras. Aí o doce aroma das florinhas brancas de seda, que juncavam o chão de alvura, envolvia-me.

Ai andar ali descalça, sem medo dos lacraus, das centopeias, das aranhas!

Rebolar naquele tapete tenro, encher o peito de ar perfumado e não pensar em mais nada! Deixar ali suspensos os meus sonhos e os meus poemas inventados e logo esquecidos!

E recordar a minha mãe, há tanto tempo coroada de noiva com aquelas mesmas flores e depois levada no seu vestido branco para debaixo da terra com tantos lírios roxos, carapeteiros brancos, rosas e lágrimas.

Ali lembrava eu, sozinha, a minha mãe breve, a mãe quase desconhecida. Ali chamava por ela, que mais ninguém lhe dizia o nome, que mais ninguém lhe via os retratos, que se fora como uma borboleta leve e me deixara.

Ali eu invocava as recordações mais fundas do meu peito de criança ferida.

Voltei às Carriças com a minha filha pela mão, em silêncio, e saí de lá a chorar:

É um recanto na minha memória, já não existe. Não restou nada, senão a saudade .

*cegonha - engenho para tirar a água a pouca profundidade, constituído por uma vara que tem um balde suspenso numa das extremidades e um peso na outra.




Maria Petronilho

A Menina do dragãozinho que fazia magia


Em meio ao silêncio, soaram uma leves pancadinhas na porta... Tão suaves eram, que pensei serem engano dos meus ouvidos. Levantei a cabeça do caderno em que escrevia, e: “Toc-toc-toc” – de novo! Levantei-me e fui ver, espreitando pelo olho de vidro da porta: Nada! “Toc-toc-toc” – As pancadinhas soavam baixinho, mesmo do outro lado da madeira, que coisa! Abri a porta, curiosa. Vi uma menina, de vestidinho cor-de-rosa, fora de moda, como os da minha infância: Franzido na cintura, manguinhas curtas de balão, um grande laço atrás. Cabelo cortado a direito, olhinhos castanhos enormes, líquidos de inteligência e vivacidade. Sorri. Ela sorriu também e foi como se se tivesse derramado entre nós um perfume de alfazema! Sem ter de lhe perguntar, já ela ia respondendo num gesto: estendeu os braços, segurando nas mãos ambas um cesto de vime redondo, com tampa. - Dás-me um Euro se te mostrar o que tem dentro? - Murmurou. - Claro que dou, disse eu! E uma fatia de bolo! - E uma laranja fresquinha, tens? - Tenho sim! Posso arranjar um lanchezinho e arrumá-lo no teu cesto. - Não! Não podes! - Porque não posso? - O cesto está ocupado, não te disse antes? Só o abro se me deres um Euro! - Pronto, pronto! – Disse eu. E ia voltando costas, a caminho da cozinha... - Ei! – Disse a menina, antes que eu sumisse – E o Euro? - Já te dou; vou à cozinha. Entra, se quiseres! - Não quero. Quero um Euro e uma laranja fresquinha.Depois, muito baixinho: - E a fatia de bolo. Cheira tão bem! Fizeste-o agora mesmo, não foi? - Foi! Tirei-o agora mesmo do forno. - Então dás-me duas fatias? - Tens muita fome? Queres um copo de leite? - Não! Leite com laranja azeda, não sabes? Só quero o que combinámos. - Ai, ai, que teimosa me saíste! Vou procurar a moeda. Primeiro a moeda ou o lanche? - Primeiro a moeda! – Afirmou, quase arrogante. - Porquê primeiro a moeda? - Porque estraga mais depressa. - Estraga-se mais depressa do que a laranja e o bolo? – Estranhei. Como me explicas tu isso? - Ah, eu explico: É que daqui a pouco já quase nada se compra com um Euro! - E que vais tu comprar com o Euro? - Não sei. Vou dá-lo à minha mãe, que está sempre a dizer isto ao meu pai. E o meu pai discute com a minha mãe. Por isso tenho pressa. Preciso muito do Euro! Dei-lhe a moeda. Abriu o cestinho. Dentro, um dragãozinho de plástico verde e amarelo. Arregalei os olhos pasmados. Ela levantou o brinquedo e juntou a nova moeda a outras que estavam no fundo. Fechou cuidadosamente o cesto e disse séria: - Sabes? Assim o meu dragãozinho faz magia. - Pois faz! – concordei. Se pedires um Euro a cada pessoa... - Vês, como percebes? Já não era sem tempo... ufa! - E porquê a laranjinha fresca? - Para a minha mãe, que espera um bebé e precisa de vitamina. ... Fui para a cozinha, estendi um pano na bancada, assentei um prato no meio e arrumei nele bolo, fruta, pacotinhos de sumo. Atei as pontas em cruz, como vira tantas vezes a minha mãe fazer, que nunca deixava um pobre sem um prato de comida. Tinha-me esquecido da força da solidariedade silenciosa, no deserto de cimento onde berram de todos os lados: Compre! Compre! Compre! E nos agridem a cada instante com preços, com cotações, promoções, anúncios de bens supérfluos. Nos assustam e envenenam com apelos ao consumo desenfreado. No oposto, a suavidade de um “toc-toc-toc” na porta. Uma menina com vestido cor-de-rosa e um dragãozinho de plástico que faz magia pelo modesto preço de um Euro. A inteligência ensinando a todos o modo sublime de contribuir para a paz.

