domingo, setembro 18, 2005

Só estou para a Senhora Morte


Só estou para a Senhora Morte

A si, Senhora Morte, espero-a na minha quietude cansada.Espero-a coroada de tantas flores quantas as que na vida me negaram, ou roubaram.Espero-a envolta em trajes brancos, resplandecente, sorrindo ao fundo do túnel de fúlgido azul.Espero-a com o sorriso da verdade única, primeva, ao lançar-me nos seus braços confiantes, que me não renegarão, nem me julgarão demasiado humilde, nem simples-simplória para neles me acolher.Abraçar-me-á como a todos os ricos e prepotentes, como a todos os mandantes e assassinos, como a todos os crápulas e santos.Sei que está à espera, como eu estou... nem uma nem outra demasiado ansiosa, Mas tranquilamente, sabendo-nos fiéis.

Maria Petronilho

(replicando com carinho ao artigo de Raymundo Silveira "Digam que não estou")

Lisboa, 18/9/2005

sábado, setembro 10, 2005

Viagem



... Que não te falei de mim!....
Prefiro chegar, Assim, sorrateira, enquanto dormes.
Fico a olhar-te, observando o teu sossego.
Aproximo-me muito devagarinho, levanto a ponta do lençol.
Muito, muito ao de leve, toco os pêlos da tua barba. Beijo-te à flor do rosto, tomando cuidado para não te tocar os lábios.
Vagueia uma leve tristeza.
Algo na nossa amizade esfria e empalidece.
Sou movida adiante, à força de porquês.
Por defeito, começo por analisar os meus gestos, percorrendo um por um todos os momentos, na ordem inversa dos acontecimentos.
Não encontro culpas.
Dentro do silêncio, algo me escapa. Mas está hermeticamente fechado como uma pérola, um ovo. Teria de quebrá-los para ver o que têm dentro.
Não são meus, porém. Deposito-os na estante dos segredos.
Talvez se abram. Talvez amadureçam. Talvez despertem. Talvez se adensem.
Estão lá, eu estou aqui, de alma desnuda.
Já tenho direito a seguir todas as rotas da rosa-dos-ventos, sem dar explicações.
Já tenho audácia para seguir os caminhos do coração.
E fi-lo. Foi um salto no abismo: de mim para ti.
Enfrentei-me com o hábito que visto por dentro... e é tão difícil despi-lo!
Era feliz e sou feliz.
Se também assim te sentires, a fasquia com que meço a altura dos meus saltos no desconhecido subirá mais alto.
Sei que a minha jornada não é comum.
Desde o começo. Assim, parecer-te-ão inusitadas muitas coisas, comummente achadas entre as pessoas que conheces, como a elas pareceriam inusitados os meus caminhos.
Falo-te sem sombra alguma.
Com a tal sinceridade “excessiva” que é a minha marca...
Penumbra... a única penumbra bela é a que recobre os picos da tua ilha.... o resto é sombra.
Ofusca a clareza.
Da clareza flui a amizade, a poesia, o pensamento que discorre e não tem como avançar no escuro.
Amo o sol, o céu, o mar!
Amo ser brisa e onda, não cais nem âncora.
“Gostas de ser tratado como um Paxá”... a minha vontade foi de te embalar no colo.
Mas não ousei, fiz-me ainda mais pequena, encolhida no meu canto.
Para não te perturbar o sossego.
Sem peias te falei, o mesmo esperava de ti.
Sem mais... peias.
Qualquer de nós tem imaginação para fazermos de David e Rainha de Sabá...
No conto falo do encanto.
Talvez se a realidade tivesse imitado a ficção... talvez o esperasses, desejasses. E seria bom.
Faltou-me um levíssimo impulso.
Acaso te apercebeste?
Acalanto sonhos de voo, sim!
Gostava de deslizar pelo ar, suspensa de um balão. Imagino que sobrevoo o oito infinitamente azul da Lagoa das Sete Cidades.
Gostava de saltar de pára-quedas, com uns óculos que me permitissem manter os olhos abertos, como quando mergulhava entre as algas, em Sesimbra.
Ou nadava sobre miríades de peixes, finos e prateados como agulhas, reluzindo sob o meu corpo suspenso, no sol que mergulhava, no mar que me sustinha.
Eu sei que gosto de um homem quando o admiro.
“a ocasião faz o ladrão”... se assim é, que o ladrão seja tão competente que me arrebate!
Agora poiso de novo os lábios sobre o teu rosto, atenta às distâncias.
Deixo cair de novo a ponta do sono sobre as pálpebras que encerram o fulgor dos teus olhos adormecidos.
Cubro-te de bênçãos e, no mesmo silêncio em que cheguei, parto. Ficando sempre contigo.


