domingo, fevereiro 01, 2004

O 5 de Outubro na casa do Louredo

Era danado, o Zé Joaquim!
Sempre que podia, lá ia marcar passo bailado no terreiro, chapéu preto de aba larga na cabeça, o tronco muito direito, polegares enfiados nas cavas do colete, batendo o pé ora para a direita ora para a esquerda, conforme o ritmo do adufe e o gemer da concertina.

Era sempre com ele que bailava a moçoila mais faceira, de saia rodada, com duas barras de veludo ao fundo; aventalinho de seda, bolsinha presa à cintura, lenço colorido de pontas cruzadas na nuca e atadas no cimo da cabeça.

De faces trigueiras e boca rosada como uma papoila.

O Zé Joaquim tinha fama de as levar a todas, e de as espreitar quando elas levavam à fonte os cântaros areados, em equilíbrio perfeito, sobre a rodilha entretecida de fitas.

De vez em quando era vê-lo nas festas e romarias, de varapau em punho, soltando impropérios, desafiando à briga os demais moços, por dá aquela palha.

Se a minha bisavó viúva, Maria Pires Rodrigues, sabia destas proezas, talvez sorrisse, quando se escondia na sala a fazer as contas aos taleigos de milho; aos moios de trigo, aos almudes de azeite,

enquanto as criadas, na larga cozinha, tratavam do cozido, da miga de batata, fervendo no bojo das panelas de ferro assentes sobre o seu tripé, e do caldeiro com os desperdícios que se mantinha suspenso de um gancho de ferro lá dos confins insondáveis da chaminé enegrecida, onde a vianda para os cevados parecia cozinhar eternamente.

O valente do Zé Joaquim andava de candeias às avessas com o toiro mourisco, que não engraçava com o criado, talvez recordado de alguma aguilhoada que lhe deixasse em tempos cicatriz nas ilhargas.

Uma tarde, ao apanhar o moço distraído, prendendo os arreios das vacas que recolhiam ao cabanal, meteu-lhe a cornadura entre pernas e jogou com ele como uma criança com a pela, atirando-o várias vezes de encontro ao tecto e pisoando-o de seguida.

O homem nem teve tempo de gritar.

Da janela, as minhas avós assistiram pasmadas, e gritaram por ajuda.

O Zé Joaquim esteve à morte durante vários dias, delirando

... e com que delirava ele?

Que a patroa era forreta; que mais guardava do que oferecia; que preferia deixar apodrecer as maçãs de Inverno no sótão a dá-las aos criados que andavam todo o Inverno atrás do arado, guiando as juntas de bois, no arroteio da terra para receber as sementes no fim do Inverno.

Que as salgadeiras estavam cheias mas umas bocas mereciam mais que outras; que as talhas de barro abarrotavam de chouriços e palaios conservados no azeite, mas que a patroa trazia sempre o molho das chaves à cintura e o farnel era de pão com azeitonas, às vezes umas migas de leite, quando pariam as cabras, e sempre de cara fechada, que ninguém lhe vira os dentes.

Do que conversava nas tabernas da vila, à volta do adro da igreja, enquanto aguardava a saída das moças, ninguém sabia.

Mas que até àquele recanto tinha chegado a levedura da revolta contra o poder absoluto, isso era certo.

Ora na madrugada de dia 5 de Outubro, estava-se em 1910, ainda pelo lusco-fusco, soaram os sinos!

Era a melhor das músicas para os ouvidos do Zé Joaquim, mais que açoitados pelos raios e coriscos que a boca que a ti Maria Rodrigues, minha bisavó vetusta e empinada no seu traje de lavradeira, proferia sem descanso.

Ai Zé!

Tomado de tanto entusiasmo, saltou da cama para fora e apareceu aos saltos no terreiro, com a braguilha desabotoada no traseiro, gritando

- Viva a Republica!

- Viva a Republica!

O gáudio era geral.

A ele, talvez não lhe tenha durado muito a satisfação, pois a minha bisavó continuou a comandar casa e criados com punho de ferro, eles morreram e ela sobreviveu para contar a história, muito depois dos noventa... mas a mim, serviu-me!

Tendo ficado pobre por muitas viragens e desvarios da vida, tornei-me de liberal em democrata e em revolucionária, sacudi de mim todos os genes de burguesia que porventura me tenham ficado a infectar o sangue e militei na oposição até à libertação de Abril, ao fim do jugo salazarista, da censura opressora, até hoje

... que é necessária uma nova revolta que derrube os galos emplumados que nos cobrem de fezes do alto dos poleiros em que ingenuamente os colocámos!




A Nau Catrineta



No séc. XVI as viagens por mar eram tão fascinantes quanto arriscadas.
Os navegantes levavam os olhos luzindo de esperança de encontrar novas terras e riquezas, mas a alma pesada de pavor de monstros marinhos, piratas, tempestades, fomes, sedes, doenças, tempo indeterminado entre mar e céu.
Em 1565 saiu de Pernambuco a nau Santo António com destino a Lisboa.
Nela vinha Jorge Albuquerque Coelho, filho do fundador de Pernambuco.
A história desta travessia ficou registada para sempre na “História Trágico-Marítima” e Almeida Garrett acreditava que estaria na origem do romance popular A Nau Catrineta.
Pouco depois de zarparem de Pernambuco, o gajeiro da Santo António avistou na linha do horizonte uma vela que se aproximava velozmente.
Não demorou muito que se verificasse ser um navio corsário francês, dos muitos que se acoitavam nas enseadas para saquearem os barcos portugueses e espanhóis, que traziam riquezas usurpadas das riquíssimas e novas terras descobertas na América do Sul.
Os ocupantes da nau Santo António desfraldaram todas as velas para tentarem escapar aos piratas... mas em vão, já que os porões iam pesados de riquezas brasileiras com destino à corte de Lisboa.
Em breve foram alcançados, manietados uns e mortos e feridos outros.
O saque mudou de mãos e a nau ficou abandonada ao seu destino, tendo os piratas aproveitado para se suprir de alimentos e instrumentos de navegação.
À deriva e sem governo, a nau pairou dias e dias no mar alto.
O sol abrasava, mil vezes reflectido no espelho de ouro azul do mar.
A sede, a fome e o escorbuto mataram rapidamente os mais feridos e fracos.
Os sobreviventes não encontravam ventura no estarem vivos.
De olhos encovados e mortiços, faces encovadas, lábios ressequidos, jaziam no convés meio mortos de desespero.
Subitamente um gemido se ouviu e um olhar se iluminou: O segundo marinheiro arrasta-se como pode até pode até perto do moribundo, garras em riste e cérebro transtornado, arranhando o desgraçado, que contudo ainda arranjou forças para uivar pela sobrevivência, ante a ameaça de ser devorado.
Outros marinheiros se aproximaram, uns para evitarem a carnificina outros, loucos de fome, para dela participarem.
No meio da gritaria insana, uma voz calma se ergue: Era Jorge de Albuquerque Coelho, que exortava à consciência e ao respeito, lembrando serem todos irmãos em desgraça.
A nau continuou à deriva, até que um dia se viu terra ao longe: era a costa portuguesa, aonde em breve chegaram, foram acolhidos e tratados todos os sobreviventes daquela desgraça.
Diz-se que muitos anos depois, já velhinho, Jorge Albuquerque Coelho costumava sentar-se em frente ao mar, rodeado de amigos, contando assim a sua história:

LÁ VEM A NAU CATRINETA
QUE TEM MUITO QUE CONTAR
OUVIDE, AGORA, SENHORES,
UMA HISTÓRIA DE PASMAR...

PASSAVAM MAIS DE ANO E DIA
POR SOBRE AS ÁGUAS DO MAR...
JÁ NÃO TINHAM QUE COMER...
JÁ NÃO TINHAM QUE MANJAR...

DEITARAM SOLA DE MOLHO
NÃO NA PUDERAM TRAGAR
DEITARAM SORTES À AVENTURA
QUEM SE HAVIA DE MATAR
LOGO A SORTE FOI CAIR
NO CAPITÃO-GENERAL.

- ACIMA, ACIMA, GAJEIRO
ACIMA AO TOPO REAL
VÊ SE VÊS TERRAS DE ESPANHA
AREIAS DE PORTUGAL.

- NÃO VEJO TERRAS DE ESPANHA
NEM AREIAS DE PORTUGAL
VEJO SETE ESPADAS NUAS
QUE ESTÃO PARA TE MATAR!

- ACIMA, ACIMA GAJEIRO
ACIMA AO TOPO REAL
VÊ SE ENXERGAS ESPANHA
AREIAS DE PORTUGAL.


- ALVÍSSARAS CAPITÃO,
MEU CAPITÃO-GENERAL
JÁ VEJO TERRAS DE ESPANHA
AREIAS DE PORTUGAL.

MAIS ENXERGO TRÊS MENINAS
DEBAIXO DUM LARANJAL...
UMA, SENTADA A COSER,
OUTRA, NA ROCA A FIAR...
A MAIS FORMOSA DE TODAS
ESTÁ NO MEIO A CHORAR.

- TODAS TRÊS SÃO MINHAS FILHAS
OH, QUEM MAS DERA ABRAÇAR...
A MAIS FORMOSA DE TODAS
CONTIGO A HEI-DE CASAR....

- NÃO QUERO A VOSSA FILHA
QUE VOS CUSTOU A CRIAR...

- DOU-TE O MEU CAVALO BRANCO
QUE NÃO HÁ OUTRO IGUAL....

- NÃO QUERO O VOSSO CAVALO
QUE VOS CUSTOU A ENSINAR...

- DAR-TE-EI TANTO DINHEIRO
QUE NEM O POSSAS CONTAR...

- GUARDAI O VOSSO DINHEIRO
QUE VOS CUSTOU A GANHAR...

- DAR-TE-EI A NAU CATRINETA
PARA NELA NAVEGAR....

- NÃO QUERO A NAU CATRINETA
QUE A NÃO SEI GOVERNAR.

- QUE QUERES, Ó MEU GAJEIRO,
QUE ALVÍSSARAS TE HEI-DE DAR?

- CAPITÃO, QUERO A TUA ALMA
PARA COMIGO A LEVAR...

RENEGO DE TI, DEMÓNIO,
QUE ME ESTAVAS A TENTAR...

A MINHA ALMA É DE DEUS,
O CORPO DOU-O EU AO MAR...

TOMOU-O UM ANJO NOS BRAÇOS
NÃO O DEIXOU AFOGAR...
DEU UM ESTOURO O DEMÓNIO
ACALMARAM VENTO E MAR...


E À NOITE A NAU CATRINETA
ESTAVA EM TERRA A VARAR.



Louredo




Naquele tempo não havia em Monsanto qualquer estrada, a não ser as deixadas pelos romanos, de lajes negras e lisinhas de tão gastas, que permaneciam pregadas no chão desde há centos e centos de anos.
O Louredo era uma casa isolada no sopé do “monte-Santo” .
Ao redor, apenas as dependências devidas a uma casa de lavoura: palheiros, cabanal, casa do forno, e bancadas de cantaria monolíticas, imensas, ao livre.
Terreiro, sobreiras esparsas e vários muros de pedra solta.
A casa de grossas paredes negras, tinha dois pisos e balcão alto, sem amparo.
No andar térreo, as lojas, onde se guardavam os potes de barro com os mantimentos: azeite, azeitona, enchidos, salgadeiras, tábuas de queijos, arcas com os cereais de moinho. Os frutos secos ao sol sobre esteiras no Outono.
No piso superior, a cozinha de chaminé, o largo lar, fumeiro estendido por cima durante o Inverno, a sala e os pequenos quartos de tradição, com cortinas.
A rodear o rectângulo da porta e das janelas, uma tarja de tinta azul, da mesma cor da porta de trinco, que nunca se fechava à chave.
Dos lados da janela maior, incrustados na parede, dois aros de ferro ostentavam craveiros de viçosos cravos rubros, pendentes, odoríferos.
Entre o lado norte e o palheiro, de duas divisões, a primeira para guardar o feno, a segunda os animais: burras, cabras e galinhas, um bosque inusitado e inacessível de esplendorosas mimosas sensitivas, como que a desafiar-nos, pois a porta que dava acesso a esse jardim dourado, estava apenas disponível no fim da primavera, quando as reservas de feno chegavam ao termo e se armazenava nova colheita.
Um pouco adiante, as furdas dos preciosos suínos, esterqueira para fermentação do estrume, e duas cancelas: a de ferro, para o caminho que dava acesso à fonte e por onde passavam os animais e os carros de bois e outra de madeira, mais estreita, mesmo ao pé da porta, por onde se ia para a horta, o tanque, o poço da nora.
Muitas árvores de variadas espécies.
Flores plantadas a esmo, crescendo de forma quase miraculosa.
A leira dos morangos, com a cameleira ao centro.
E, à direita, algo que maravilhava: era uma árvore de sombra, folha muito recortada, que na primavera dava resplandecentes cachos de flores brancas, as quais eram apanhadas, laboriosamente separadas as pétalas, e fritas em pastéis dos mais deliciosos que imaginar-se possa!
Depois da horta, a vinha.
As árvores eram escolhidas de forma a produzir fruta todo o ano: havia figos de Inverno, cor de romã por dentro e maçãs crespas, enormes, que supostamente deveriam ser consumidas no Inverno, mas eram sempre intragáveis.
A romãzeira, de enormes flores escarlates, era a minha paixão.
E as pétalas das flores dos marmeleiros, uma delícia ... degustavam-se às escondidas.
Com os diospiros, havia que ter cautela!
Ou deixavam a língua carraspana ou a gente se lambuzava irremediavelmente de doçura amarela, que acabaria por nos valer uma sova!
Tinha um grande desgosto a minha avó: por causa das geadas e nevões, queimavam-se-lhe todas as amendoeiras que, persistentemente, plantava.
Ora reza a lenda que tais árvores foram trazidas por um mouro do sul enamorado por uma donzela nórdica que definhava saudosa da alvura a que estava habituada na sua terra....