A AUSENDA


A ÚNICA CASA QUE FICAVA PERTO DA DO LOUREDO, ERA A DA AUSENDA.
CASA BAIXA, PEQUENA, DE TELHA VÃ MUITO VERMELHA, CAPOEIRA E FURDA AO LADO.TERREIRO CURTO.
MAIS ABAIXO A HORTA, A VINHA, E UMA ÁRVORE RARA - UM MEDRONHEIRO, TRAZIDO SABE-SE LÁ DE ONDE, QUE NO FIM DO VERÃO SE ENCHIA DE FRUTOS GULOSOS, VERMELHOS,SUCULENTOS...
- NÃO COMAS MAIS, LURDES, SENÃO EMBEBESDAS-TE!
AI, MEU DEUS, DELICIOSOS FRUTINHOS EXÓTICOS, FASCINANTES, ÚNICOS, QUE ME FICARAM NA MEMÓRIA DAS PAPILAS GUSTATIVAS E NOS OLHOS PARA O RESTO DA VIDA!
AI, ESTA ÁGUA A CRESCER-ME NA BOCA COM A LEMBRANÇA!
A AUSENDA, FIGURA VAGA, VINTE E TAL, RONDANDO OS TRINTA, ERA CASADA COM O ANTÓNIO CAPINHA, HOMEM RUDE, JORNALEIRO, TRABALHAVA ONDE HAVIA TRABALHO E, AO DIA DE RECEBBER A JORNA, BEBIA, CHEGAVA TARDE A CASA, BATIA NA MULHER QUE GRITAVA, DIZIAM, MAS NÃO IA NINGUÉM ACUDIR-LHE: ERA UM HÁBITO E, COMO SE DIZIA, APANHAVA AINDA POUCAS, QUE "TINHA UM AMIGO"...
FALAVA-SE, FALAVA-SE...
QUE SE VIRA O SOARES, HOMEM BEM DISPOSTO, DE CARA LARGA E ROSADA, QUE SE TRATAVA BEM
DIZIA-SE...
DIZIA-SE QUE FORA VISTO A ENTRAR LÁ EM CASA NA AUSÊNCIA DO ANTÓNIO;
QUE O ESCONDIA ATRÁS DA PORTA SE ALGUÉM DE FORA CHAMAVA;
QUE ANDAVA SEMPRE A LIMPAR-SE AOS SAIOTES, TINTOS DE SANGUE QUE ERA UMA VERGONHA.
O ANTÓNIO TINHA ALGO DE MISTERIOSO QUE FALAVA AO MEU INSTINTO DE MENINA CURIOSA, UM FASCÍNIO: A SUA VOZ GUTURAL E FUNDA.
FALAVA POUCO, MAS HAVIA ALGO TÃO ESPECIAL, ARREPIANTE, NA SUA VOZ!
PORQUE É QUE A AUSENDA NÃO GOSTARIA DO SEU HOMEM?
TINHAM UM FILHO, O TÓ CAPINHA, QUE ANDAVA NA ESCOLA E QUE, NA MINHA MEMÓRIA, ME PARECE SEMPRE COM UNS NOVE ANOS, ALTO E ESGALGADO.
BRINCÁVAMOS RARAMENTE.
EU ERA UMA GAROTA PEQUENA, AS NOSSAS MANEIRAS DE BRINCAR MUITO DIVERSAS: ELE BRINCAVA COM OS OUTROS MIÚDOS NA ESCOLA, IA AOS NINHOS, AOS TORTULHOS, ÀS CASTANHAS.
EU FAZIA BONECAS DE TRAPOS, CASINHAS DE PEDRAS SOLTAS COM MURO E JARDIM, INVENTAVA HISTÓRIAS, PERSONAGENS, VIDAS.
LEMBRO-ME DE ESTARMOS EM CIMA DO MURO, ELE A DESENTERRAR E A DIZER-ME QUE SE COMIAM AQUELES PEQUENINOS BOLBOS DAS CAVALINHAS, E EU RELUTANTE EM TRINCÁ-LOS!
UM DIA ESCULPIU DOIS ANIMAIS EM MADEIRA, COM O SEU CANIVETE, PARA LEVAR À PROFESSORA.
ERAM LINDOS! E EU NÃO ERA CAPAZ DE FAZER ASSIM! EM FÚRIA,ARREMESSEI-LHES PEDRADAS CERTEIRAS - AI, A PONTARIA QUE EU TINHA - E, ZÁZ! NUM MOMENTO LANCEI-OS DA PAREDE DO POÇO PARA O FUNDO, TRINTA METROS ABISSAIS,DEVEM TER CAÍDO NOS OLHOS DE ÁGUA BORBULHANTES QUE VI MARAVILHADA QUANDO CONSEGUIRAM DESPEJÁ-LO PARA O LIMPAR.
ARREPENDI-ME LOGO.
MAS COMO REMEDIAR TANTO MAL?!
COMO APAGAR DOS MEUS OLHOS A IMAGEM DA CARA ESTUPEFACTA DO TÓ, AINDA INCAPAZ DE CHORAR, OS BRAÇOS CAÍDOS, A BOCA PASMADA, UMA DOR SUPERIOR À COLERA?!
A AUSENDA IA ÀS VEZES PASSAR O SERÃO À LAREIRA DA MINHA AVÓ.
FALAVAM NÃO SEI O QUÊ. O ANTÓNIO IA ÀS VEZES, MAS SAIA SEMPRE MAIS CEDO. O TÓ CABECEAVA E ADORMECIA E ELAS FALAVAM, FALAVAM...
POR FIM A AUSENDA PEGAVA NO FILHO AO COLO, AS GRANDES BOTAS DE COURO CRU A BATER-LHE PELOS JOELHOS, E LEVAVA-O, A BOCA ENTREABERTA, A CABEÇA A BALANÇAR,ADORMECIDO.
EU FICAVA CHOCADA COM AQUELE MIMO TODO!
MIMO!
ACHAVA UM NOJO, UMA VERGONHA MUITO PIOR DO QUE O QUE DIZIAM DELA, E EU MEIO PRESSENTIA PELO TOM DAS VOZES, PELO FALAR À SOCAPA.
EU NUNCA TIVERA MIMO!

