terça-feira, novembro 29, 2005

Da flor do Rosmaninho





Ah, que saudades da flor do rosmaninho, que sempre adorei!
Desde pequenina, onde hovesse rosmaninho em flor era como se da terra um íman irrestível me chamasse
... Lembro-me do Alvarinhal, onde o chão estava pejado dele...

E havia um rio.
Mas colocaram uma bomba, destruíram tudo: rio, peixes... para regarem as hortas, embora houvesse um poço, ladeado de roseiras... o Soares tinha as mais lindas rosas, que perfumavam tudo em redor!

No rio, dizem que o avô Petronilho pescava com chumbo... um horror!

E havia "a toca dos coelhos"!

Se a malina matasse todos os coelhos , ali nunca faltavam: Viviam sob rochas enormes, com buracos.
O meu avô, dizem, tinha um furão amestrado.

Devia ser levado da breca!


Gostava era de sair para o campo, pescar, caçar, petiscava ouriços cacheiros... mandava esfolar e grelhar as orelhas dos bichos que se matavam em casa, deixando a carne de lado... gostava de vinho e de se escapulir para Espanha, onde passava mais tempo que em Portugal.


Minha avó não era bonita (nem feia), mas não tinha os traços finos da irmã nem da filha.
Meu avô devia pôr as espanholitas doidas! E vice-versa...

Aprendi a cantar malageñas... também com as pessoas fugidas à Guerra Civil.
A Espanhola atravessou o rio Ponsul com os filhos atados à cintura, o mais pequeno à cabeça... Perdeu-os todos, não sei se salvou o bebé, diziam que sim e que não... nunca lhe vi filho algum.
Trajou para sempre de preto, a sua horta era um lindo primor, ganhava a todas!
Nunca aprendeu uma só palavra de português.

Da fonte do Louredo, desde tempos de antanho, as minhas avós distribuiam água aos vizinhos, que corria límpida e fria em regueiras escavadas no granito.

Foi a Espanhola quem me furou as orelhas.

Baptizaram-me em Monsanto.
Nada herdei, mas ainda tenho o meu magnífico fato de baptismo.

Olha-me vestida com ele, em cima da Burra Velha! Que amazona, hein?!
Tudo deveria parecer cravos e rosas nesse tempo... depois... pobrezinha da minha mãe-menina!


Tenho lembranças tão nítidas, dos lugares, das pessoas, do que se dizia.... eu tudo escutava, encantada... diziam que o avô Petronilho gostava muito de mim.
Tinha tanta pena de que tivesse morrido!

Morreu de cancro no intestino, quando eu tinha um ano.
Diziam que tinha sido operado 7 vezes e que lhe substuituíram uma parte do intestino por um tubo de borracaha... mas de nada adiantou!
Seria verdade, não seria?!

Não era a mim que contavam, que eu "nem existia"... contava-se e eu ouvia.


Gostava de poder encadear estas coisas para escrevê-las, mas são pedacinhos colados, vagos, vagos... ao mesmo tempo alegres e tristes.
Todos precisamos ter uma história de nós mesmos, ter pais, ter avós... eu não tinha!
Então estes ditos preenchiam-me: era como se os tivesse... e imaginava o meu avô, no seu ar marcial, de bigodinho...bonito e bon vivant, incompreendido, deliciando-se a ler poesia, romances, teatro... a herança mais bela que... sei lá como, foi sumindo!
Sumiu tudo, tudo se esvaíu como fumo: a casa de lavoura estava completamente vazia...

Fui lá cumprir o dever de internar minha avó no Lar, onde era muito bem tratada...

Mas meu pai tirou-lhe a chave, colocou todos os seus petences no terreiro e ateou-lhes fogo... a pobrezinha ia a casa... e viu as suas coisas ainda a arder.
Foi ter com os meus compadres, a chorar.


Da minha pobreza, eu enviava vales para pagar os remédios, enviava roupa...

Vivíamos nesse tempo do que vendiam os ciganos, na feira onde hoje está o Fórum: trazia quilos e quilos de fruta ("dois quilos, cento e cinquenta!") ... minha filha nesse tempo era alimentada a leite e maçãs.


Daí, as hérnias discais!
Talvez daí, o horror dela só de pensar em pobreza, agora que se vê rica.


Coisas da vida, demasiadas coisas... !


... Vês a fiada de lembranças que abriste no cofre selado da minha alma?!

Selado! Há coisas em que dói muito pensar.

Maria Petronilho

1 comentário:

Luzia disse...

Ô menina, me deliciei com a tua história,tão parecida com a minha!
Parabéns!