Costumes de Natal :
O Madeiro e a Missa do Galo



Era no adro da igreja que o Natal se festejava.
Muito tempo antes se sorteara entre os lavradores, a honra de oferecer a árvore para a festa.
Pelo vigésimo quarto dia de Dezembro, juntavam-se os homens da aldeia. Iam em romaria, de pé sobre uma carroça que, mesmo indo leve, gemia vereda fora.
No bornal, pão e chouriço, um naco de presunto, um punhado de azeitonas.
E o garrafão de tinto, empalhado, preso aos varais pela asa.
Os machados afiados jaziam a um canto.
Contavam-se pilhérias. Alinhavam-se umas quadras. Soltavam-se umas cantigas.
Soavam risos e palmas.
No campo, erguia-se altiva a árvore premiada, que seria abatida no seu fulgor e pujança.
Os homens saltavam alegres do tabuado, rosetas nas faces, machados em riste.
Erguiam-nos bem alto acima da cabeça, nas mãos calosas, e desferiam o primeiro golpe:
- hemp!
Faziam fila, o segundo golpe soava:
- Hemp!
E assim se consumava o sacrifício, por longo tempo, soando em meio ao silêncio
- Hemp!
- Hemp!

Até que chegava a hora do golpe de misericórdia.
Faziam grande algazarra, berravam-se cautelas, davam-se passadas largas, retrocedendo às fosquinhas... como se esta fosse a primeira árvore derrubada nas suas vidas!
Uma vez caída, as enchós nas mãos experientes, podavam os verdes ramos.
Iam-se buscar cordas, que se atavam aos extremos e se puxavam aos ombros.
- Eia..!. Eia...! num ritmo cadenciado pelo esforço.
Içava-se o tronco parra o carro e passava-se à merenda.
Redobrava a alegria, atiçada pela boa pinga.
Enfim, rumava-se à vila.
A carroça, de pesada, mais gemia, lentamente, às passadas retesas das bestas.
Chegavam em frente da igreja, onde o padre os esperava, de aspersório e caldeirinha.
Tiravam com grande pompa o madeiro e depunham-no no adro.
O padre chegava-se perto, andava em volta examinando-o, ora abanando a cabeça ora franzindo o sobrolho.
Por fim conformado, mas nunca satisfeito, aspergia de um lado ao outro.
Borrifava-o ao de leve com água benta, murmurando sabe-se lá que mistérios.
E recolhia-se ao agasalho da ceia.
Juntava-se alguma lenha e ateava-se o fogo ao lenho.
A noite vinha descendo, a seiva ia crepitando, se derramando, cedendo.
Na torre, tocava o sino:
- Dling dlong dling dlong... dling!
De todas as direcções vinha o povo convergindo.
Elas de xaile de marino com franjas, lenço de arabescos atado debaixo do queixo; eles de capote ou samarra, gola de pele de raposa, cajado na mão direita.
Passada a passada, iam tomando lugar em volta do fogo, que resplandecia e soltava estrelas de ouro no negrume da noite fria.
Elas entravam na igreja.
Eles juntavam-se mais: tirava de sobre o ombro a garrafa de água-ardente, atada por um baraço à asa tosca de um copo.
Passavam-na de mão em mão, para aquecer a garganta, que protestava tossindo:
- Está mesmo boa!
- Mesmo boa, a bagaceira! Replicava outro, sério.
De dentro do templo, soava uma cantilena, uma voz se erguia, outras se lhe juntavam em coro:
“Da vara nasceu a vara
Da vara nasceu a flor
E da flor nasceu Maria
De Maria o redentor”
Subia o bafo no ar.
As crianças, agarradas à barra da saia das mães, esfregavam os olhos de sono.
O padre movia-se com lentidão, de paramentos brancos, bordados a ouro.
O sacristão e os meninos de coro, faziam gestos servis: ora lhe depunham nas mãos gorduchas e inertes o cálice; ora lho retiravam; mudavam a folha do livro; chegavam-lhe o incensório fumegante, que ele agitava com uma lentidão hipnótica, acima abaixo, esquerda direita... e os olhos dos fiéis seguiam-no, vidrados.
Murmurava algo que se não ouvia... e mesmo que ouvisse, quem destrinçaria palavra daquele fraseado monótono?!
Nas filas, as pessoas faziam gestos automáticos a um tempo, como se manejadas pelos fios invisíveis de marionetas:
Ora se erguiam, ora se ajoelhavam, ora se sentavam esperando...iam murmurando algo inteligível, de olhos postos no vago.
Excepto se encontravam outro olhar e se aproveitava o ensejo para um breve mexerico:
- Então a vizinha já sabe o que dizem daquela? Dizem que ela e o António é um Deus nos acuda!
- Ai coitado do marido, que é corno e ainda não sabe!
Subentendiam-se olhares contristados, misturados de sorrisos à socapa.
Uma cotovelada certeira, fazia-las retomar o lugar em cena e a deixa na ladainha.
Respondiam automaticamente o que não sabiam, ao que nem escutavam.
Era a tradição que as movia, como um mágico coreografo.
No fim, lá iam em fila deitar a ponta da língua de fora, com ar contrito, em fileira cerrada.
O padre, retirava do fundo mágico de um cálice de ouro, uma hóstia precariamente segura entre o polegar e o indicador e depunha-a complacentemente, de boca em boca, com ar de asco.
Se uma moçoila se apresentava, rosada, na sua frente, os olhinhos chispavam-lhe concupiscentes, como quem diz:
- Toma lá, mas não foi para tomar a sagrada hóstia que Deus te deus te fez uma boca tão redondinha... ai se te apanho a jeito!
De língua recolhida no céu-da-boca, não fossem os dentes macular inadvertidamente a sagrada ceia, a boca seca recusando-se a engoli-la como a uma pastilha, elas retiravam-se, de cabeça baixa, dando a Deus o sacrifício do acto por mor dos seus pecados.
Mais uma bênção, mais uma vénia e ala... para a saída, às arrecuas quase até chegar à porta.
Cá fora, risadas altas, em volta das altas chamas!
Rubras as faces e as brasas, que iam consumindo o tronco, numa incandescência rubra, varando-o de lado a lado.
Os homens olhavam as mulheres, contrariadas.
Elas aguardavam-nos, em silêncio, a alguns passos.
Acabara-se a festa... Missa do Galo e Madeiro, só para o próximo ano!
Cada um se aproximava da sua consorte, sem uma palavra, um gesto.
O hábito acertava-lhes os passos, que soavam caminho abaixo, rumo ao casebre de pedra nua e telha vã, à enxerga de palha sobre os ferros pintados da cama, onde se consumaria o acto que seria Natal no fim do verão.

Faz noite negra, mas Eu, canto!


Faz noite negra, mas eu canto: A canção dos jovens, a canção dos pobres, a canção da esperança da gente do meu país.
Faz noite negra.
A lua brilha tão pequena!
Pequenas são as estrelas ao seu redor... mas se toda essa luz se juntasse - que fulgor!
E luz é vida.
E para viver é preciso despertar.
A ao despertar esvai-se a noite.
Foi comido por si mesmo o negro pesadelo, o susto desanuviou-se.
Sumiu-se em nada à luz do dia.
Dia em que a luz brilhe a todos os olhos e em todos os sorrisos.
Dia de suspiros de alívio...
Esse o tal dia que espero.
Venha breve e venha prenhe de paz e de amor, como se sol a pino.
Fujam daqui as manchas bolorentas do destino negro. Bolor nas horas de todos os dias; na angústia.
Começa-se e segue-se sofrendo sem que uma réstia de alvorada, de ternura ao menos luza ao fim da jornada desigual da nossa vida.
Uns têm tudo; outros "têm" nada;
uns na soberba; outros na penúria;
uns os algozes; outros os servos;
uns arrotando e tantos outros mais de barriga vazia.
Acabem-se os lagos de pranto em que afogamos o silêncio da vida.
Acabe-se o cada-qual-consigo – nunca nada se conseguindo
... Enquanto se não entenda
que é NOSSA a mesmo causa, como é nossa a mesma injustiça

e que há que se lutar de mãos-dadas!



O Homem, a Mulher e a sabedoria de Ser



... E após ter secado, endurecido, o barro com que fizera Adão, Deus olhou,
olhou, e pensou para consigo:

- Geová (deve ser apelido), Tu és capaz de fazer melhor!

Aí, pegou noutro pedaço de barro e moldou, maravilhosa, a Mulher.

Ficou contente Deus e mais contente Adão, quando a viu... chamaram-lhe
Lillith.

Mas aí, quando lhe mandaram A Lei da Submissão... disse Lillith que não!

Quiz igualdade em tudo: - nada de ficar por baixo!

Deus, irritado, expulsou-a do Paraíso. E Adão guardou-a no coração saudoso,
que nem... o céu alto e azul em que uma linda nuvem desaparecera.

Chorava Adão sem parança, inquieta sua alma, ardente sua solidão
celibatária.

Deus condoeu-se e, estando Seu filho adormecido, retirou-lhe uma costela,
das de menor importância e fez de carne e osso a Mulher Eva.

Mandaram-lhe A Lei da Submissão.

Astuta, nem disse que sim nem que não... mas quedava-se sonhadora,
passeando, recolhendo em si quanto via mas mais queria, ansiava por mais...
Sabedoria.

A Serpente observava dos ramos daquela - A - árvore... e um dia, em que Eva
meio adormecida, deitada nua junto do tronco sonhava, murmurou-lhe:

- Eva! Prova desta fruta!
- Não me é permitida, retorquiu Eva, assombrada!
- Prova, deixa de ser parva! É a fruta mais desejada, o Dom da Sabedoria....

Eva fechou os olhos e comeu-a, deliciada. Tão sumarenta e doce a achava que
correu, correu... e deu parte da sua parte a Adão!

Ele, vendo-a tão bela e ansiosa, nem se lembrou de mais nada... engoliu... e
já se arrependeu!

Ficou-lhe A Sabedoria entalada na... garganta!!!

... e a Mulher, embora castigada, pegou-lhe na mão, acompanhou-o tanto tempo
quanto o que a Humanidade tem, luta que luta, em toda a hora, na tristeza e
na alegria.