ÀS VEZES A AUSENDA GRITAVA:
- SOU VIRGEM!
FALAM DE MIM, MAS SOU TÃO VIRGEM COMO NOSSA SENHORA!
O RESTO, ERAM QUEIXAS, QUEIXAS, QUEIXAS... QUE EXCLAMAÇÕES GRITAVA ELA!

MORRERAM: PRIMEIRO A AUSENDA, AINDA NOVA, DE CANCRO NO ÚTERO. DEPOIS O ANTÓNIO,DE VELHO.
O TÓ PARECE QUE VEIO PARA LISBOA E FEZ FAMÍLIA.


A CASINHA, DA ÚLTIMA VEZ QUE A VI, PARECEU-ME AINDA MAIS PEQUENA.
LÁ ESTÁ, MUITO NEGRA, AO ABANDONO.

E ERA TUDO TÃO GRANDE E TÃO LONGE!

Maria Petronilho

Stress... para quê, se tudo é efémero?!

Silvio entrou na sala, feliz por vê-la vazia.
Desabotoou os botões da bata e retirou do pescoço o colar que de há muito compunha a sua indumentária.
Depôs o estetoscópio, em cima da mesa e sentou-se na cadeira giratória.
Cotovelos apoiados sobre a mesa, mergulhou o rosto na concha das mãos abertas. Respirou fundo.
Há muito não tinha o privilégio de ficar a sós consigo.
Tentou não pensar em nada, abster-se de tudo: de Natália, das crianças, das tramóias em que se envolvia, ao tentar sobrepô-las.
Da história clínica dos que padeciam naquela hora.
Tentou encontrar-se no meio do mundo que o submergia.
Não conseguia.
Tanto recomendava a todos que se abstivessem de sentir-se tensos...
Tantos conselhos e comprimidos, tantos truques aprendidos ao longo da vida, ensinados dia a dia... Mas consigo mesmo não resultavam!
Que médico lhe valia?
Sentia-se frágil como uma criança, uma criança desvalida.
Lembrou-se do episódio de Dirce, em que não acreditara:
Dirce estivera em coma. Por onze dias, mantiveram-na viva no termo da esperança.
Um dia abrira os olhos diante dele e dissera:
- Doutor! Eu sei que o senhor que esteve todo este tempo ao meu lado. Quanto tempo se passou, desde que adormeci?
Olhou-a surpreso. Dirce de nada podia lembrar-se.
Ela olhou-o nos olhos, bem fundo, com uma lucidez de assustar.
- Sei o que pensa, doutor. Mas eu via tudo enquanto dormia, pode crer.
Via o senhor e o ir e vir do pessoal.
Via a enfermaria ser limpa todas as manhãs. Via as enfermeiras trocar os frascos de soro. Via o senhor, sério, a meu lado.
- Estás enganada, Dirce, descansa – disse-lhe ele, na voz da rotina fatigada... Tantas crenças vãs, tantas histórias forjadas...
- É verdade, doutor!
Eu estava deitada mas flutuava na sala.
- Lembra-se daquele dia em que telefonou à sua outra mulher, Vânia?
Sílvio não disse nada, porém o seu rosto falou, porque Dirce prosseguiu:
- O doutor estava zangado. Falava no telemóvel e dizia
- Vânia, pára com essa conversa de uma vez por todas! Sempre te disse que por mais que me custe jamais abandonarei Natália e aos meus filhos para ficar contigo!
Sempre o soubeste. Pára com isso de uma vez se queres manter o nosso bom relacionamento!
Dirce viu o assombro patente na cara do médico.
- É verdade ou não é que o doutor teve esta conversa no telemóvel enquanto estava aqui no quarto e eu dormia?
Agora Sívio pensava, mais uma vez, nos mistérios insondáveis com que lidava.
Tinham-lhe ensinado tanto, tinha lido, escutado... mas onde, mas em que canto se encontrava o cerne que separa a morte da vida?