Maria Petronilho



sábado, maio 14, 2005

Muito alcança quem não cansa!




Bem que Faustino saltitava, alternando as pernas!
Bem se apoiava na pontinha das garras!
Qual quê!
O sol ardia no céu, como se Deus nessa tarde tivesse acordado com vontade de sol frito em frigideira azul cobalto.
O pobre, de pupilas encolhidas num finíssimo losango, desatinava.
O sangue lá dentro fervia.
A cabeça em triângulo rodava... Rodava por dentro, de febre e fadiga e rodava por fora em busca de sombra.
Cada grão de areia era uma agulha em brasa que atravessava a escama e lhe feria a ténue membrana da pata.
Desatou numa correria, sem saber para onde ia... mas ao menos tentava remediar qualquer coisa de tanta que o incomodava.
Seguiu numa carreira, ziguezagueando como louco, pensando:
- Se me virem julgam que é da cerveja... Ah, uma cerveja gelada, borbulhante e loira a escorrer pela goela...!
Não pensem que um réptil tem miolos de galinha... ora essa!
Faustino era um poço de inteligência
- ...Ah, um poço!
Um poço de água rasa, fresquinha, muitos limos à tona; girinos na chocadeira...
Faustino muito corria, mas onde o que sonhava?!
Longe, rubro em meio ao amarelo fulgente do solo, vislumbrou um livro caído ao desleixo, a lombada soerguida, as páginas desalinhadas, como se as palavras coscuvilhassem entre elas.
- Ena! ... Uma sombra!
Faustino deslizou como um raio, de cabeça perdida, sem pensar que podia aninhar-se, ali escondida, uma armadilha... Pensava era na frescura, no alívio que teria, no descanso das pernas musculosas de tanto balanço que nem bailarino em palco!
Ele, um lagarto a bailar num palco!
... Riu-se muito o Faustino, que era pequeno e esguio, curioso e ladino... em todo o buraco metia o focinho!
Por isso já fora ao teatro, à ópera, à escola...
Pensam que um lagarto não pensa?! – Engano vosso!
Entretanto atingiu o refúgio... estendeu-se ao comprido... suspirou de alívio!
Ofegando, deixou que a temperatura se equilibrasse um pouco, depois virou-se e leu alto:
“O senhor presidente decretou que a açude será inaugurado pelas sete da tarde”.
Virando a cabeça para a sua sombra no chão, Faustino consultou o relógio
– ora essa! Seis e meia!
Ao longe, o ruído da banda feriu-lhe a sensibilidade das membranas auditivas.
As rodas dos carros todo o terreno abalaram o chão e Adolfo estremeceu
– Ai que o livro descai! ... Gritou para consigo mesmo.
Cada vez mais perto, o tumulto.
Já distinguia sobre as caixas abertas dos camiões, uns rolos imensos com mangueiras enroladas.
Os carros dos bombeiros, as limusinas com tejadilhos abertos, e humanos gordos, vermelhuscos, embonecados em trajes de brancos linhos.
Adolfo pensou que era hora de erguer as patas dianteiras ao céu:
– Adeus mundo, que tão breve foste e depois de me assares me comeste!
... mas pareceu-lhe fora do tempo verbal a oração.
– Espera lá! Eu posso estar tisnado mas assado... nem por isso!
– E quanto a ser comido... Deus me livre, que arrepio!