Boca do Inferno


Erguia-se no bordo da escarpa, rente ao mar, um enorme castelo, solitário, altivo e sombrio.
Nele, habitava, solitário, um bruxo.
Um dia porém, achou ser tempo de temperar com mais do que sal a sua vida.
Consultou a sua lâmina de cristal de rocha e ordenou-lhe que lhe mostrasse a mais bela donzela do reino, assim como o lugar onde pudesse encontrá-la.
Reuniu o séquito e cavalgou a dias a fio.
Levava riquezas nunca antes vistas, com que a seus pais a comprou.
Deslumbrado pela sua beleza, mandou que se velasse num véu preto e assim a levou de volta, a caminho da desventura.
Enquanto bem desfrutava da sua mal empregada formosura, mandou erguer alta torre, de uma só porta, escadaria estreita a toda a volta, e reservou-lhe aposentos no extremo da inusitada cornucópia.
Mandou vir de longe um criado que jamais a vira e, sob ameaça de morte certa caso a utilizasse, confiou-lhe uma das chaves, que guardava dependuradas de uma corrente à cintura.
Guardou a mulher como se guardam as coisas que se amam e detestam ao mesmo tempo, pois tanto o deslumbrava quanto temor lhe infundia.
Frente ao mar, o tempo passava, cronometrados os dias pelas marés, as semanas pela sucessão dos dias e das noites, os meses pelas luas.
Tão só se sentia o guardião como a cativa do seu senhor.
O horizonte de ambos era o mar, eternamente sempre outro e o mesmo.
A música que a ambos chegava era a dos pensamentos, a do marulhar revolto ou terno das ondas, o sibilo do vento por entre as rochas.
Assim passava o tempo e não passava, porque o tempo para ser tempo tem por referência a vida, de que ali só se sentia a ausência.
Mas um dia o ócio provocou no carcereiro uma curiosidade inadiável.
Deu por si a pensar obsessivamente que mulher seria aquela que merecia tão triste sorte.
Pouco depois, descerrou a fechadura, com a chave confiada mas jamais tirada da cinta.
A porta rangeu de ferrugem, ele apoiou sobre os gonzos todo o seu peso e, aos poucos, sentiu-a cedendo.
Enquanto ia subindo a escada de caracol que levava a câmara da cativa, mil pensamentos se lhe entrecruzavam no cérebro:
O que iria encontrar?
Seria bonita ou horrorosa?
Aleijada?
Muda ou doente?
E se estivesse morta?
Calou todas as vozes de inquietação que o assediavam e subiu, subiu, subiu sem pensar em mais nada.
Frente à porta da câmara, parou para se acalmar e tomar coragem.
Quando conseguiu dominar a tremura das pernas e das mãos, empurrou a porta.
O sol, que entrava por uma das ogivas da torre, bateu-lhe nos olhos e cegou-o por momentos.
Pouco a pouco retomou a visão, deparando-se com a silhueta de uma jovem dama, meia voltada, silenciosa, que em nenhuma das suas conjecturas, lograra imaginar.
Ela olhava-o, interrogativa, mas como ele de repente sentisse esquecidas todas as palavras, acabou ela por perguntar:
- Quem és tu, cavaleiro e porque vens perturbar a minha solidão?
E o homem, quando achou de novo a voz, respondeu finalmente:
- Sou o vosso guardião, senhora!
- O meu guardião? Guardião de quê? Desta solidão sem nome e sem razão?
Vê como se consomem os meus dias, sem prazer, sem ilusão!
... Ao menos tu!
- Eu, senhora? Eu estou ali em baixo tão só como vós, e a guardar... a guardar o quê? Para quê?!
Talvez que a partir de hoje possamos partilhar, senão redimir, as nossas horas perdidas neste ermo.
Ordenai, senhora, farei o que quiserdes.
Levar-vos-ei aonde desejardes!
Mas a nenhum lugar quisera ir a senhora, sedenta de presença humana, e ficaram a conversar por horas esquecidas...
Da cumplicidade e da troca de seus segredos e solidões, uma louca paixão nasceu.
O tempo que era tão lento cristalizou-se naquele instante.
E o instante fizeram eterno, esquecendo o lugar e o perigo, tão só um ao outro se entregando, em delícias se esquecendo, nada mais que um ao outro querendo.
O exterior esvaíra-se, pois não o sentiam nem mais lembravam.
Mas numa noite acordaram apavorados num mesmo pesadelo, em quem uma onda imensa de repente os engolia.
Aflitos, desceram as escadarias correndo.
Montaram o cavalo branco que por ali deambulava peado e acudiu de pronto à voz do dono.
Partiram a toda a brida sobre os rochedos fronteiros ao mar.
No paço, o feiticeiro olhou a sua lâmina de cristal e, louco de fúria e de ciúme, chamou a si todos os dons mágicos que possuía, ordenou que num repente se abrisse a terra e transformou a noite num cataclismo medonho, rochas deslizaram sobre rochas e um abismo sem fundo abriu-se: cavalo e cavaleiros despenharam-se e foram engolidos para sempre.
Assim que os dois amantes desapareceram no redemoinhar infernal, acalmou a tempestade e o mar voltou a ficar manso como se nada houvera acontecido.
O buraco nos rochedos, porém, nunca mais se fechou, como se essa ferida da natureza quisesse perpetuar a história.
Mas muitas vezes volta o vento e a fúria do mar retorna, tal como na noite em que a cativa e o guardião da torre desapareceram.


Viagem de Mariana ao centro da vida




Foi num dia de acaso cinza que Mariana descobriu a porta.
Era redonda e estava tão dissimulada na estrutura rugosa que, não fora ter sonhado que ali estava, por sete noites seguidas, jamais daria com ela.
Procurara, procurara... e lá estava:
Quase invisível, a frincha.
Carregara com um dedo na abertura e o círculo, saltando, envolveu-a
Deu-se conta de estava sobre seda, raiada, húmida, intensa.
À sua frente, um vasto horizonte, que era feito de protuberâncias, um labirinto entre elas, onde baloiçavam plumas, leves, macias, pequenas.
Ante seus olhos faiscavam minúsculas partículas, brilhantes como centelhas, bolinhas eriçadas que divagam incertas.
Mariana olhou ao alto e deslumbrou-se perante a abobada lisa, feita de azuis transparências.
Até onde chegaria?
Esse era o mistério que intentava desvendar Mariana, no caminho dos seus sete sonhos seguidos, que nunca se concluíam em respostas.
Estendeu os braços, as palmas das mãos viradas para cima.
As bolinhas, envoltas em sedosos pelos, vieram suavemente cobri-las.
A pouco a pouco,sentiu-se coberta, revestida, como se a escondessem, a acolhessem, a quisessem.
Sorriu, estendeu a língua e sentiu doçura.
Olhou aos pés:
Os sapatinhos brancos desapareciam sob o tapete fofo, as pernas meio submersas naquelas partículas, que ora assentavam, ora levitavam em suaves mas não pressentidas brisas.
Tudo era silêncio.
Deu um passou e
não sentiu nem o seu peso nem o das fofos grumos de amarelo intenso que quase a submergiam.
De repente, algo tremeu.
Mariana arrepiou-se, não se susto ou de arrependimento, mas de uma saudade inaudita.
Sentia-se escorregar de modo quase imperceptível.
As pequeninas ogivas iam estalando uma a uma, abrindo-se como se pétalas, e de dentro de cada um talo lácteo e vigoroso brotava e crescia, tenso e determinado.
Quis tocar-lhes, mas a distancia ente o labirinto eriçado e os pequenos braços ia-se tornando pouco a pouco maior; era impossível palpá-los, saber ao tacto de que matérias seriam feitos.
As pluminhas amarelas iam encolhendo, dobrando-se em espirais de fios secos, como pequeninos tentáculos inertes.
A luz suavizou-se.
Olhando o alto de novo, Mariana notou que a abóbada passara de transparente a translúcida e que um brilho de nácar se notava além dela.
De repente, sentiu-se em desequilíbrio e o circulo redondo onde penetrara, expulsou-a de repente, deixando-a estupefacta diante da parede lavrada, de novo uniforme, sem marca.

Por muito tempo lhe ficou na memória das papilas aquele sabor de doçura.
E os sapatinhos brancos ficaram para sempre salpicados de minúsculas estrelas.


Depois os sonhos voltaram, de vez em quando, intercalados.
Neles, Mariana sobrevoava a cúpula, que crescia, se ampliava.
Estendidas, as palmas das mãos abertas resplandeciam, lançando longe, a perder de vista, raios de luzes coloridas, vibrantes, intensas.

Dentro de si, as perguntas respondiam-se a si mesmas e um sorriso de indecifrável serenidade fazia com que diante dela todos se sentissem aliviados de quaisquer mágoas.



A PRINCESA ENCANTADA NA FONTE






No seu palácio forrado de azulejos coloridos, o velho vizir escutava o tropel dos cascos, o tinir surdo das espadas batendo nas ilhargas das armaduras, o grito incompreensível dos cavaleiros, saído das frestas abertas no ferro dos elmos.
Uma lágrima muito lenta rolou-lhe dos olhos, fechou cuidadosamente o livro carmim com bordados de ouro e levantou-se como se carregasse um peso de mais de mil anos.
Chamou os criados e ordenou-lhes que estancassem os repuxos que brotavam das fontes nos pátios lajeados e reunissem apenas os mantimentos necessários para uma viagem de três dias.
Do harém, mandou chamar as três filhas e encerrou-se com elas num aposento, exigindo que por nada os interrompessem.
Usando dos seus conhecimentos de alquimia e álgebra, procedeu à sua transubstanciação. Quem passava junto à porta, escutava uma ininterrupta e monótona litania.
Por três vezes o sol, fogoso e rubro, se derramou apaixonadamente no regaço da terra e se levantou renovado.
Na terceira aurora enfim, a porta abriu-se e o vizir saiu sozinho, transportando nas mãos uma pequena arca ricamente lavrada de misteriosos arabescos.
Chamou o mais fiel dos servos e disse-lhe:
- Em breve estes muros serão derrubados. Os jardins devastados. Estão cada vez mais perto os futuros senhores dos meus domínios, cobiçosos cavaleiros em demanda das minhas riquezas.
Que tudo levem e bem lhes aproveite. Nesta arca que te confio estão três pães, os únicos bens verdadeiramente preciosos que possuo: minhas filhas, encantadas, pois não terei tempo de as levar comigo na zarpa que além me espera.
Na côdea de cada um deles, gravei os seus nomes: Zoraida, Lídia e Suleima: deixo-as à tua guarda.
Aproximar-te-ás, sem que ninguém te veja, da fonte de Al-Fahgar. Retira os pães, que guardarás no teu alforge, e atirara à água a arca, em sinal de aliança.
Depois dirige-te para tua casa, fora das muralhas e mistura-te com a população, nada dizendo do nosso segredo, aconteça o que acontecer.
Terás notícias minhas em todas as noites de luar, através do espelho de água da fonte. Dir-te-ei assim qual a hora certa para que, atirando lá dentro os pães, tires as três princesas do encanto.
O servo jurou que tal seria feito e partiu.
Chegado a casa com os pães, guardou-os entre cobertas, nada contando a sua esposa.
Passaram-se os dias e o que era esperado, aconteceu: a horda de cavaleiros, de espadas desembainhadas, entrou aos gritos pelas portas das muralhas, calando e derrubando à sua passagem quantos se lhe opusessem.
Calcando quanto o seu furor encontrasse, invadiram o palácio, que foi revirado e pilhado de alto a baixo.
Depois ordenaram que lhes fosse preparado nas cozinhas um lauto banquete, com que se refizessem.
E por fim dirigiram-se ao harém, onde as mulheres se haviam refugiado em pânico.
Em vão protestaram! Foram-lhes arrancados os véus e tratadas como ânforas que para acolherem os prazeres dos novos amos tivessem sido feitas.
Fora das muralhas, todas as noites de lua, o fiel detentor das princesas salvas de tais desonras, ia espreitar à fonte Al-Fahgar as ordens esperadas.
Entreluzia no cimo das águas um rosto austero, de semblante triste, que lhe dizia dentro do seu peito não ter chegado ainda a hora do resgate.
Lembrando as lindas princesinhas que vira crescer, o homem ia pegar os pães escondidos e, acariciando-os, dizia-lhes palavras de conforto.
Tal levantou muitas suspeitas a sua esposa que, numa das suas ausências, foi em busca do que traria tão preocupado o seu marido, submisso aos invasores, sem uma palavra proferir, ao contrário dos outros aldeões.
Afastadas as cobertas, a mulher estupefacta descobriu tão só três pães frescos!
Como estava grávida, à curiosidade juntou-se o apetite e, pegando numa faca, resolveu deliciar-se com um deles.
Mas mal o espetou, saiu dele um fio de sangue!
A mulher, afogando um grito, devolveu os três pães ao seu esconderijo e correu a enfiar-se, tremendo, no leito.
Quando o marido chegou, não ousou dizer-lhe os borbotões de perguntas que exigiam respostas e fingiu-se adormecida.
Com o passar do tempo, o que era novidade passou a ser costume.
Alguns dos cavaleiros retomaram as suas montadas e partiram em busca de novas conquistas.
Outros, gostando do que encontraram e da beleza morena das habitantes daquelas terras, com elas se entenderam e por ali ficaram.
Os afazeres foram retomados.
No palácio, outro senhor tomou posse do trono e exigiu vassalagem de quantos o rodeavam.
Retomaram-se as ceifas e a cobrança de impostos.
Era a noite do solstício de verão e, no espelho de água da fonte de Al-Fahgar, o servo viu nitidamente o rosto sorridente do vizir e sentiu bem alto dentro do peito a sua voz dizendo:
- É hora! Atira os três pães à fonte e desencantarás as minhas filhas.
Correu a casa, buscou os pães escondidos e procedeu conforme o combinado.
Atirado o primeiro pão, ergueu-se lentamente da água uma bolha imensa, de verde-esmeralda. Nela, uma jovem bela lhe acenava, e se foi elevando no céu, luzindo magnífica na direcção do mar, do sul, até que desapareceu.
Atirou o segundo pão e uma outra bolha prodigiosa, dourada, se ergueu. Dentro, outra jovem sorrindo subiu lentamente no espaço, tomando o mesmo rumo que a irmã.
Atirou o terceiro pão, feliz pelo êxito da sua tarefa... porém as águas borbulharam por muito tempo e por fim um grito lancinante se ouviu.
O homem, que já se sentia desafogado da sua difícil tarefa, estremeceu de pavor e angústia, perguntando que acontecera.
Uma débil voz surgiu do fundo:
- Tua mulher, na sua inocência, espetou-me uma faca, julgando-me apenas um pão e cortou-me uma perna. Assim, não mais posso sair da fonte, pois o sangue é mais pesado que o ar e a água.
Mas em paga do teu fiel desempenho do compromisso, toma o meu cinto nupcial, que a mim de nada servirá. Chegado a casa, coloca-o na cintura da tua esposa e o vosso filho nascerá rico de venturas.
À superfície da água surgiu um cinto belíssimo, resplandecente de pedrarias que, faiscando ao luar, parecia uma miríade de estrelas que tivesse descido do céu.
- Agora vai! O teu dever está cumprido, e o meu Fado ainda mal começou!
Ficarei aqui por toda a eternidade.
Quando alguém passa perto da fonte de Al-Fahgar, escuta um inconsolável pranto.
Alguns dizem vislumbrar, nas noites aluaradas, um busto de mulher tentando erguer-se nas águas e os seus longos cabelos esparsos rebrilhando à superfície, como se reflectissem a luz das estrelas.