E ralava-se Natália com a roupa, com a mobília, com a ascensão social da vizinha, com o estado das sebes do jardim, que eram obrigação dele e não cuidava!
E preocupava-se Vânia com o seu “futuro imediato”, como dizia... porque envelhecer é inevitável e a beleza é o seguro de toda a mulher que não é casada com o homem da sua vida, mas da vida de outra... e de qual delas era ele o homem, afinal?
E de si, quem cuidava?
Qual delas se preocupava a sério com o seu íntimo, lhe perguntava como se sentia ao fim de cada dia de luta, lhe prestava cuidados em vez de lhos pedir?

E Sílvio chorou na concha das próprias mãos, encontrando finalmente o ansiado regaço no âmago de si mesmo!


Maria Petronilho

domingo, janeiro 22, 2006



É preciso acreditar no advir

A manhã virá!
Temos de puxar os carros que trazem o sol!
Temos de estilhaçar os cacos que impedem a passagem da brisa
São as mãos dos homens que levantam as paredes das prisões; mas as prisões
não duram sempre... e a erva crescerá no chão repisado das celas!

O meu coração está inquieto
porque ainda não é hoje que veremos a manhã anunciada.
Mas jamais a noite conseguiu ser eterna.


Maria Petronilho


Deus e eu




Os anjos estão entre nós, assim como Deus está dentro de nós: estão sempre connosco!
Temos de nos esforçar por ir ao encontro deles, por ter um coração limpo onde eles habitem... porque só assim eles estarão felizes e nos farão sentir felizes.
Quando rezo, converso com o meu anjo e com Deus, nada pedindo mas expondo o que se passa comigo:
se estou alegre, agradeço; se estou triste, alivio o coração; se estou aflita procuro que me encaminhem de modo a achar uma maneira de sair dessa angústia.
Não faço negócio com Deus: negócio implica comércio, portanto medição de egoismo entre o que pede/vende e o que dá/compra... isso, a meu ver, não é bonito para Deus... Deus ajuda por amor!
Toda a gente que ama ou amou de verdade sentiu esse desejo imenso de fazer feliz o ser amado, nada querendo em troca senão a retribuição pura desse amor. E assim se faz a harmonia.
Para mim, Deus tem todos os nomes (o de todas as pessoas que têm existido, existem e existirão), pois somos partículas da sua grandeza e ele habita-nos, senão não viveríamos.
Tendo todos os nomes, é único e, se seguissemos os ensinamentos que alguns mais próximos dele têm ensinado ao longo do tempo (Jesus, Maomé, Buda... ) não nos esqueceríamos de que somos um templo e de que o reino não é nosso, mas dele (Deus) e que estamos de passagem... fazemos falta uns aos aos outros, para nos ampararmos, para ascendermos e evoluirmos, de modo a tornar-nos seres melhores.
Digo seres, porque penso que Deus habita tudo quanto existe, não apenas os Homens.
Na verdade, Deus é tudo. O que os nossos sentidos percebem é efémero.


Não costumo falar deste assunto, porque os que têm crenças delimitadas por regras, punição e recompensa... se creem de coração, têm todo o direito e, sem querer, posso ofendê-los.
Acho que as regras foram inventadas pelos Homens, que são competidores por natureza.
Tão competidores que conseguiram subir ao topo da escala e... predadores, não só se destroem uns aos outros (em massa; inventando horrores inimagináveis como a tortura; as armas químicas, as armas atómicas... matando e destruindo sem olhar a quem nem a quê) como destroem os outros habitantes da Terra, nosso berço comum e único!

Maria Petronilho

terça-feira, novembro 29, 2005

Deixem-me ser criança




Eu não sabia brincar como as outras meninas, que só conheci aos 7 anos... as minhas brincadeiras eram fazer teatrinhos com bonecos recortados de papel, que contavam histórias.
Também inventava cantigas.
Não tendo poiso certo, não tinha hábitos, muito menos a quem imitar.
Achava esquisito que as outras meninas não soubessem ler.
Imaginas quanto elas me achavam esquisita a mim?!
Não tinha ninguém, portanto toda a gente descarregava a raiva batendo impunemente na mais pequenita, que só se safava quando adentrava por meio de penedias onde até os adultos tinham medo de entrar.
Pensava: quando chegar à 4ª classe hei-de ser grande e ninguém me há-de bater!
Pois sim!
O problema não foi ter crescido pouco, mas terem-me batido tanto... e se a pancada por fora dói, mais dói por dentro, se não se encontra razão para ser espancada a torto e a direito...
Quando tinha doze anos, por trancos e barrancos, herdei umas velhas bonecas... que alegria brincar com elas!
De trapos, vesti-as de princesas... e eu vestia trapos que os outros iam deixando... ao mesmo tempo lia Sartre, Steinbeck, Tostoi, filósofos, clássicos .... li "As Metamorfoses" de Ovídio, em francês.
Ganhei prémios na escola, onde ninguém foi.