Lembrou-se logo da falecida que vira desaparecer esperneando nas mandíbulas de uma cobra safada... Que horror!
Deu um salto, e correu, correu, correu...
– Para onde irei? Aonde haverá um penhasco, uma árvore, aumm... pum!
– Um poste!... ainda discerniu, antes de cair de pantanas.
– Ai! Ui! ... Ai a minha cabecinha, como dói!
Mas o barulho alto lembrou-o da inundação que em breve se desataria daquela embrulhada toda...
– Pernas, para que vos quero?!
Tomou balanço, abraçou o mais que pôde o largo tronco e subiu, subiu, subiu subiu....
Viu as horas, pelo relógio da sombra... Da sombra do poste do chão, ora essa... Não estão pensando que o Faustino ia despencar do poste só para saber o tempo, pois não?!
Soou algo como chuuuuuuaaaaaaaaaaaaaaaaaa
Os tambores rufaram:
– Zabum! Zabum! Zabum!
Os humanos alinhados e de branco subiram ao palco armado na caixa de outro camião... e o falatório enjoativo, monótono, as vénias à direita e à esquerda...
Que nem na torreira suas excelências esqueciam as “boas maneiras”... Faustino fez uma careta.
A água entretanto jorrava...
Lá de cima, Faustino alcançou então a descoberta:
O seu grande deserto, onde se esfalfava e quase se escalfava não passava de uma regueira aberta entre dois campos de soja.
– Ora esta! Bendita a hora em meti o focinho na escola!
... E então, só então, agradeceu lá do alto ao Altíssimo a sorte que tivera!


Maria Petronilho,
14/5/2005

segunda-feira, maio 09, 2005

DEUS



EU TENHO DE DEUS UMA IDEIA: UM CAMINHO PARA A PERFEIÇÃO, PARA A PAZ, PARA O AMOR ENTRE TODAS AS COISAS: ENTRE OS HOMENS E TUDO QUANTO EXISTE: POR ISSO TODO O SOFRIMENTO ME DÓI TANTO...

TODO O SOFRIMENTO ME PERTENCE, PORQUE EU FAÇO PARTE DO TODO E O TODO FAZ PARTE DE MIM: O TODO É DEUS!




Maria Petronilho

... Se a Poesia vem...


Há dias em que uma súbita rosa desabrocha na palma fria da mão.
Olhamos e vemos que íamos distraídos vida fora pensando em coisas fúteis, relegando no inconsciente o que na verdade interessa:
O amor e o sonho.
... E se a poesia vem com tão belo traje ao nosso encontro, torna-se límpido rio em que nos banhamos ... renovamos a alma!
Hoje esse milagre aconteceu.
Envolveu-me em raios de sol num dia de sombra... Fez-me feliz!

Maria Petronilho

quarta-feira, janeiro 19, 2005

A ROSA E O SER


A rosa abriu os olhos aos primeiros raios de sol.
Espreguiçou as pétalas e bebeu gotas de orvalho.
O ser pequenino acordou também e nele a esperança de ver o botão cerrado que cuidava. Correu ao jardim e sorriu de alegria ao ver que o sonho acontecera.
Estendeu as mãos pequeninas e, docemente, aconchegou
no côncavo as pétalas frescas e macias.
- Como é bom que tenhas nascido... murmurou. E ia mergulhar o rosto
na corola, para beijá-la e aspirar-lhe o perfume, quando uma vozinha murmurou:
- Tem cuidado!
O ser pequenino assustou-se, mas depois pensou ser a voz da sua imaginação.
Num ímpeto apaixonado, abraçou a rosa.
- Ai ! - Gritaram um e outro.
Um espinho acerado, perfurara a inocência do seu coração.
As pétalas ainda meio descerradas ficaram machucadas, e foram caindo.
Mas do âmago da rosa uma aura doirada se soltou e a ferida cobriu.
A gota de sangue, nele se envolvendo, na terra se embebeu.
O ser pequenino, elevou-se e pousou no coração da flor o seu coração ferido.
Reflectiram juntos acerca da angústia de amar-se demasiado.
A rosa sentiu o calor de uma lágrima e murmurou:
- Não chores, porque nem me destruíste nem o teu sangue se derramou em vão...
o pólen de soltaste, não se perdeu, fecundou o gineceu que esperava este momento. E o teu sangue derramado alimentará a nova roseira por que vim.
Juntos seremos eternos, pois o amor além da brevidade nos guiou.


Maria Petronilho

Menina e o Vento





Não me perguntem porque terei abandonado a rua que sempre pisava e me entranhei nos terrenos baldios cheios de latas e poças, sacos de plástico em tiras como bandeiras de nações despedaçadas.

Andava a custo, por causa dos obstáculos e dos cheiros nauseabundos.

Impelia-me uma espécie de ânsia que dentro do peito gritava, uma voz que ciciava ao meu ouvido.

- Anda! Vem cavalgar comigo! – Voz nítida, concreta, próxima, feita de sons cujas notas soavam fora e dentro da minha cabeça.

Olhei em redor, mas nada vi de estranho e no horizonte, ninguém!