De Amor e Drama



Com um suspiro cansado, Isabel limpou o último prato, arrumou-o no armário,dobrou o pano da loiça.
O João vinha do quarto, onde deitara os meninos nas suas camas.
A chuva caía desde que raiara a aurora.
Infiltrava-se, pouco a pouco, nas brechas das paredes, tantas vezes recobertasde gesso e disfarçadas com a tinta, preciosamente guardada.
O vento zunia, abanava a casa, parecia que queria levar as telhas em revoada.
O frio infiltrava-se por baixo da porta.
João assomou-se à janela: lá fora, um rio escuro corria pela rua, arrastandolixo, que flutuava.
Puxou a cortina, sentou-se na beira da cama, apoiando a cabeça na concha dasmãos ambas.
Isabel foi ter com ele.
Passou-lhe o braço pelos ombros, puxou-o de encontro ao seio, afagando-lhe opescoço.
Ele pousou a cabeça no seu ombro.
Ficaram assim abraçados, por tempos infinitos, em silêncio.
Partilhavam a aflição do momento.
- Aconchegaste a roupa aos meninos? – Perguntou ela, baixinho.
- Sim. Coitadinhos, estão ambos muito assustados. O Chico pediu que dormissemjuntos, mas expliquei-lhe que o Zé é pequenino... prometi que para o ano...

Enquanto isso, uma língua de água infiltrou-se sob a porta.
Isabel levantou-se e acorreu a limpá-la, de balde e de esfregona.
Intentava absorvê-la, impedi-la que entrasse em casa.
Mas de nada servia!
Os chinelos encharcados tornavam-lhe os movimentos penosos, doíam-lhe as costase os braços, mas a água subia.
António não a impediu, nem lhe disse coisa alguma.
Não ousava afogar o seu instinto de mulher, dona de casa. Não ousavaadmoestá-la do desespero da hora.
A água chegava-lhe já aos tornozelos. Num ápice tornava num lago a sala,manchava a parede limpa, empapava o fino tapete.
Em breve não mais se viam os pés da mesa e as cadeiras flutuavam, como se ummágico perverso as desarrumasse por gosto.
António levantou-se de num salto, dando-se conta da dimensão do desastre.
Correu ao quarto, tocou ao de leve no filho mais velho:
- Acorda, Chico, não tenhas medo.
O menino olhou-o surpreso. Mas vendo diante de si a face doce do pai, numinstante readormeceu.
- Veste-te, filho, depressa! Temos de sair de casa.
Chico reabriu os olhos, pensando ser madrugada.
Puxou pela camisola e começou a enfiá-la, sonolento, sobre a outra, do pijama.
No berço, o bebé dormia, sorrindo na inocência, abria e fechava a mãozinhadescoberta sobre a colcha tricotada.
Isabel entrou chorando.
Desistira.
Entendia enfim, sem palavras, o dilema do marido, que prefira deixá-la lutarsozinha, tomar consciência da iminente desdita, afim de que encontrasse em simesma coragem para enfrentá-la.
O seu bom senso acordara.
Puxou dos cobertores, envolvendo neles o menino, que retirou do berço eaconchegou contra o peito.
O menino, apertado no embrulho, fez beicinho, choramingou, mas reabrindo osolhinhos e encontrando o rosto da mãe, sossegou.
O mais velhinho, porém, olhava em volta, assustado.
Já entrava água no quarto.
O menino pôs-se em pé, descalço ainda, sobre a cama.
Não encontrara razão para a azáfama inusitada. Sustinha o choro, que ameaçairromper da boquinha entreaberta.

Estendia os membros inertes ao pai, que lhe ia vestindo a roupa. Na cabeça, ogorro; nos pés as peúgas pequeninas, os sapatos desgastados.
Sentiu-se erguido, ganhou confiança de novo.

António e Isabel entreolharam-se, num mudo entendimento.
Tentavam não transmitir de si mesmos a aflição aos filhos.
De coração em alvoraço, olharam em volta, nada encontrando que valesse a pena ser levado, iam-se despedindo do pouco que haviam juntado com empenho.
A água subia depressa, o tempo urgia.
Era preciso ir embora.
Abrindo a porta, uma torrente negra quase atirava Isabel por terra. Agarrandodesesperadamente o filho, firmou-se apesar do impacto medonho da água quejorrava, da rua pela casa adentro, em remoinho.
António passou-lhe a frente, segurando-a

Chico, percebeu enfim que algo de muito errado se passava à sua volta.
Agarrado a seu pai, abriu a torrente do pranto, dando vaza à aflição.
Seguiram os quatro, no escuro, à procura de abrigo.
A correnteza aumentava. A chuva continuava.
Sirenes soavam longe.
- Socorro! Socorro! - Gritavam.
Mas ninguém os escutava.
Iam sozinhos num mundo que desabava.
Avançavam passo a passo, os pés escorregando na lama, os braços envolvendo osfilhos, que choravam ambos, desconhecendo porquê, mas sabendo-se em perigo, porinstinto.
Quanto tempo terá durado a deriva?
A correnteza ora os arrastava ora os impelia.
Alguém gritava do escuro:
- Está aí alguém?
- Socorro! Socorro! - Responderam eles, aflitos.
A voz tremia, mas a coragem redobrava.
Iam chocando com o vulto de uma carrinha.
Nada se via, se distinguia, a não ser quando quase se tocava.
Um vulto, de fato iridescente, atirou-lhes uma corda.
Lesto, António agarrou-a e passou-a na cintura.
Apertou a mão de Isabel, que se lhe estendia. Puxou-a para si com força eenrolou-a no extremo, com muito cuidado não fosse magoar o bebé, acordado,porém silencioso.
Da carrinha, o homem que agora se via ter um colete de riscas amarelas,puxou-os com toda a força.
Entraram a custo pela porta estreita.
Sentaram-se no banco. Um suspiro de alívio soltou-se. Sentiram todas as forçasesvaírem-se dos seus corpos.
Entregues, abraçaram-se um ao outro, no colo os filhos, presos no amor que os unia, agora mais do que nunca!


A noite das mil e uma histórias



Aberta que foi a porta, os sorrisos abraçaram-se, os olhos rebrilharam e o alívio d’Ele instalou se enfim, na expectativa d’Ela.
Ela esperara-o ansiosamente, preparando tudo afim de não vir a perder um só momento do usufruto da sua companhia.
Portanto, no ar rescindiam os perfumes, que Ele discretamente aspirava e Ela notava, satisfeita.
Sentaram-se lado a lado e uma aura de conforto envolveu-os, enquanto discorriam sobre todos os assuntos, sem divagar mas sem pressa, percorrendo tema a tema de tantos que os ligavam.
Eram ideias, ideais e sonhos, que acalentavam, lendo-se um ao outro como páginas abertas, convidando-se ao mútuo conhecimento.
Requeriam conselhos. Permutas.
Apontavam-se caminhos.
Faziam-se desafios.
Descobertas. Aventuras.
E o tempo decorria como ave que planasse no cimo de uma montanha.
Nos olhos d’Ele e d’Ela acendiam-se chispas.
Sem se tocarem, os sorrisos de um e de outro
iam-se beijando, no claro encontro.
Combinaram que era tempo de chamar à tona
os sentidos do paladar e do olfacto, reacendidos no deleite de degustar os alimentos que Ela combinara como se fizesse um poema, escolhendo cada partícula e tempero, buscando harmonias únicas, emoções gustativas irrepetíveis porque imaginadas, inspiradas, voláteis.
Sentaram-se frente a frente, alegres.
Ele serviu-a gentilmente e serviu-se.
Os sentidos flutuavam, os cincos que se nomeiam e mais os que pressentimos.
Assim, Ela soube que a Ele dava prazer quanto lhe oferecia; prazer que Ele não escondia, antes demonstrava, atento aos pormenores, sabores e formas.
Comentava cada pedacinho que experimentava, sabendo quanto prazer lhe dava a Ela.
Mostrou-se, como um menino, ansioso pela doçura fresca da sobremesa.
Lá fora estrondeavam as festas, no meio de ruídos, rolhas que saltavam das garrafas, estrondear de foguetes... as pessoas isoladas procuram umas junto das outras a ilusão de estarem acompanhadas.
Entre eles a confraternização fazia-se em harmonia.
O carinho, aninhado, transbordava-lhes do peito, como se duas trepadeiras se entrelaçassem, envolvidos os ramos de uma na outra, presas com força as gavinhas, tudo acontecendo na linguagem secreta das plantas.
E juntos partilharam as pequenas tarefas e se sentaram, confortados, lado a lado, no descanso da sala.
Escutaram música, apelando aos sentidos auditivos que erguessem a batuta e se sobrepusessem aos outros, para que ondulassem claras as emoções que a música despertava.