Não conheci os meus avós.
Talvez o avô Petronilho fosse diferente, a julgar pelos livros que deixou.
As minhas avós... nunca me conheceram, nem se importaram em deixar-me ao deus-dará.
Não me escondo, nem tenho de que me envergonhar.
Se pudesse arrancava estes genes das veias!

Não conto os anos nem os sinto cá dentro; serei talvez menina eterna, que se ilude e sonha... a quem um grão desequilibra a consciência.

Deixem-me ser criança, que ainda é tempo! Em breve farei 5 anos, pois nasci de novo...

Tenho a eternidade inteirinha para envelhecer... se possível for!




Maria Petronilho

Será que Freud explica?!


Odeio Matemática... será que Freud explica?


Na minha juventude um livro era famoso (ou seria uma frase?!)
"Não há raparigas feias"
Porque nos queriam cegas e, portanto, enchiam-nos a cabeça de futilidades.
Não era o meu caso.
Enquanto as minhas colegas queriam ser "Hospedeiras de Bordo", eu queria ser "Assistente Social"
Quando soube de advogados presos por defederem presos políticos e de presos que cederam à tortura e se suicidaram e de inocentes presos pelo crime de pensar sem que ninguém ousasse defendê-los, teria 15 anos... ocorreu-me cursar Direito.
Ilusões que o machado do ódio cortou.


O meu pai queria comprar muitas casas, tinha dois carros sómente para si (um Morris beige para atravessar diàriamente a Ponte e um Sunbean de duas cores para trazer o que os rendeiros "lhe ofereciam"

Ele chegava lá e colhia o que não lhe pertencia, o que sempre me envergonhou... eu nem um bago de uva conseguia comer, pois se pagavam renda, o que cultivavam era seu.

Naquela aldeia na Idade Média onde os meninos iam descaços na neve para a escola e passávamos os intervalos a aquecer as mãos debaixo dos braços porque réguadas em mãos encarquilhadas de frio... são como brasas vivas queimando mãozinhas tenras!
Percebes porque odeio matemática?
Ler aprende-se por intuição, mas fazer contas?!
Já no liceu equacionava os problemas, entendia-os... mas fazer as contas?!
Freud explica e Pavlov também: era por reflexo que ficava doente e cega, suava e ficava incontinente nos testes.
A única mazela que, apesar de tanto sofrimento não me afectou, foi a dificuldade de aprendizagem. Fixava tudo de ouvido, graças a Deus, porque tinha todo o serviço doméstico a meu cargo... tempo para estudar era um luxo!
Ter folhas de ponto também:

- 3 tostões outra vez?!Vai ganhá-los para a estrada!

Só depois de casada, quando fui visitar os meus sogros e vi os estranhos pic-niques à beira da estrada, o meu ex-marido me explicou que pic-niques eram... e o que o meu pai dizia fez enfim sentido.

Graças a Deus: o que a gente ignora não nos magoa.

Maria Petronilho

Da flor do Rosmaninho





Ah, que saudades da flor do rosmaninho, que sempre adorei!
Desde pequenina, onde hovesse rosmaninho em flor era como se da terra um íman irrestível me chamasse
... Lembro-me do Alvarinhal, onde o chão estava pejado dele...

E havia um rio.
Mas colocaram uma bomba, destruíram tudo: rio, peixes... para regarem as hortas, embora houvesse um poço, ladeado de roseiras... o Soares tinha as mais lindas rosas, que perfumavam tudo em redor!

No rio, dizem que o avô Petronilho pescava com chumbo... um horror!

E havia "a toca dos coelhos"!

Se a malina matasse todos os coelhos , ali nunca faltavam: Viviam sob rochas enormes, com buracos.
O meu avô, dizem, tinha um furão amestrado.

Devia ser levado da breca!


Gostava era de sair para o campo, pescar, caçar, petiscava ouriços cacheiros... mandava esfolar e grelhar as orelhas dos bichos que se matavam em casa, deixando a carne de lado... gostava de vinho e de se escapulir para Espanha, onde passava mais tempo que em Portugal.


Minha avó não era bonita (nem feia), mas não tinha os traços finos da irmã nem da filha.
Meu avô devia pôr as espanholitas doidas! E vice-versa...

Aprendi a cantar malageñas... também com as pessoas fugidas à Guerra Civil.
A Espanhola atravessou o rio Ponsul com os filhos atados à cintura, o mais pequeno à cabeça... Perdeu-os todos, não sei se salvou o bebé, diziam que sim e que não... nunca lhe vi filho algum.
Trajou para sempre de preto, a sua horta era um lindo primor, ganhava a todas!
Nunca aprendeu uma só palavra de português.