- Anda! Vem cavalgar comigo!

Como estava sozinha, arrisquei:

- Mas quem és tu?! E onde estás?

- Sou o Vento, bradou ele numa voz muito alta.

Dei um pulo:

- Ora essa! O Vento chia, não fala, repliquei, mas sem convicção pois nunca tinha falado com o vento, apenas sabia do som que fazia passando e era inusitado que respondesse, que dialogasse... fosse em que língua fosse.

- O Vento tem muitas vozes, disse-me, como se me adivinhasse... na verdade a sua voz soava dentro e fora de mim, em uníssono.

- Dizem que o Vento canta nas folhas, nos pingos de água... atrevi-me a dizer.

- Pois canta! E assobia nos caules de erva.

- Está bem, mas nunca se disse que o Vento falasse!

- No entanto estás a falar comigo, disse ele rindo.

Eu também ri, porque o riso contagia mesmo se não sabemos do que rimos.

Nós ríamos sabendo que era de nós mesmos e de nos estarmos descobrindo.

- Porque me convidaste a cavalgar contigo se não te vejo, perguntei?

De repente as minhas saias rodopiaram, o meu cabelo levantou-se e vi que o chão ia ficando cada vez mais longe.

- Sentes-me, apesar de não me veres?

- Sinto, respondi eu incrédula, mas sem medo nenhum como se me pegassem ao colo.

À volta, tudo sereno. Parecia que o vento resolvera marcar encontro só comigo.

- E porque me levantaste do chão?

- Porque te convidei a viajar comigo e não me acreditaste!

- Como havia de acreditar-te?! Não te vejo, não tens dorso, já foi difícil perceber que falavas quanto mais que me convidavas para um passeio!

- Conheces-me desde sempre e ousas dizer que sou mentiroso?! Muitas vezes te convidei para passeios mas tu parecias nem dar conta, só olhavas o lugar onde punhas os pés!

- E agora vejo o que pisava, confessei envergonhada... mas onde me levas?

- Aonde sonhares ir!

- Como hei-de sonhar, se não durmo?!

- Não é preciso dormir para sonhar! Os melhores sonhos são os da vigília, pois trazem aos teus olhos o que mais anseias mas não te atrevias a olhar. Os sonhos estão sempre contigo.

Fiquei um pouco a pensar nisto. Senti um novelo de todas as cores desenrolar-se diante de mim e disse-lhe:

- São muitos sonhos e não sei qual escolha!

- Escuta-os, também têm voz!

- Hummm... pois será, mas diz-me: vou vaguear por aí como bruxa sem vassoura?

Ele riu muito alto

- És mesmo distraída! Porque não te aconchegas nas minhas asas e passaremos por onde quisermos, pois se me apetece sou brisa; se me aborreço, tempestade e se os meus companheiros me desafiam quando brincamos nas escadarias do céu, desato a correr e sou furacão...

- Isso é muito mau porque partes tudo, já viste?!

- Vejo depois, quando olho para trás... mas como querias que me divertisse se desde antes do tempo rodopio à volta da Terra, e cada vez me dão menos importância?!

- E que acontecerá quando chegar o fim deste meu sonho?

- Acharás outro e depois outro e outro.... quando te acostumares a viajar comigo, verás que não existe limite algum, pois o teu pensamento não tem princípio nem fim... como eu não tenho!

- Já sei aonde quero ir.... mas é muito longe, disse eu baixinho.

- Não existe longe para o vento, que te disse eu?!

E o vento ia ficar zangado mas olhou-me por cima do ombro, viu-me os olhos embaciados e eu já agarrada com confiança nas suas penas transparentes, determinada...

Acalmando, perguntou

- Desculpa, sou impetuoso... onde queres ir primeiro?

- .... a um lugar que existiu há muito, muito tempo...

- O Vento não conhece o tempo, gritou!

- Ao colo de minha mãe!



Maria Petronilho

terça-feira, janeiro 18, 2005

Estava Óscar em sossego...