A conversa fluía, por entre risos, como um ribeiro flúi por entre os bosques, deixando ver através da transparência os seixos que, ao saltar brincando em línguas de água, saltaricam em gotas que se entretecem, se deslaçam e logo se reúnem sem quebrar o encanto em que discorrem.
Continuaram a desafiar-se, propondo ora Ele ora Ela que o outro escolhesse melodias, cantos, cantores, descobrindo a coincidência dos seus gostos como dois virtuosos lendo uma mesma pauta.
Ele fez um ângulo com as suas longas pernas e colocou uma almofada de penas entre elas, sobre os tufos do tapete, convidando-a a maior proximidade.
Ela aproximou-se, porém tímida, as pontas dos pés suportando todo o peso da ansiedade, que o resto do corpo, tomado de emoção, se lançava inexoravelmente em direcção ao abrigo aconchegado.
Sentou-se de frente para Ele, de pernas cruzadas, a certa distância, muito direita, na posição de flor-de-lótus.
Se bem que as pontas dos indicadores e dos polegares se não tivessem unido na posição do conhecedor, mas antes as palmas das mãos se dispusessem em concha sobre o colo, a esquerda sobre a direita, na forma de taça, de aceitação e dádiva.
Os olhos de ambos tocaram-se e beijaram-se, húmidos e ternos.
Ele estendeu a mão esquerda, a palma voltada para cima, serenamente entreaberta, e disse:
- Toca-me!
Ela interrogou-o sem palavras, hesitante.
E Ele de novo:
- Sente-me!
Ela levantou do colo a mão esquerda, que repousava na taça da mão direita, e estendeu três dedos, o médio, o anelar e o mínimo, aflorou a pele d’Ele, muito, muito ao de leve, receando não sabia o quê, talvez a pulsão que sentia crescer dentro de si.
- Repousa a palma da tua mão na minha e sente o fluir do meu sangue, murmurou Ele baixinho.
Lentamente, Ela acariciou a palma aberta e nela o coração que aflorava, docemente.
Sentiu o coincidir das pulsações, a compasso, ao mesmo ritmo.
E a palma da mão enfim distendeu-se, deu-se, espalmou-se e aderiu à palma d’Ele, como se um íman secretamente atraísse a limalha de todas as suas células.
A fusão era perfeita. Inegável. Completa.
Vinha de muito longe, de antes do tempo existir; concretizava-se naquele instante preciso.
Soavam apenas a música, o silêncio e o bater compassado que se percebia através das veias.
Encerrava-os um círculo prateado, de aceitação plena. Consentida. Assumida.
O olhar de um encontrou o do outro.
Não sorriram.
Desvendavam-se, atentos.
O seu imo conversava sem voz.
E tudo contaram um ao outro.
Falaram do antes, do agora e do depois.
Falaram com total desprendimento, na voz em que tudo se diz para além do som.
Falaram do ser e do sentir.
Contaram nessa noite mil e uma histórias de si, as acontecidas e as sonhadas.
De almas desnudas, uniram-se num secreto abraço, fundindo-se além do espaço que mediava entre os seus corpos apartados.
Interpretaram-se e preencheram-se.
Contaram um ao outro, sem peias e sem censuras que tinham perfeito conhecimento de algo que não nomeavam mas sabiam existir:
Um botão desabrochava em flor, do fundo de cada um, ansiando frutificar.
Abertas as pétalas, faltava o polinizador.
Os olhos não se desfitavam.
Os rostos mostravam as emoções perpassando como em telas expostas.
Mudos e nus, os rostos.
Distantes mas unidos, os corpos.
As palmas das mãos coladas.
A urgência a gritar por todos os poros.
Na calma imensa, a exaltação elevou-se que nem labareda.
O fogo polinizador apareceu de súbito, tal a chama que se alteia rubra, azul, amarela, negra, escaldante, intensa.
Suave, muito suavemente, quase sem mover os lábios, Ele pronunciou três palavras:
- Queres adormecer comigo?


Do mundo olvidado de Alice






Se Alice sofria, quem o saberia?
De há muito condenada, jamais se queixava.
Deixava que tomassem por si todas as decisões e providências.
Engolia, com a mesma silenciosa indiferença, tanto as pílulas da farmácia quanto as mezinhas caseiras de ervas, poções de todas as feiticeiras famosas na raia entre Portugal e Espanha.
Fizessem o que lhes aprouvesse e depois deixassem-na!
Não tinha paciência para visitas.
O seu tempo, precioso, passava-o bordando e fazendo renda, buscando novas formas nas tramas, desenhos únicos, modelos e motivos em pontinhos perfeitos.
As agulhas eram varinhas mágicas, nas suas mãos rechonchudas, de unhas ovais e longas, impecavelmente polidas.
Além das rendas e bordados, Alice deliciava-se em cantos.
Na sua voz todas as escalas se encaixavam.
Não sabendo ler música, parecia que de si nasciam os tons, dos agudos aos graves, encaixando-se impecáveis todos os timbres que a fantasia lhe ditasse.
Não cantava em Sol, cantava em sombra.
Em Fá, cantava fados, sobretudo os de Amália, totalmente à Lisboa onde fora menina sadia, recém casada feliz e dera à luz, descobrindo-se então a lesão oculta no seu coração de mocinha.
“Ai Mouraria, da velha Rua da Palma; onde eu um dia deixei presa a minha alma”!
Eram então bem-vindas as visitas, que chegavam de aldeias e hortas, de lugares remotos e se mantinham a distância, num silêncio reverente.
Iria também vinha, com o lenço bordado de pontas caídas sobre os ombros, encostava-se ao batente da porta, inclinava para trás a cabeça e soltava a voz, na companhia da sua amiga de infância.
Desafiavam-se. Improvisavam quadras e tons; brincavam com as notas, saltitando entre agudos e graves com a alegria cristalina com que a água salta de seixo em seixo no riacho límpido.
O povo juntava-se à volta, as bocas entreabertas, as mãos calosas pendentes.
As deles, ao longo dos safões ou das calças surradas, as delas escondidas sob a capa dos aventais.
Até o canto dos pássaros emudecia nos altos ramos.
Os olhinhos redondos pasmados, as asas tremendo hesitantes entre o pouso e o voo.
O mundo ficava suspenso naquele instante.
Pairava no som que fluía da cabeça loira de Alice, rosto de pérola rosada; da cabeça morena de Iria, os cabelos negros enrolados numa trança sobre a nuca, lenço bordado de pontas caídas sobre os ombros do vestido de Domingo.
Entregavam-se por completo à magia que lhes nascia no peito, subia na garganta, ressoava na cabeça e enfim se soltava modulada, reverberando, tremeluzindo como raios de sol inexplicáveis.
Nas jugulares visíveis de Alice iam, aos poucos, abrandando as pulsações.
Soltava a última nota, longamente entoada a despedida.
Depois deixava pender a cabeça, o queixo tocando o peito, as mãos cruzadas sobre o ventre contendo um mar morto, que a ia matando. Que, incontido, rompia a pele fina das pernas, desaguando pinga a pinga, ensopando as ligaduras.
Sem um som, os assistentes dispersavam, como se saíssem se uma capela cuja abóbada era o próprio céu, os ramos quietos das árvores, uma capela suspensa numa outra dimensão onde o divino estava presente e os fascinava.
As botas grosseiras não rangiam sobre a terra batida, morena, varrida.
Alice ficava sozinha, aliviada, numa felicidade inaudita que afastara de si aflições e sofrimentos... se os havia, vá-se lá saber!
À noite, o sono não vinha.
A filha pequena aninhava-se junto dela, remexendo com a tenaz as brasas da lareira.
Nos olhos imensos reflectiam-se as cores e o fascínio das chamas.
Não falavam nem se tocavam.
A presença, no entanto, unia-as como se um fio de prata as ligasse, inquebrantável como a vida em si mesma, invisível como só os fios que unem duas vidas interligadas, inseparavelmente.
Alice pedia um livro.
A filha corria a buscá-lo, alvoroçada.
Abria-o no capítulo deixado claramente assinalado na sua memória.
Colocava-o sobre as mãos entreabertas de sua mãe, sempre apoiadas sobre o bojo da barriga.
Acomodava-se no chão polido da pedra do lar e recostava o tronco miúdo sobre um tropeço de cortiça.
O cepo, enfim crepitava em paz, lançando faúlhas no poço negro da chaminé.
Alice recomeçava a leitura e a pequena, desligada de tudo o mais, seguia linha por linha os mapas traçados na sua fantasia.
Desenhava palmeiras, praias semeadas de conchas, de ondas brandas desfolhando flores de espuma na brancura da areia onde o drama se desenrolava.
Qual o drama?
O drama seguia-o Alice, que não sua filha pequena, enlevada num mundo repleto de devaneios, descobrindo as cores e aromas descritos, como se um tapete mágico se tivesse desenrolado a seus pés e um mago lhe houvesse segredado ao ouvido:
Sobe!
Levar-te-ei onde quiseres!


Menina solta ao sabor das estações




Para ir à escola, era preciso subir a montanha.
Não havia caminho. A vereda mal se via, pois só era pisada aos domingos, quando a minha avó e a criada iam à missa.
Desembocava enfim na estrada romana, larga, polida, ladeada por muros.

Ás vezes perdia-me por entre a erva esparsa.
Sobretudo se avistava gafanhotos e me punha a persegui-los.

Bicho dando de esperto!
Fingia aceitar o jogo, de pulinho em pulinho; depois trocava-me as voltas, saltava às arrecuas e eu, que o tinha quase na mão, rodava, no seu instinto...
Quanto devia rir-se o bicho!

Sabiam decerto que o meu intento não era comê-los, mas vê-los...
Eram verdes, amarelos, eram grandes, minúsculos, tinham patas de mola e pontas bicudas, viradas... As anteninhas diziam de longe:
- Vem, vem que cá te espero!... E eu ia – Plim! Saltava de caninha em caninha e
eu, iludida continuava.
- Vem, vem, que cá te espero!
Estendia a mão ligeira, o meu coração dava um salto e ele outro: Plim!
- Os grandes olhos no alto, brilhavam de tanto riso e os meus, quase choravam de desespero.
- Que idade teria eu?!
Media os anos, como se deve medi-los: pelo correr das estações.
A primavera era linda!
Tudo em flor! Cravos do monte, moitas amarelas e brancas de camomilas abertas, espreguiçando-se ao sol.
Estevas de sete-chagas: flores imensas e brancas com uma dedada de púrpura. Eu retirava as pétalas, delas retirava as pintas e depois mastigava-as, deliciadamente.

As lagartixas passavam os dias mandriando sobre as pedras.
Tão preguiçosas, tão preguiçosas, que nem se davam ao trabalho de correr de mim, como corriam, lépidas, ao aproximarem-se outras pessoas.
Sentia-me desconsiderada!
Podia lá aceitar uma desfeita da parte das bichas malandras, quietinhas de olhos cerrados, dizendo aos insectos
- Vem, vem, que eu estou dormindo!
- ... E eles iam, coitados, como eu ia aos gafanhotos... só que acabavam papados.
Entre os gafanhotos e eu a liça era pacífica, ao menos: só queria vê-los e eles que eu os não visse.
Seriam envergonhados... confessos?! Ainda hoje não sei o porquê de tal pudor!
No alto dos sobreiros, cantavam as poupas e os cucos e os outros pássaros todos seguiam estes maestros.
Os cucos eram adivinhos!
- Cuco, cuco, quantos anos de solteira me dás tu? Perguntavam as moças, que ficavam a escutá-los, de ouvidos atentos.
Depois riam-se umas com as outras, trocavam olhares, escondiam cumplicidades na barra dos aventais.
No verão, o calor era tanto que tudo ficava em suspenso.
Cresciam as silvas em flor, aproveitando a distracção.
As cobras refastelavam-se pelas manhãs.
À hora do sol a pino, recolhiam aos seus quartos frescos, subterrâneos, enrolavam-se e dormiam... que vida regalada levavam elas!
Até mudavam de vestido, que eu bem notava os deixados, transparentes, ressequidos, embandeirando os galhos que ladeavam caminhos.
A erva hirsuta secava, ficava da cor da palha.
Eu colhia “olhos de cobra” e recobria pomo a pomo com as pratinhas de chocolate, fazendo ramos coloridos, pendendo como brincos dos caules finíssimos.
Era tempo de cautelas: as ervas picavam; as silvas, essas... pareciam tecer armadilhas; os cardos riscavam as pernas, e no chão cuidado! Havia lacraus e centopeias, perigosos. Que desrespeito me tinham os bichos!
Se alguém lhes tinha dito que eu não tinha defesas, não sei, mas que lá que me ofendiam, me não ligavam nenhuma, era de certeza uma afronta indesculpável... e ainda por cima nem se dignavam pedir desculpa!
Que atrevidos!
Aos poucos, negrejavam as amoras nos ramos.
Tentações!
Era preciso cuidado às cores: só as negras muito negras deveriam ser colhidas.
Aprendera com os passarinhos e... de tantas vezes me ficar o sabor acre onde era esperada a doçura, na ponta da língua.
As folhas iam amarelando e caindo.
O Outono era belo, mas sol de pouca dura!
Em breve caía a chuva, primeiro fina, depois fria.
De repente, um frio cortante descia da Serra da Estrela e a manhã amanhecia toda branca de geada.
De noite, escutava o assobiar do vento.
Diziam que por vezes, de manhã, pequenos bichos apareciam atravessados, vivos, nos ramos recém despidos; filados os corpos de lado a lado, apesar de terem atravessado as forquilhas e os gomos... andei, andei, rodei na ventania muitas vezes na esperança de ver com os meus olhos tal magia... mas quê!
Não sendo crente nem bruxa, jamais tive essa sorte... deveria acreditar no que se diz, é o acreditas!
Crer, só no que estiver diante dos meus olhos e mais: preciso mexer, tocar para crer como S. Tomé.
- Que raio de feitio tem esta criança, ouvia também, já que tinha de ouvir e os outros e têm sempre que comentar...
De noite, não havia cobertor que nos valesse!
Lareira acesa, braseira reluzindo... qual quê!
Os pés petrificavam que nem gelo, a pele das mãos estalava de frieiras.
As pernas entrecruzavam-se de linhas, veias dilatadas pelo sopro das fogueiras, a que chamavam chouriças.
Os gatos, coitados, andavam tisnados, de pelo ruço, enroscavam-se no borralho e nem davam que nele houvesse misturadas pequenas brasas acesas.
Um dia tudo ficava cinza cinza, uniforme e quieta.
Aos poucos, o céu começava rodando, rodando, e à medida que girava, ia abençoando tudo, desprendendo farrapinhos alvos, que lentamente desciam!
Deitava a linda de fora, sorvendo aquela frescura.
Lançava-me de braços abertos na alvura!
O manto branco crescia, tudo deixava encoberto, não mais a negrura do granito, o verde-escuro dos musgos, o verde cinza dos líquenes... tudo era tudo branco e eu rebolava no chão, deliciada na calma, pois tudo se recolhia... eu era a menina vadia, a que não se ralava, a que deambulava sozinha.
Recolhia mãos cheias de neve e ia guardá-la em casa: mas ai! Chegava de mãos geladas, molhadas e vazias.... Esvaía-se-me a beleza por entre os dedos, como a riqueza aos outros.
Ficou-me dentro da alma!