Da fonte do Louredo, desde tempos de antanho, as minhas avós distribuiam água aos vizinhos, que corria límpida e fria em regueiras escavadas no granito.

Foi a Espanhola quem me furou as orelhas.

Baptizaram-me em Monsanto.
Nada herdei, mas ainda tenho o meu magnífico fato de baptismo.

Olha-me vestida com ele, em cima da Burra Velha! Que amazona, hein?!
Tudo deveria parecer cravos e rosas nesse tempo... depois... pobrezinha da minha mãe-menina!


Tenho lembranças tão nítidas, dos lugares, das pessoas, do que se dizia.... eu tudo escutava, encantada... diziam que o avô Petronilho gostava muito de mim.
Tinha tanta pena de que tivesse morrido!

Morreu de cancro no intestino, quando eu tinha um ano.
Diziam que tinha sido operado 7 vezes e que lhe substuituíram uma parte do intestino por um tubo de borracaha... mas de nada adiantou!
Seria verdade, não seria?!

Não era a mim que contavam, que eu "nem existia"... contava-se e eu ouvia.


Gostava de poder encadear estas coisas para escrevê-las, mas são pedacinhos colados, vagos, vagos... ao mesmo tempo alegres e tristes.
Todos precisamos ter uma história de nós mesmos, ter pais, ter avós... eu não tinha!
Então estes ditos preenchiam-me: era como se os tivesse... e imaginava o meu avô, no seu ar marcial, de bigodinho...bonito e bon vivant, incompreendido, deliciando-se a ler poesia, romances, teatro... a herança mais bela que... sei lá como, foi sumindo!
Sumiu tudo, tudo se esvaíu como fumo: a casa de lavoura estava completamente vazia...

Fui lá cumprir o dever de internar minha avó no Lar, onde era muito bem tratada...

Mas meu pai tirou-lhe a chave, colocou todos os seus petences no terreiro e ateou-lhes fogo... a pobrezinha ia a casa... e viu as suas coisas ainda a arder.
Foi ter com os meus compadres, a chorar.


Da minha pobreza, eu enviava vales para pagar os remédios, enviava roupa...

Vivíamos nesse tempo do que vendiam os ciganos, na feira onde hoje está o Fórum: trazia quilos e quilos de fruta ("dois quilos, cento e cinquenta!") ... minha filha nesse tempo era alimentada a leite e maçãs.


Daí, as hérnias discais!
Talvez daí, o horror dela só de pensar em pobreza, agora que se vê rica.


Coisas da vida, demasiadas coisas... !


... Vês a fiada de lembranças que abriste no cofre selado da minha alma?!

Selado! Há coisas em que dói muito pensar.

Maria Petronilho

domingo, setembro 18, 2005

Só estou para a Senhora Morte


Só estou para a Senhora Morte

A si, Senhora Morte, espero-a na minha quietude cansada.Espero-a coroada de tantas flores quantas as que na vida me negaram, ou roubaram.Espero-a envolta em trajes brancos, resplandecente, sorrindo ao fundo do túnel de fúlgido azul.Espero-a com o sorriso da verdade única, primeva, ao lançar-me nos seus braços confiantes, que me não renegarão, nem me julgarão demasiado humilde, nem simples-simplória para neles me acolher.Abraçar-me-á como a todos os ricos e prepotentes, como a todos os mandantes e assassinos, como a todos os crápulas e santos.Sei que está à espera, como eu estou... nem uma nem outra demasiado ansiosa, Mas tranquilamente, sabendo-nos fiéis.

Maria Petronilho

(replicando com carinho ao artigo de Raymundo Silveira "Digam que não estou")