O Óscar, um tipo calmo, via o tempo passar tranquilo.
Sozinhez de quando em vez, sim, mas quem a não tem, digam lá?!
Chegava na esquina, puxava conversa, dormia uma sesta, e pensava que bem lhesabia a liberdade que tinha.
Com isso se contentava.
Sentava-se junto à janela, às tardes, a ver quem passava.
Conhecia a D. Ana da Praça, o Zé Joaquim da Taberna, o Manuel da Hortaliça, aJoana da Mercearia.
... Mas um dia prendeu-se na saia dela!
Na saia e na bundinha, que ao andar rebolava,
E no pedaço de perna, torneada que aparecia, depois da bainha da saia, atésumir na chinela.
Um dia e outro ainda, quase sempre à mesma hora, lá ia a moça e o Óscar marcavaponto, no peitoril da janela.
Subiu os olhos à cinta, subiu pelas costas acima, e demorou-se na nuca.
Santo Deus, que coisa linda!
Ansiava ver-lhe a cara.
Passou a ir ao quiosque, a comprar uma revista, ficando a lê-la na rua.
A lê-la!
Fingia! E esperava. Da primeira vez que viu aquele palminho de cara, o Óscaraté tremeu, ficou corado e de olho arregalado.
Ai minha nossa senhora, tinha de saber quem era a moça morena que há tantotempo fazia, que andava de olho nela!
Virou-se num só impulso, como se fosse segui-la, esquecido de onde estava, docavalheiro que era... sentindo subir-lhe um viço, um arrepio, que era?!
De repente apercebeu-se, puxou o lenço do bolso e assou-se com estrondo,tentando disfarçar o embaraço com o alarido.
A vizinhança olhou e, à socapa, sorriu.
E ele, de novo composto, foi-se embora rua abaixo, enfiou-se porta dentro, foitomar um duche fresco.
Naquela altura, passou. Passou-lhe uma coisa, veio-lhe outra: um catarro mesmoa sério, que o manteve no recato por três dias, de resguardo.
Ao quarto, saiu do quarto e voltou para a janela, à espera dela.
E ela passou, donairosa, abanando a saia, rebolando a anca, os ombros a dar adar, ai o Óscar, que arrepios sentia!
Se era febre ou o contrário, quem saberia?!
Voltou a comprar revistas, às vezes repetidas, a ser fiel cliente do Janeca doQuiosque e foi metendo conversa.
Uma coisa leva a outra, e lá descobriu que a moça tinha por nome Jacinta.
Jacinta... ai que flor de moça, pensava!
Ja-cinta; Já-sinta... já sentia o cheiro dela, mesmo ao longe, da janela,quando passava na rua...
Mais adiante não ia. Isto é: querer, quereria, pior que não se atrevia a pisar ao tempo que ela as pedrinhas da calçada.
De noite é que eram elas!
O pobre já tinha olheiras, sonhava, que não dormia.
Sonhava com tantas coisas que nem posso descrevê-las!
Um dia a linda moça não é que lhe bate à porta?!
Truz-truz-truz!
- Quem vem lá? – Perguntou ele, arrepiado que nem um gato.
- Sou a Jacinta, senhor Óscar, faça favor de chegar à janela, que querodizer-lhe uma coisa!
Ai quer-me dizer uma coisa... pensou o Óscar e ia-lhe dando outra, ali mesmo,enquanto abria a vidraça.
- Ora viva, menina Jacinta, que já sei a sua graça! Que me quer a senhorita? Etodo ele se curvava, as mãos convulsas agarradas ao peitoril, os nós dos dedosbrancos, com medo de cair, com medo de saltar, de alçar a perna esquecendo-seda altura... não era muita, mas para quem o único desporto era comprarrevistas, a queda era certa.
- Sabe, senhor Óscar?! Sei que o senhor comprou um folheto de modas que eumuito procuro e era o último que o Janeca do Quiosque lá tinha... tinha ofeitio de uma blusa com folho na golinha... será que o senhor que me oempresta?
- Ó menina Jacinta, até lha faço, ora essa!
Entre, entre, faça obséquio! Não repare na modéstia da casa, já vê, sou umhomem solteiro...
E tremia-lhe a mão no trinco, afastava-se para o lado só uma fresta, convidandoa moça a entrar por ela... e a moça, que não se ralava com frestas, entrava, umpouquinho à força, roçando o peito de repente atrevido do Óscar, que escutava ocoração lá dentro, ecoando em toda a casa
Tum-tum-tum-tum!
- A menina sente-se na sala, que eu vou buscar a revista.
- Ora muito agradecida! – Retorquiu ela – e assomou-se à janela.
- Com que então é daqui que tu me comes com os olhos todas as tardes, e nem ostens para me dizeres bons-dias!
Ele apareceu com folhas várias, dispersas, nas mãos aos trémulas.
- Veja! Veja à sua vontade! Escolha qual é a tal que procura,
ia dizendo, porque não se achava, perdido de todo, numa hesitação desvairada,com vontade de ser folha desfolhada.
- E já escolheu o tecido, a menina?!
- Porque pergunta? Sua mãe é costureira?
- Eu vivo sozinho, menina. É que ia buscar a fita métrica, tirava-se o molde àmedida...
- Está bem lembrado, sim senhor! Vá buscar a fita, vá lá, senhor Óscar, e tenhacuidado não caia, olhe que tropeça!
Tropeçava. Tropeçava em tudo: na esquina da mesa, na ponta do tapete, nabiqueira da bota, malvada! Até a bota conspirava contra ele nesta hora, quemdiria!
A fita métrica... ora onde teria ele uma bendita fita métrica, que se enrolasseà volta de uma cintura?!
Tinha uma de alumínio... serviria?!
Revirou a caixa das ferramentas e veio de lá com uma fita extensível.
- Ó menina Jacinta, acha que presta, esta fita?
Ora se me permite... e espero que me permita!
- Permito, sussurrou ela, levantando ambos os braços: Ora meça!
- Ora meça... Homessa, se meço!
- Meço e não só!
- Meço, teço, ai que desta é que me atiro!
E foi-se chegando, chegando... ela esperando, esperando... ah como é infinitoàs vezes o tempo...
Mas chega sempre o tempo de dar o primeiro beijo!