Amélia e o Seu Tempo


A casa de meus avós ficava no sopé do monte... No cimo o castelo, em ruínas desde que explodira o paiol da pólvora.
Os penedos tinham rolado encosta abaixo, esmagando tudo.
Salvou-se uma mulher, que se abrigou sob o umbral de cantaria da porta.
No nosso terreiro, contra a parede da casinha do forno, sempre vi uma pia baptismal, de granito negro e gasto, tão gasto que apenas se lhe notavam os ténues contornos.
Era talhada de uma única pedra.
Na capela do castelo, entre as ervas, vislumbrava-se o lugar de onde viera.
No topo restava a ara corroída.

Era um lugar solitário, sem loureiros, chamado Louredo.
Em volta da casa, de dois pisos de granito, com balcão e escadaria, inúmeras dependências: palheiros, cabanais, arrecadações, onde pernoitavam as cabras, as burras, as galinhas, patos, perus, que chegavam em fila ao anoitecer e entravam por um buraco, que se fechava com um toco, por causa das raposas.
Mais abaixo a coelheira e lá ao fundo, a furda funda dos porcos.
As chaves, que minha bisavó usava penduradas na cintura, eram enormes, a minha mão cabia na argola de cada uma.
Não se sabe, de tão negras, se ainda rodariam nas caixas das fechaduras.
As portas estavam abertas, à noite fechava-se o trinco, que se abria premindo ao de leve a patilha redonda, com a ponta do dedo.
Além dos terreiros, onde as galinhas ciscavam soltas, ficavam as hortas, os pomares, as vinhas.
Os poços com noras ou cegonhas, os tanques de rega, as calhas de pedra limosa por onde a água corria, tão límpida que à sua beira cresciam todas as espécies de ervas.
As ervas comiam-se às vezes.
Eram agriões, azedas, salsa, e a minha avó cozinhava um empadão de rabaças enquanto o forno, onde o pão crescera e tostara, se abrira como flor de bem-aventurança, esfriava.

E por ali crescia a menina desvalida.
Para onde fosse, levava um livro comigo.
Por esse tempo lia muitas histórias de princesas, de gigantes e de fadas... as leituras ainda recomendadas por minha mãe, que se fora na primavera, amortalhada no seu vestido de noiva.
Por haver muito em que pensar, ninguém se lembrou de me matricular na escola.
Cheguei com um ano de atraso e atrasei-me lá três, sentando-me na classe onde me apetecia, pois tudo o que lá se ensinava eu já antes aprendera.
Foi a primeira vez que contactei com outras crianças, entenda-se: meninas!
Nas paredes, Salazar à direita, Américo Tomaz á esquerda.
Nos livros, Salazar na primeira página, Américo Tomaz na segunda.

Eu não sabia brincar de imitar a mãe a tratar de bebés nem de fazer jantarinhos em tachos minúsculos.
Sabia recortar figuras de papel, as mulheres de saia, os homens de calças, com uma nesguinha fina de papel no meio das pernas.
Nunca vira, mas pelo que ouvia, imaginava.
As figurinhas mais pequenas eram as crianças.
Pegava o que tivesse à mão: achas, folhas, pratos e chávenas... e no nicho do armário de canto, montava o cenário.
Depois, desenrolavam-se milhentas histórias... viviam vidas intensas, aquelas personagens recortadas de livros, jornais e revistas!
Quando cheguei à escola, o embate foi tremendo: nem por nada me entendia com as outras meninas!
Teimosa, ficava na minha... mas elas eram a mais e maiores, e eu a desconhecida, a mais pequenina... apanhava cada sova!

Tive uma amiga, a Amélia.
Morava muito longe, tinha muitos irmãos.
Depois da escola, ai dela que aparecesse em casa sem lenha!
Ora no terreiro do Louredo, havia enormes montes de lenha rachada pelo Vicente, que trabalhava de sol a sol em troca de um litro de azeite e um cálice de água-ardente.
Acho que levava o dia inteiro a sonhar com as caretas que havia de fazer quando o líquido lhe fosse servido. Era o seu único mimo, além da onça de couro onde guardava um pouco de tabaco e do livrinho das mortalhas.
Às vezes, encostava-se ao cabo da enxada e tirava dos bolsos os seus tesouros.
Mirava-os bem.
Com as pontas dos dedos, separava um papelinho, tirava uma pitada de folhinhas do fundo da onça e enrolava-as carinhosamente, com muito cuidado. Passava a ponta da língua no bordo da mortalha, passava lentamente os dedos no cigarro perfeito e acendia-o por fim, com a chama de um fósforozinho de cera.
Regalava-se.

Eu e a Amélia tínhamos um segredo: ela ia brincar comigo e depois tirava do monte da lenha o suficiente para que nem a mãe lhe batesse, nem a minha avó desse pela falta.
E ficávamos metendo as mãos entre os espaços deixados entre os troncos, onde por vexes achávamos ninhos.
Tirávamo-los com cuidados infinitos, para vermos os ovos, os filhotes, se os houvesse, e depois, sem estragar, colocávamos tudo de novo no sítio... ignorando que a mãe pássaro nos espiava do alto e, vendo o ninho descoberto, nunca mais lá voltaria.
Brincávamos de erguer casas de pedrinhas equilibradas umas sobre as outras, com jardins cheios de flores.
Trocávamos segredos acerca das mulheres que víamos de barrigas gordas... e depois, sem mais nem menos de novo magras e uma criança nos braços.
Tanto matutámos que concluímos estarem os bebés nas barrigas... mas como apareciam cá fora?! Pelo buraco da frente; pelo buraco de trás?!
... E maior mistério ainda: como seria que iriam parar lá dentro?!
Aí nem sombra de suspeita!
Dizia-se que se bebesse água de um poço onde houvesse bolhas ao cimo, nasciam rãs na barriga... mas e os bebés... ?!
Amélia passava fome, o que era tão comum que não causava estranheza.
Os comeres eram pão com azeitonas galegas; e os mimos “batatas guisadas com coelho a fugir na serra”...
Um dia a ceia de Amélia eram feijões refogados.
Ora nem a fome mais negra a fazia suportar o sabor da cebola refogada.
Junto da lareira acesa, debruçou-se a menina, para escolher feijão a feijão, à luz fraca da candeia.
Fosse da fome ou do enjoo, a verdade é que caiu sobre o lume e ardeu como uma tocha viva.
Tiraram-na e levaram-na a correr, para o hospital do concelho.
Três dias depois, morreu.
A mãe foi buscá-la, a pé. Eram muitos quilómetros por caminhos desertos, com a filha morta enrolada num xaile, debaixo do braço.
Não chorou senão perto do povoado.
Quem andava na faina e a viu passar soube depois que o seu pequeno fardo, era a filhinha morta... e censuraram-na durante muito tempo... que fingia; que ficara aliviada por ter menos aquela boca para sustentar.
Foram de casa em casa pedir roupa para amortalhar Amélia. Pela primeira vez iria bem vestida e calçada.
A mim, pediram-me um par de peúgas brancas. Não entendi. Vira sempre a minha amiga descalça, porque só agora iriam calçá-la?!
Por uma vez na vida, a minha avó sentou-me em cima de uma arca e falou mansamente:
- Tu não te ralas de dares umas peúgas à Amélia, coitadinha, pois não?
À noite fomos velá-la.
Deitada sobre um lençol, no chão, finalmente vestidinha e calçada, nem parecia a mesma!
O rosto, intacto e branco, era de perfeita paz.
No dia seguinte, peguei, com outras companheiras, numa das asas do caixão, chorando, chorando, como ainda hoje choro.


O Sapo que Prendeu um Boi por Uma Perna


Gordo, pintalgado, vaidoso, o sapo Adaúlfo disputava quantas sapas havia nas redondezas e era o pai e o avô de centenas de girinos.
Corria com todo o sapo, rã-macho e salamandro ... era um bicho de respeito!
Ficava horas e horas remirando-se nas poças, qual Narciso...
À sua volta crescia a erva viçosa, que atraía mosquitos, moscas e gafanhotos, seus petiscos predilectos.
Ora era o lameiro o pasto de Zacarias, “o boi do povo”.
Este era o felizardo boi comunitário.
Era lindo, anafado, reluzia o pelo ruivo. Tinha os cornos revirados com uma borla nas pontas.
Ninguém o atava ao arado; ninguém lhe punha a canga nem o prendia à carroça.
E, se bem que nem soubesse, por certo adivinhava, ter a vida garantida... garantido era que não iria para o açougue.
Os olhos meigos, dourados, rebrilhavam de saudável alegria.
Tendo sido eleito de entre todos os touros o mais escorreito e vistoso, era o noivo prometido das vacas da vizinhança.
Era o reprodutor por excelência, tinha emprego assegurado... e trabalhava por gosto!
Juntava-se entre todos o feno com que alimentá-lo no Inverno.
E se fazia bom tempo, cada um por sua vez, levava o boi ao pasto.
Esse era um dia de azar na vida de Adaúlfo!
Ah que raiva tinha ao toiro!
Malvado!
Roía, roía... enchia o prado de bosta, pisoteava as poças, onde cresciam os filhos... maldito do boi Zacarias...
Adaúlfo dava voltas aos miolos: como haveria ele de espantar o monstro?!
Ia perto, a ver se lhe apanhava o “tendão de Aquiles”, o ponto fraco de um ser tão forte, que não podia ser corrido como os outros... tinha de inventar uma armadilha, que o assustasse ao ponto de o fazer perder o apetite... claro que os humanos nunca suspeitariam se si!
Estúpidos, aqueles que andavam sobre as patas traseiras e se era preciso dar um salto, se esparramavam na lama que nem tartarugas coxas!
Tanto congeminou... tanto ia cada dia para mais perto do pacífico Zacarias que este, num dia em que procurava um lugar para se instalar ruminando, distraidamente pisou-o!
Ai que dor sentiu Adaúlfo!
Que vontade de gritar com a boca escancarada: Ai, que o boi mata-me!
... Abriu a bocarra, encheu-a de ar mas no instante exacto em que ia soltar o grito... a mente iluminou-se-lhe!
E em vez de se queixar, disse, meio debaixo do casco, e em tom vitorioso:
- Venham todos! Venham todos! Peguei o boi por uma perna!
- Peguei o boi por uma perna!

Zacarias, habituado a meiguices, apanhou um desses sustos!
Nem se deu conta do sapo!
Desarvorou em corrida, até que chegou à aldeia, o povo espavorido corria atrás do touro: mas que aconteceu ao bicho; mas o que é que o espantou, que era tão manso?!
Pois sim!
Corneava a torto e a direito; não deixava ninguém chegar-lhe a mão ao pelo!
Reuniu-se o povo no largo do pelourinho.
Que se havia de fazer ao touro, se não deixava ninguém chegar perto, como se levaria aos currais da vizinhança na altura de o chegar às vacas?!
E quem quereria arriscar-se a ver nascer no seu palheiro um bezerro marrão?!
Deitaram-se sortes, que havia várias opiniões.
Um chapéu passou de mão de mão e de cada mão caía um papelinho enrolado, como se faz nas quermesses.
No fim contaram-se os votos: sentença de morte ao domingo!
O que sobrasse da comezaina que teria lugar depois da missa, a carne, a pele os os cornos, seriam divididos por todos.