Lisboa, 18/9/2005

sábado, setembro 10, 2005

Viagem



... Que não te falei de mim!....
Prefiro chegar, Assim, sorrateira, enquanto dormes.
Fico a olhar-te, observando o teu sossego.
Aproximo-me muito devagarinho, levanto a ponta do lençol.
Muito, muito ao de leve, toco os pêlos da tua barba. Beijo-te à flor do rosto, tomando cuidado para não te tocar os lábios.
Vagueia uma leve tristeza.
Algo na nossa amizade esfria e empalidece.
Sou movida adiante, à força de porquês.
Por defeito, começo por analisar os meus gestos, percorrendo um por um todos os momentos, na ordem inversa dos acontecimentos.
Não encontro culpas.
Dentro do silêncio, algo me escapa. Mas está hermeticamente fechado como uma pérola, um ovo. Teria de quebrá-los para ver o que têm dentro.
Não são meus, porém. Deposito-os na estante dos segredos.
Talvez se abram. Talvez amadureçam. Talvez despertem. Talvez se adensem.
Estão lá, eu estou aqui, de alma desnuda.
Já tenho direito a seguir todas as rotas da rosa-dos-ventos, sem dar explicações.
Já tenho audácia para seguir os caminhos do coração.
E fi-lo. Foi um salto no abismo: de mim para ti.
Enfrentei-me com o hábito que visto por dentro... e é tão difícil despi-lo!
Era feliz e sou feliz.
Se também assim te sentires, a fasquia com que meço a altura dos meus saltos no desconhecido subirá mais alto.
Sei que a minha jornada não é comum.
Desde o começo. Assim, parecer-te-ão inusitadas muitas coisas, comummente achadas entre as pessoas que conheces, como a elas pareceriam inusitados os meus caminhos.
Falo-te sem sombra alguma.
Com a tal sinceridade “excessiva” que é a minha marca...
Penumbra... a única penumbra bela é a que recobre os picos da tua ilha.... o resto é sombra.
Ofusca a clareza.
Da clareza flui a amizade, a poesia, o pensamento que discorre e não tem como avançar no escuro.
Amo o sol, o céu, o mar!
Amo ser brisa e onda, não cais nem âncora.
“Gostas de ser tratado como um Paxá”... a minha vontade foi de te embalar no colo.
Mas não ousei, fiz-me ainda mais pequena, encolhida no meu canto.
Para não te perturbar o sossego.
Sem peias te falei, o mesmo esperava de ti.
Sem mais... peias.
Qualquer de nós tem imaginação para fazermos de David e Rainha de Sabá...
No conto falo do encanto.
Talvez se a realidade tivesse imitado a ficção... talvez o esperasses, desejasses. E seria bom.
Faltou-me um levíssimo impulso.
Acaso te apercebeste?
Acalanto sonhos de voo, sim!
Gostava de deslizar pelo ar, suspensa de um balão. Imagino que sobrevoo o oito infinitamente azul da Lagoa das Sete Cidades.
Gostava de saltar de pára-quedas, com uns óculos que me permitissem manter os olhos abertos, como quando mergulhava entre as algas, em Sesimbra.
Ou nadava sobre miríades de peixes, finos e prateados como agulhas, reluzindo sob o meu corpo suspenso, no sol que mergulhava, no mar que me sustinha.
Eu sei que gosto de um homem quando o admiro.
“a ocasião faz o ladrão”... se assim é, que o ladrão seja tão competente que me arrebate!
Agora poiso de novo os lábios sobre o teu rosto, atenta às distâncias.
Deixo cair de novo a ponta do sono sobre as pálpebras que encerram o fulgor dos teus olhos adormecidos.
Cubro-te de bênçãos e, no mesmo silêncio em que cheguei, parto. Ficando sempre contigo.


Maria Petronilho



sábado, maio 14, 2005

Muito alcança quem não cansa!




Bem que Faustino saltitava, alternando as pernas!
Bem se apoiava na pontinha das garras!
Qual quê!
O sol ardia no céu, como se Deus nessa tarde tivesse acordado com vontade de sol frito em frigideira azul cobalto.
O pobre, de pupilas encolhidas num finíssimo losango, desatinava.
O sangue lá dentro fervia.
A cabeça em triângulo rodava... Rodava por dentro, de febre e fadiga e rodava por fora em busca de sombra.
Cada grão de areia era uma agulha em brasa que atravessava a escama e lhe feria a ténue membrana da pata.
Desatou numa correria, sem saber para onde ia... mas ao menos tentava remediar qualquer coisa de tanta que o incomodava.
Seguiu numa carreira, ziguezagueando como louco, pensando:
- Se me virem julgam que é da cerveja... Ah, uma cerveja gelada, borbulhante e loira a escorrer pela goela...!
Não pensem que um réptil tem miolos de galinha... ora essa!
Faustino era um poço de inteligência
- ...Ah, um poço!
Um poço de água rasa, fresquinha, muitos limos à tona; girinos na chocadeira...
Faustino muito corria, mas onde o que sonhava?!
Longe, rubro em meio ao amarelo fulgente do solo, vislumbrou um livro caído ao desleixo, a lombada soerguida, as páginas desalinhadas, como se as palavras coscuvilhassem entre elas.
- Ena! ... Uma sombra!
Faustino deslizou como um raio, de cabeça perdida, sem pensar que podia aninhar-se, ali escondida, uma armadilha... Pensava era na frescura, no alívio que teria, no descanso das pernas musculosas de tanto balanço que nem bailarino em palco!
Ele, um lagarto a bailar num palco!
... Riu-se muito o Faustino, que era pequeno e esguio, curioso e ladino... em todo o buraco metia o focinho!
Por isso já fora ao teatro, à ópera, à escola...
Pensam que um lagarto não pensa?! – Engano vosso!
Entretanto atingiu o refúgio... estendeu-se ao comprido... suspirou de alívio!
Ofegando, deixou que a temperatura se equilibrasse um pouco, depois virou-se e leu alto:
“O senhor presidente decretou que a açude será inaugurado pelas sete da tarde”.
Virando a cabeça para a sua sombra no chão, Faustino consultou o relógio
– ora essa! Seis e meia!
Ao longe, o ruído da banda feriu-lhe a sensibilidade das membranas auditivas.
As rodas dos carros todo o terreno abalaram o chão e Adolfo estremeceu
– Ai que o livro descai! ... Gritou para consigo mesmo.
Cada vez mais perto, o tumulto.
Já distinguia sobre as caixas abertas dos camiões, uns rolos imensos com mangueiras enroladas.
Os carros dos bombeiros, as limusinas com tejadilhos abertos, e humanos gordos, vermelhuscos, embonecados em trajes de brancos linhos.
Adolfo pensou que era hora de erguer as patas dianteiras ao céu:
– Adeus mundo, que tão breve foste e depois de me assares me comeste!
... mas pareceu-lhe fora do tempo verbal a oração.
– Espera lá! Eu posso estar tisnado mas assado... nem por isso!
– E quanto a ser comido... Deus me livre, que arrepio!