Maria Petronilho

A gota de orvalho e o coelhinho Pimpão


O dia amanheceu cheio de sol.
De noite, o coelhinho Pimpão deliciara-se escutando a chuva a bailar no ar e a dançar sapateado no chão.
Pimpão adormeceu embalado pela música do céu.
A noite passou e o vendaval seguiu...
O dia acordou azul e sereno, resplandecente de sol.
Pimpão, olhou pela janela e sorriu
- Hummmm, exclamou sorrindo, espreguiçando muito as patinhas, quase tocando o topo da toca.
Saiu abanando a cauda e foi ter com a família, que preparava o pequeno-almoço na cozinha.
Comeu as ervinhas frescas que a mamã lhe serviu e depois saiu correndo, para brincar no ar, saltitar nas poças da chuva caída na noite anterior, mordiscar as pétalas de flor tenrinhas, que tinham desabrochado nessa mesma manhã.
No alto viu um girassol novinho em folha, olhando deslumbrado a grande e linda estrela que luzia no alto.
Era tão lindo!
Amarelinho, viçoso, as pétalas reflectindo a luz.
Pimpão quis chegar mais perto e sentir o perfume da flor.
Colocou-se sobre as patitas traseiras, estendeu a mãozinha macia e puxou para si o caule da planta,
Mas ai!
Uma gota fria, muito fria, escorregou lá de cima e caiu certeira sobre o seu nariz.
Pimpão levou um susto, sentiu um forte arrepio e correu, correu, correu...
Entrou assarapantado na toca e refugiou-se junto à bola de pelo macio que era o seu pai descansando.
- Papá, papá, está chovendo muito – gritou o coelhinho em alvoroço.
O pai voltou a focinho sorridente para o filho.
- Confusão tua, Pimpão! Choveu foi durante a noite. E também fez frio.
Mas assim que o sol nasceu, a chuva seguiu o seu caminho no céu e as gotinhas que ficaram reuniram-se sobre as pétalas e flores, em perolazinhas de orvalho.
- Mas pai! Uma gota de chuva molhou e esfriou o meu narizinho! Não estou dizendo mentira nenhuma vem ver!
- Eu sei o que acoteceu mesmo sem ir ver, porque quando eu era um láparo como tu também corria pelo campo de manhã e apanhava gotas de orvalho que caíam das flores que eu espreitava e caíam no meu nariz, pregando-me sustos como o que tiveste agora.
- Então não foi um pedaço de chuva que se atrasou e choveu sobre o meu narizinho, papá?
- Não, tolinho, não foi um pedaço de chuva... As gotas de chuva são irmãs muito amigas e vão juntinhas para todo o lado embaladas em nuvens de muitas cores. O que te caiu no nariz foi uma inofensiva gotinha de orvalho que o sol deixou sobre a flor, afim de a refrescar.
Caiu sobre ti, não está lá mais. Queres ir verificar?
Papai coelho queria que seu filho crescesse sem medo, embora no mundo dos coelhos seja necessário ser-se muito cuidadoso.
Pimpão respirou fundo, bateu com o pé no chão, encheu o peito de ar fresco e declarou:
- Vou ver de novo, papá! Verificarei com os meus próprios olhos tudo quanto me explicaste.
E saiu correndo, aprendendo como é bom viver escutando a chuva, brincando ao ar livre, aspirando o perfume das flores desabrochadas ao sol da manhã

E contar com o conforto de pais que sossegam os sustos da gente e nos explicam a arte de crescer com coragem e sabedoria.