Assim se fez.
Agora o sapo Adaúlfo anda coxo, como uma tartaruga.
Já não lhe apetece remirar-se nas poças de água, outro sapo fecunda as sapas... mas nem assim se perdeu a sua fama de herói:
Ele prendeu um boi por uma perna e o lameiro pertence desde então aos sapos... e a outros bichos, que respeitem as distâncias!


Nem todos os Natais serão iguais




Havia uma menina que não sabia a data certa do Natal.
Sabia, pelo frio, que era no Inverno.
Sabia, pelos cânticos na missa, qual era a época.
Vivia numa casa deserta de ternura.
Ao serão, de vez em quando, fervia-se azeite num grande tacho de cobre luzente, colocado sobre a tripeça de ferro, nas brasas da lareira.
Alguém tendia a massa das filhós, sobre um pano no joelho e as deitava na fervura, enquanto outra pessoa as voltava.
A si davam-lhe, por simpatia, a honra de as polvilhar com a mistura de açúcar e canela.
Árvores, só as que cresciam lá fora, agora de folhinhas recolhidas.
Por vezes a neve caía, recobrindo tudo de mágico encantamento.
A menina olhava o céu, que a deslumbrava! Parecia que descia, rodopiando do azul, em fiapos levezinhos e brancos.
Deitava a língua de fora e, sorrindo, estremecia, num arrepio delicioso, bebendo a água pura que se lhe desfazia na boca.
Nas mãos ambas, apanhava pedaços de neve, que tentava guardar consigo, para sempre prolongar esse momento mágico.
Levava-a para dentro de casa, resguardava-a. Era tão linda!
Porém, tão pouco durava! Logo desaparecia e a menina chorava lágrimas de pura inocência.
Nunca ninguém lhe dissera que o Pai Natal existia, e aos meninos visitava.
Dizia-se que o Menino Jesus deixava prendas no sapatinho... mas ela nem o sapato deixava, no limiar da borralha...
A menina só queria que o frio se fosse embora e viesse a primavera!



Caminhos campesinos



Descia-se por um carreiro ladeado de verduras viçosas, diferentes nas tonalidades, da prata da oliveira ao verde-escuro da margaça.
Os olhos deslumbravam-se perante os insectos e as flores!
Joaninhas cor-de-laranja com pintinhas pretas “joaninha voa voa, que o teu pai foi a Lisboa... dizíamos, em cantilena).
Papoilas enormes, vermelhas, a que voltávamos as pétalas e, com uma ervinha de junça atada ao meio, fazíamos efémeras bonecas de saia rodada e cabeleira negra..
Lagartixas pálidas, esverdeadas, escapuliam-se lépidas, por entre as pedras.
A cega-rega das cigarras era quebrada pelo reco-reco das rãs, sinal de que o riacho estava próximo.
Um tronco velho ligava precariamente as duas margens.
Cheirava a funcho: as margens estavam cobertas de erva-doce, tão intenso era o aroma que nos dava pressa de sair dali!
Dava o primeiro passo, agarrando a mão de alguém maior que eu.
No fundo havia uma laje imensa, que eu sabia não poder olhar, mas me hipnotizava, fazendo-me balançar em desequilíbrio.
Levantava a cabeça, e dava mais um passo; não dava era parte de fraca!
Avançava-se depois por entre a erva alta e os ramos dos salgueiros, debruçados sobre a água.
Em breve surgiam as hortas: leiras de abóboras grávidas estiradas ao sol; depois o milheiral de bandeiras altas; pimentos vermelhos; beringelas roxas.
Já perto da casa granítica, negra, erguiam-se os feijoeiros enrolados nas estacas e os tomateiros de folhas urticantes, amareladas pelo sol.
O verde vermelho dos frutos reluzia como jóias inesperadas.
E lá estava ela, a Alice, com o cabelo cor de palha, muito escorrido e cheio de praganas de aveia.
Quando chegávamos perto, fazia menção de fugir, mas ficava. Tensa, um sorriso tímido mas malandro tingindo-lhe os lábios.
Chamava a mãe.
Esta, saia do buraco negro, que era a porta da casa de terra batida, sem janelas.
Uma única divisão, sempre pejada de sacos de batatas, molhos de palha, maçãs estendidas em esteiras.
A mãe da Alice trajava sempre de preto. Sobre a cabeça, o lenço de pontas cruzadas, atadas no alto da cabeça.
Do biôco do lenço, sorria à gente, boca quase sem dentes, lábios e pele crestados, dando as boas vindas e desculpando-se:
- “Vindes em má hora, sem avisar”!
Punha-nos as mãos nos ombros, entendidos os braços:
- “Crescestes! Estais bons, ou quê?!”
Dizíamos que sim, estávamos de passagem, muito que fazer em Lisboa!
Atrás dela ficava o luxo da casa, que permitia se distinguisse através da lonjura: uma lista de cal logo abaixo do telhado.
Tão alva que quase destoava ali, onde predominavam os tons castanhos da terra, verdes pálidos dos líquenes e musgos secos que cobriam as pedras.
No meio dos tons áridos, só aquela lista branca!
Desembaraçada, remexia no lume, ajustava o testo da panela de ferro bojuda sobre o tripé.
Ia tirar água da nora e gritava ao marido:
- Ó António! Traz aí uma melancia, que os gaiatos estão com sede!
Gostais de queijo de cabra, não gostais? Vou lá dentro partir o pão, cozi hoje, estais com sorte!
Voltava com pratos de esmalte, o queijo, o pão partido.
- Nós já estamos avesados com o cheiro do queijo, agora vós! Comam, comam!
O António chegava com a melancia debaixo do braço. Sorria. Cumprimentava a todos. Apresentava o enorme fruto, sopesando-o
- Ó Maria, traz mais um prato, que eu tenho aqui a navalha!
Vinha o prato. Cortava as extremidades da melancia, depois talhadas largas a toda a volta, a casca a estalar ao partir.
Tirava a primeira fatia, rubra e húmida e dizia:
- Olha que é das boas, ó Manel! Prova lá se queres ver!
- Boa, boa! – Dizia o outro, melado do sumo doce, a cuspir as sementes pretas.
Às tantas, estávamos todos lambuzados do mel da melancia, das ameixas que entretanto puseram em cima do madeiro que fazia de mesa.
A Alice nem comia nem tirava os olhos de nós. Era como se estivesse fascinada pelo movimento dos nossos dedos, dos nossos dentes ao cravarem-se na crista vermelha, sorvendo, que se desfazia na boca.
- Ó Adelaide, não cresceste muito desde que te vi na Festa do São Miguel!
Encolhia-me. Estavam todos a olhar para mim. Sem o dizerem, todos concordava: não crescera lá muito, não.
- Ah, cachopa! Deixa lá: a mulher e a sardinha quer-se da mais pequenina, animava-me o António.
- É pequenina, mas rija, vede lá se apanhou o andaço de vómitos e caganeira que nos calhou a todos no ano passado!
Mau! A conversa tinha de mudar de rumo.
- Alice, para o ano já vais à escola?
Ai! Agora era a Alie que estava na baila, coitada. Zangada, escondia-se atrás da mãe, tapava a cara com o avental.
- Vá lá, moça, que as palavras não custam dinheiro!
- Por enquanto, António, por enquanto! E há palavras que custam: as dos jornais, da telefonia, dos livros...
- Ó cachopo! A gente não tem cá desses luxos, rapaz!
O António soltava um riso que parecia tosse.
- Nós aqui, se não vamos nós a falar, só ouvimos o gado e os grilos, ah ah!
- Pois é, António, não ouves porque há quem queira que não oiças, percebes? Para bom entendedor...
- Cala-te mas é!
A Maria ficava de repente séria, como se os repreendesse por terem dito algum palavrão.
- Tens razão, Maria, é melhor a gente falar de outra coisa.
Olha, já viste que este ano há-de haver muita azeitona?
- Pois é, o pior é arranjar que na apanhe: quatro homens e seis mulheres, vê lá, pelo menos. Os homens a dois alqueires, as mulheres, a metade. Vê lá tu quanto é que não é!
A conversa já tinha saído do diâmetro dos meus interesses.
Começava a olhar à volta: procurava primeiro as crias: gatinhos, poldros, cachorros, cabritos se os houvesse.
Ia atrás deles. Queria pegar-lhes ao colo, fazer-lhes festas, obrigá-los se possível a caminhar com uma pata na minha mão, sobre as pernas traseiras: “lavá-los a passear”...
Se não havia crias, ficava desiludida e triste.
Parava um bocado. Ia-me afastando dos outros, arrancando erva e chegando-me às ovelhas, de mão estendida.
Ou surripiava umas cascas de melancia para os porcos.
Os porcos! Chegava-me devagar, em passinhos, à beira da pocilga funda, pejada de lama e excrementos, como se atraída por um poço.
Pé ante pé, ia-me aproximando sem ruído, cheia de medo, até ver os dorsos arredondados, os rabos enroladinhos; as orelhas pontudas. Depois os ohinhos brilhantes, os focinhos fremindo, a grunhir.
Atirava-lhes uma casca: iam a correr, empurravam-se, mastigavam num instante, com os grandes dentes à mostra.
Mais um passo, mais uma casca. Agora os grunhidos eram mais insistentes ainda.
Eu ia-me chegando para lá e eles para cá. Às tantas a situação era de risco: eu a pontos de rolar atrás de alguma pedra da beira; eles empinados à parede, esticados e de boca aberta, querendo tirar-me o que quer que fosse das mãos.
E ali, no limite imponderável, quase a resvalar, ia repartindo a comida, de forma a prolongar mais aquele instante.
- Ó miúda! Olha que cais na furda e os porcos comem-te! És parva, ou quê?! Sai daí!
Ficava ainda um momento, de braços caídos, as mãos tocando a saia, em posição de sentido, eles a olhar-me expectantes, a tromba fremindo.
Recuava um passo, fitando-os ainda. Depois virava-me e desatava a correr, envergonhada e em susto, para junto dos outros.
Pegava um naco de pão, fingia que comia enquanto olhavam para mim.
À medida que as suas atenções derivavam para outros assuntos, ia-me retirando de mansinho.
Lá estava a capoeira dos pintos, com as mães. As outras galinhas e frangos, assim como o belo galo vermelho de crista em riste e cauda de brilhantes penas longas, podiam ciscar aqui e ali. Chegavam a entrar em casa, de onde eram corridos com o abano de palha.
- Xô, Xô! Larguem as sacas das sementes, seus filhos da puta! Deixa chegar a romaria, que eu vos digo! Vão para a panela! Xô!
A Maria, no fundo, era como eu: à sua maneira também amava os bichos e falava com eles, como se fossem uma espécie de gente, pois melhor que muita gente a entendiam.
Era um crá-crá-crá, um reboliço de asas, um revoar de penas, e lá iam eles a correr até chegarem a outro canto do terreiro, onde se juntavam e recomeçavam a eterna fadiga de esgaravatar e debicar insectos e sementes encontrados aqui e ali.