Lembrou-se logo da falecida que vira desaparecer esperneando nas mandíbulas de uma cobra safada... Que horror!
Deu um salto, e correu, correu, correu...
– Para onde irei? Aonde haverá um penhasco, uma árvore, aumm... pum!
– Um poste!... ainda discerniu, antes de cair de pantanas.
– Ai! Ui! ... Ai a minha cabecinha, como dói!
Mas o barulho alto lembrou-o da inundação que em breve se desataria daquela embrulhada toda...
– Pernas, para que vos quero?!
Tomou balanço, abraçou o mais que pôde o largo tronco e subiu, subiu, subiu subiu....
Viu as horas, pelo relógio da sombra... Da sombra do poste do chão, ora essa... Não estão pensando que o Faustino ia despencar do poste só para saber o tempo, pois não?!
Soou algo como chuuuuuuaaaaaaaaaaaaaaaaaa
Os tambores rufaram:
– Zabum! Zabum! Zabum!
Os humanos alinhados e de branco subiram ao palco armado na caixa de outro camião... e o falatório enjoativo, monótono, as vénias à direita e à esquerda...
Que nem na torreira suas excelências esqueciam as “boas maneiras”... Faustino fez uma careta.
A água entretanto jorrava...
Lá de cima, Faustino alcançou então a descoberta:
O seu grande deserto, onde se esfalfava e quase se escalfava não passava de uma regueira aberta entre dois campos de soja.
– Ora esta! Bendita a hora em meti o focinho na escola!
... E então, só então, agradeceu lá do alto ao Altíssimo a sorte que tivera!


Maria Petronilho,
14/5/2005

segunda-feira, maio 09, 2005

DEUS



EU TENHO DE DEUS UMA IDEIA: UM CAMINHO PARA A PERFEIÇÃO, PARA A PAZ, PARA O AMOR ENTRE TODAS AS COISAS: ENTRE OS HOMENS E TUDO QUANTO EXISTE: POR ISSO TODO O SOFRIMENTO ME DÓI TANTO...

TODO O SOFRIMENTO ME PERTENCE, PORQUE EU FAÇO PARTE DO TODO E O TODO FAZ PARTE DE MIM: O TODO É DEUS!




Maria Petronilho

... Se a Poesia vem...


Há dias em que uma súbita rosa desabrocha na palma fria da mão.
Olhamos e vemos que íamos distraídos vida fora pensando em coisas fúteis, relegando no inconsciente o que na verdade interessa:
O amor e o sonho.
... E se a poesia vem com tão belo traje ao nosso encontro, torna-se límpido rio em que nos banhamos ... renovamos a alma!
Hoje esse milagre aconteceu.
Envolveu-me em raios de sol num dia de sombra... Fez-me feliz!

Maria Petronilho

quarta-feira, janeiro 19, 2005

A ROSA E O SER


A rosa abriu os olhos aos primeiros raios de sol.
Espreguiçou as pétalas e bebeu gotas de orvalho.
O ser pequenino acordou também e nele a esperança de ver o botão cerrado que cuidava. Correu ao jardim e sorriu de alegria ao ver que o sonho acontecera.
Estendeu as mãos pequeninas e, docemente, aconchegou
no côncavo as pétalas frescas e macias.
- Como é bom que tenhas nascido... murmurou. E ia mergulhar o rosto
na corola, para beijá-la e aspirar-lhe o perfume, quando uma vozinha murmurou:
- Tem cuidado!
O ser pequenino assustou-se, mas depois pensou ser a voz da sua imaginação.
Num ímpeto apaixonado, abraçou a rosa.
- Ai ! - Gritaram um e outro.
Um espinho acerado, perfurara a inocência do seu coração.
As pétalas ainda meio descerradas ficaram machucadas, e foram caindo.
Mas do âmago da rosa uma aura doirada se soltou e a ferida cobriu.
A gota de sangue, nele se envolvendo, na terra se embebeu.
O ser pequenino, elevou-se e pousou no coração da flor o seu coração ferido.
Reflectiram juntos acerca da angústia de amar-se demasiado.
A rosa sentiu o calor de uma lágrima e murmurou:
- Não chores, porque nem me destruíste nem o teu sangue se derramou em vão...
o pólen de soltaste, não se perdeu, fecundou o gineceu que esperava este momento. E o teu sangue derramado alimentará a nova roseira por que vim.
Juntos seremos eternos, pois o amor além da brevidade nos guiou.


Maria Petronilho