Maria Petronilho

Quilos de Adrenalina

"Quilos de Adrenalina"



O Fonseca, bigodudo, tesudo, grisalho, encarrapitado no alto da cadeira,
meditava.
Acontecia-lhe de quando em quando, essa coisa de falar consigo mesmo, sobretudo
desde que via a sua vidinha ir-se por água abaixo....
- Ó diacho, dizia consigo mesmo, tenho de sair disto!
Mas sair disto era cada vez mais um caso bicudo.
- Arre, que parece que ando embruxado...
E cofiava o bigode farto, para distrair olhares das entradas, que lhe mostravam
a testa alta e, em baixo, da incipiente papada.
Para a idade que tinha, não estava nada mal o Fonseca!
Todas as manhãs se examinava escrupulosamente ao espelho, quando metia o pé na
banheira, para o duche ritual e a seguir, já fresco, ao fazer (aliás desfazer)
a barba.
Nu, pois claro.
O espelho não era qualquer de armário, era uma parede inteira da casa de banho.

O Fonseca virava-se e revirava-se:
Era a barriga, era a gordurinha sobre a anca... nada mal!
- Nada mal, nada mal, nada mal...
Cantarolava, enquanto se escanhoava.
Mas sentia-se vazio.
Nos últimos tempos, além da decadência da idade, da crise económica que também
o afectava, sentia uma inexplicável angústia, um nó na garganta...
- Que coisa, não posso andar a vida inteira na cepa torta!
Acordar não era fácil: revirava-se na cama e apalpava, apalpava... o lençol, a
almofada... melhor dizendo:
Tomava real consciência da sua vida solitária
- raio de vida!,
Eram as suas primeiras palavras.
Tomava o cafézinho, e o bolo de arroz matinal, na confeitaria da esquina.
Tudo apressado:
- Ó Zé, vê lá se a bica sai!
- E o empregado olheirento, coitado, nem sabia a quantas andava.
Tudo desabava, essa é que era essa.
- O mundo não é dos inteligentes, é dos espertos...
Pensava o Fonseca, enquanto lançava olhares de carneiro mal morto sobre a borda
da chávena.
- E rodava os olhinhos agudos pela sala apinhada.
O costume: pelintras de merda!

Uma dama de lilás entrara, no entanto, em cena.
Pedia “por favor” ao empregado, com pano de cozinha pendurado do avental;
pegava na asa da xícara de dedo mínimo espetado; limpava cuidadosamente os
lábios à pontinha do guardanapo de papel, com muito cuidado, fazendo boquinhas
para não esborratar o baton cor-de-rosa
- Tenho de conhecê-la! Homessa!
Deve ser mulher de massa... de alguma, pelo menos, da que me falta!

E lá conseguiu arranjar pretexto, que palavra puxa palavra...
Era uma dama de meia idade, ainda boazona, solitária, que vivia de uma pensão,
de uma renda... ao certo, ao certo, não sabia.
Mas que parecia bem de vida, parecia.

Um dia, pensou num negócio, enquanto olhava distraídamente o noticiário
- Vou vender adrenalina!
E disse-lho a ela, já pegando-lhe familiarmente no cotovelo, em ar de
confidência:
- Olha, sabes o que é que está a dar? Adrenalina!
- Adrenalina?! - Espantou-se ela, pensando que fosse alguma doença rara.
- Pois, mulher!,
Então tu andas ao de cimo da terra e não vês?!
Olha-me aqueles palermas a atirem-se de pontes e abismos, atados que nem
palaios, de cabeça para baixo... pagam fortunas, o que pensas?!
Ia fazendo gestos, encenava, arrebatava-se.
- E sabes para quê?
Ela olhava-o como se hipnotizada e ia acenando com a cabeça, ora para cima ora
para baixo...
- Ai, ele é uma grande cabeça!
– Ai as coisas que ele pensa!
Pelo rabinho do olho malandro, ele palrava e observava o efeito.
Sinaizinhos piscavam num lugar qualquer, lá num recôndito entre a
sub-consciência e o aflorar da consciência.
Luzes amarelas: “cuidado Fonseca!”
Luzes vermelhas: “olha que deitas tudo a perder, rapaz!"
Luzes verdes: “avança, avança, que ela está de maré!”
E ele avançava...
Avançava um passo, a metê-la num canto, e avançava um sonho, murmurando:
- Olha lá! E se a gente alugasse uma avioneta e lhes vendesse adrenalina?