PLANOS E DISTÂNCIAS



Sobre o largo mangue, saciado de água, a vida rejubilava, no eterno milagre do renascimento.
No extremo de um ramo suspenso, a folhinha fazia força para sair do gomo que a resguardara.
Tinha pressa!
Precisava respirar o ar húmido. Precisava saudar o sol. Precisava encetar a alquimia de transformar os gases da atmosfera, na sua fábrica de clorofila.
Um pulgão sentiu o cheiro do parto.
O instinto levou-o pelo ramo, expectante a pequena tromba sugadora de seiva, as células de seu ventre, comandas pelas ancestrais hormonas, encetando a elaboração dos ovos, sem necessidade de cópula.
Ah como cheirava bem a folhinha e que linda família construiria nela!
Corria o mais que podia!
Na forquilha próxima, o louva-a-deus esperava, imóvel, paciente, as mãos postas, pedia aos céus lhe caíssem nas mandíbulas vitualhas que devorasse; fosse a si o reino dos outros, tudo o que viesse!
Nada rejeitava nunca, de tudo se aproveitava.
Nem o macho escapava, era o cúmulo da cupidez: num extremo a avidez de sexo, no outro a saciedade da gula: uma autêntica orgia gozada apenas por ela, a fêmea!
E louvava! Louvava-a-deus a ventura em se que reproduzia, talvez porque rezando tanto os céus acabavam sendo vítimas do engodo que lhes tecia, comprando a sua graça com hipocrisia.
Não obstante a completa imobilidade aparente, os grandes olhos multifacetados, colocados no cimo da cabeça triangular, vasculhavam o horizonte; as antenas palpitavam de cobiça, vibrando em todas as direcções.
Sentiu a acre fragrância da folhinha nascente e o doce perfume do pulgão, que inocente e cego, se deslocava movido pelo primitivo instinto.
Lá em baixo, na água, um peixe arqueiro sentia doer-lhe a barriga.
Em vão vasculhara a penumbra, mas nada de presa!
A fome era tanta que a barriga se lhe colaria às costas... Não fora impedi-la
a bexiga-natatória, que porém lhe dava muito jeito quando flutuava.
Veio à superfície e espreitou para fora de água, encobrindo-se sob uma folha que boiava, amarela e indiferente, pintalgada por colónias de fungos.
O peixe, que remédio, resignava-se à conquista do sustento que lhe faltava, recorrendo ao engenho, já que o acaso lhe falhara.
Viu a cena num relance e preparou a emboscada.
A folhinha, enfim soltou-se, desdobrou-se, verde intensa, esplêndida, resplandecia!
O pulgão chegou-se à orla e deu-lhe uma dentadinha. Hummm, que delícia!
Colou-lhe as ventosas das patas e instalou-se feliz.
O louva-a-deus, agradecido e beato, mirou muito bem a mesa posta, apartando enfim as mãos uma da outra, preparando-se para a janta.
Deu ordem às molas das patas traseiras, contraiu todos os músculos e deu o pulo aterrando sobre o pulgão acomodado e guloso.
As mandíbulas cravaram-se sobre o corpo humilde e mole que, se lhe não valia de muito, melhor era do que nada.
Não era bicho que se entregasse ao luxo do desperdício.
O peixe arqueiro, de baixo, esperava este momento.
Calculou a distância, distorcida pelo reverberar da luz e a profundidade a que se achava.
Num ápice, executou todos os cálculos que lhe dariam nota máxima, num exame de engenharia.
Agitando rapidamente os opérculos, tratou de fazer uma corrente de oxigénio penetrar-lhe no sangue, pelo filtro das guelras.
Concentrou as energias. Certificou-se de que a boca estava bem provida de água.
Vedou as válvulas, cerrando-as contra o corpo, pôs o focinho fora da água e rectificou os cálculos.
Cuspiu ligeiro para o alto, acertando em cheio, mesmo no centro do monstro louva-a-deus, que neste momento se distraía de dar graças e caiu desamparado e esperneando na superfície das águas, sem que um santo lhe acudisse.
Roía ainda o pulgão, que roía a folha que... embora maculada, continuava brilhando lá em cima, operando na sua máquina a troca de dióxido de carbono por oxigénio, utilizando a energia solar.

Vazia a boca, o peixe arqueiro, usou o vácuo da mesma para sugar o almoço, de ímpeto, aspirando sem demora toda a luta em sua glória, sem perder tempo manejando talheres nos raios das barbatanas, sem precisar guardanapo, submergindo cansado mas satisfeito, buscando abrindo na lama macia do fundo, porventura junto a um troco caído mas seguro.


Histórias de Sara e do dentinho que se distraía


Aos seis anos, a Sara já lia e escrevia sem erros.
Aprendera não se sabe como, ao mesmo tempo que aprendera a fazer laços com osatacadores dos sapatos, a abotoar os colchetes da saia, a fazer bonecas detrapos..
É muito fácil fazer bonecas.
Podem ter ou não ter esqueleto, depende do tamanho, e este depende dos traposque o acaso nos deixa à mão de semear.
Reúnem-se os trapos e escolhem-se os tecidos para o corpo e para o vestuário.
Para as bonecas pequenas, bastam fios, até linhas servem, se se enrolarembastante.
Se a boneca for grande, tem de ter esqueleto, ou seja, uma armação, em cruzfeita com dois pauzinhos.
Começa-se por uma bolinha: pode ser de pano, de pão, de algodão... se a gentetiver um berlinde (bola de gude) então... very, very good!
Ata-se bem apertado, em espiral, para fazer o pescoço.
Faz-se um rolinho de tecido e coloca-se na horizontal, ajeitando o tecido docorpo de modo a que fiquem a descoberto dois pedaços de cada lado.
Nas bonecas com esqueleto, envolvem-se os braços de pau em tiras de tecido eno fim dos braços cozem-se as pontas com pontinhos miúdos, a fazer de mãos.
Na vertical, isto é que requer alguma habilidade, colocam-se outros doisrolinhos, as pernas.
Se se tiver um trapo com que se faça um rolo fino e comprido o suficiente parase dobrar em ângulo... então é facílimo... mas também é preciso ter muitasorte... as mulheres aproveitam esses pedaços para fazer remendos.
Se a boneca tiver esqueleto tem de se ter muito cuidado, colocando um outropauzinho do mesmo tamanho, de modo a que a boneca não pereça coxa.
Ata-se muito bem a cintura.
Depois é só fazer a roupa!
Cruza-se uma tira a fazer de blusa e coze-se dos lados.
E com um trapézio do mesmo ou de outro tecido, talha-se a saia.
Estão a ver como é fácil?!
O difícil foi descobrir como cozer bolsos na saia... levou tempo... um diadestes, explico!
Na cabeça, passam-se fios de lã e cortam-se conforme o penteado que se escolhe
É preciso ter uma agulha grossa, de cozer camisolas... toda a gente sabe isso.
E depois basta pintar os olhos, o nariz e a boca.
Pode, antes de se cozer a blusa, colocar ou não maminhas por baixo, depende sese está a fazer uma boneca adulta ou uma boneca criança.
Aos homens e aos rapazes, é claro que se talham calças, com dois rectângulos.
Pois a Sara aprendeu tudo isto ao mesmo tempo que aprendeu a ler.
Tudo depende, afinal, de se observar as coisas, não é tão difícil quantoimaginam!
E a Sara lia.
Lia sobretudo livros de fadas, de princesas, de mouras encantadas, de dragões,de génios e gigantes.
Um dia descobriu que um dos dentes abanava. Abanava mais e mais dia após dia.
Andava ela a ler um conto onde uma pastorinha de patos tinha sonhado que se lhecaísse um dente e o colocasse durante essa mesma noite debaixo da almofada,esse dente passaria a ser o seu amuleto da sorte.
Deveria depois levá-lo consigo para todo o lado, de modo que visse tudo o queela visse pois um dia encontraria um príncipe, e apaixonar-se-iam, e levá-la-iano seu cavalo branco para um lindo castelo, onde seriam felizes para sempre.
Nunca por nunca se perde o primeiro dente que nos cai!
Um belo dia, o dente de Sara, ao roer a linha com que cozia, caiu!
Não doeu nem um bocadinho, não deitou sangue, nada!
Sara verificou o buraco com a ponta da língua e sentiu a pontinha rija do dentenovo que nascia por baixo.
Sorriu, guardou o dente solto e passou a levá-lo para todo o lado.
Ia brincar na praça, ia à mercearia...
Pelo Natal, os pais levaram-na ao circo, era uma benesse dos patrões, a ofertados bilhetes.
Ela ficou radiante!
Preparou-se muito bem, penteou-se a preceito, ao espelho, e atou uma fitavermelha no alto da cabeça.
No meio do laço, com uma ponta de fora, a mãe viu uma coisinha branca... julgouser sujeira e ia sacudi-la.
Sara deu um grande salto, afastando-se
- Não, mãe! Não mexas, senão ele cai!
- Ele quem?!
- O dente, ora essa! Deu-me tanto trabalho a prender de maneira que ficassecom a cabeça de fora!
- O dente tem a cabeça de fora? – Admirou-se a mãe, apesar de habituada àsinvenções de sua filha.
- Mas claro que sim, mãe! Se o dente é meu companheiro, vou levá-lo ao circo,para se distrair connosco!

E assim foi!
... Visto ser oportunidade rara, não podia de ir deixar de acompanhá-la aocirco, para se distrair!

Angelina em espera na janela


Angelina é pequena.
Mora e anda sempre sozinha, sem mágoa, pois tudo o que olha vê com os olhos da alma e medita longamente, falando consigo mesma, fazendo-se companhia.
Portanto não vive sozinha Angelina.
Vêem-na sem parceria e têm pena, coitada... para ali ao deus dará, sabe-se lá se come, se dorme, que ninguém aparece dizendo:
- Esta menina é minha!
E não é de ninguém, pois não!
É do vento, é do sol, do mar, do céu!
É da madrugada.
É filha de Vénus, a estrela da aurora.
Tem dentro do peito uma estrela que irradia tanto amor quanto aquele que não tem, mas não lhe falta pois o inventa.
Vive num mundo só seu.
Quando o vento zumbe, voa com ele e ri, de braços abertos, como asas de borboleta.
Mal toca no chão com as pontas dos sapatinhos, tão leve vai!
O vento ergue-a nos braços, numa viagem de sopro, e depois pousa-a com um sussurro.
Gosta muito de viajar, Angelina!
Tem uma nave só dela, uma nuvem roxa que vagueia entre muitas, de cores diversas.
A sua nuvem, Celeste, é a chefe das pintoras do céu.
Diz às outras nuvens, cor-de-rosa, amarelas e cinzentas, onde devem colocar-se afim de desenhar no céu quanto se vê lá do alto.
Imitam as formas dos montes, das flores, dos animais e dos rios.
Montado o cenário, comanda as nuvens brancas como se fossem actrizes e abre reposteiros de raios de luz.
Às vezes abre furinhos nas gotas negras, quando estão prenhas de chuva. Depois sobrevoa os campos e bebe o vapor que se evola da terra e do mar.
Celeste e Angelina são íntimas amigas, isto é: Celeste é, oficialmente, a nave da menina, tendo por dever levá-la a passeio e a menina tem por dever amar a nuvem, que a leva ao colo, seja a que hora for, sobrevoando tudo: florestas, desertos e mares salpicados de ilhas.
Ornam-no como jóias os bancos de coral e os campos de algas.
Cantam as baleias e as sereias.
Celeste é roxa porque leva no bojo uma riqueza de água pura.
E Angelina aborrece-se porque anda sempre molhada: pesa-lhe o vestido, pinga-lhe o cabelo.
Em vão se vai queixando, mas Celeste responde que tem de ser assim mesmo, que é uma nuvem de chuva, portanto tem de levar água que mate a sede aos lugares onde não chove e da terra seca nada reverdesce e milhares de crianças sofrem de fome, exaustas do esforço de sobreviver, de crescer devagar, sem ter que as sustente.
Angelina, que vê com os olhos da alma, entende e cala.
Mas um dia... Um dia de primavera, sentiu uma vontade especial de secar ao sol, de dançar na brisa morna, de cantar, de subir como uma flor quando as pétalas se lhe abrem uma a uma.
Nesse dia Angelina sentiu fome de alegria!
E, chegando ao ouvido de Celeste, disse-lhe:
- Olha, hoje vou voar mais alto. Não te zangues comigo nem te esqueças de mim, mas hoje apetece-me voar numa nuvem cor-de-rosa. Quando matar a sede de alegria que me faz a primavera, volta a buscar-me!
Subirei de novo no teu colo, para que me leves para longe, aos lugares necessitados de chuva.
Deixa-me secar a roupa. Já nem me lembro de sentir os cabelos soltos, pois pingam de tão molhados.
A nuvem roxa acenou, não se sabe se sim se adeus.
O certo é que a nuvem rosa levou a menina a visitar as flores da primavera, muito felizes. Rindo, rebolavam nos prados, por entre as margaridas, as campainhas... mas ao abrirem as papoilas, que precisam de muito calor para ficarem rubras, a nuvem cor-de-rosa foi-se evaporando aos poucos, deixando de si uma gota brilhando em cada botão, para ajudar a colorir as pétalas.
E Angelina deu por si poisada no chão, seca, perdida, à procura da nuvem Celeste, que nunca pára.
Angelina está à janela olhando o céu despido, monótono de tão azul.
Lindo, mas sem pinturas coloridas, sem nuvens brancas bailando por entre raios de luz.
Os olhos da alma de Angelina estão tristes.
Fita o céu na esperança de que volte o tempo dos frutos e a água suba da terra.
E que a nuvem roxa se lembre que é um bojo de matar a sede, bebendo.
E se lembre que é a sua nave, recorde que ela existe e está sozinha, esperando com esperança, olhando para o céu atrás da janela.
- Será que Celeste a esqueceu?