Pronto, os dados estavam lançados!
Ela mirava-o de boca aberta:
- Mas ó Fonseca, sussurrou, quem é que ia comprar uma doença?!
Ele riu à gargalhada:
- Quem beneficiasse do Seguro, ora essa!
Ela percebeu a brincadeira e aligeirou a pressão na moleirinha.
Ele avançou de novo:
Explicou-lhe que adrenalina era uma espécie de bebedeira sem ter bebido, o que
levou horas em exposições e contradições – arre porra!
- Mas o que é tens na ideia, homem, diz de uma vez por todas!
- Então a gente juntava os trocos e alugava uma avioneta... e depois
vende-se-lhes adrenalina aos quilos!
- Mas como assim, se é uma bebedeira sem bebida?!
- Arre que é estúpida a mulher!, impacientava-se o Fonseca, subindo o tom
vários decibéis.
- Ó mulher, então não percebes?!
- A gente sobe... sobe... e eles atiram-se lá do cimo, atados a fitas de
nailon!

Quanto mais alto estiverem mais bêbados ficam!
- Ai que cabecinha, Fonseca, que cabecinha abençoada que tu tens, homem!
E afagava-lhe a nuca com a direita e a cabecinha com a destra...


Maria Petronilho

Série Contos de Fadas - A verdadeira história do principe-sapo no séc XXI


Kátia Alexandra Sofia da Silva retirou sem sombra de pejo aparte de cima do
seu biquini e esparramou-se na relva, de modo a ser atingida pelos
respingos, já que era tarde tardezinha e o Manel Jaquim jardineiro, regava
o toro

de uma ameixoeira, que o empresário da construção civil, Silva pai, não era
de desperdiçar terreno nem despesas com coisas que não dessem fruta ou, ao
menos, umas hortaliças.

O Caldo verde da D. Birgolina tinha fama, feito com as tenras couves que
adornavam as alamedas.

Boné para a nuca, testa meio calva meio grisalha reflectindo o fulgor do sol que declinava,
o Manel Jaquim, declinado dos ossos e de outras miudezas de que a gente não
fala, nem olhou para a moça, que se virava e revirava na toalha turca dum
lado e do outro aveludada.

Olhava enfastiada os restos da revista Caras que folheara,molhando a ponta
do dedo mindinho na ponta da língua, ficando as páginas coladas com uma
mistura de saliva e cola... nada a fazer senão mirá-las,remirá-las, e
arrancá-las, lançando-as por cima do ombro, que a brisa se encarregava de
levá-las a passeio para onde não a incomodassem..

Por isso, aproveitavam a frescura das águas do tanque a que chamavam
Piscina, quando se reuniam lá em casa as Tias,

modelos, príncipes artistas... vogavam deliciados, que estavam habituados a
frescuras.

Ela, Kátia Alexandra Sofia, à água... só vê-la!

Ou senti-la morninha, debaixo do chuveiro de uma das três casas de banho da moradia
recoberta de azulejos.

Os banhos de sol junto da Piscina eram pretexto para se apresentar bronzeada
nas festas, dizendo que acabara de chegar de férias nas Caraíbas.

Rebolava-se a inconsciente adolescente, impaciente vá-se lá saber porquê, os
olhos postos no ondear das páginas...

Eis senão quando algo no meio do tanque, de fundo pintado de azul turquesa,
começa a emergir, a emergir, a emergir... e os olhos castanhos,delineados,
de Kátia a aumentar, a aumentar, a aumentar...

Sacudiu a loiríssima cabeleira escadeada por três vezes ebenzeu-se

- Ai! Então não querem lá ver que o sol me fez mal?!

Da água, uma cabeça, depois uns ombros musculosos, um tronco de atleta,
abdominais firmes, foram surgindo... a Katia ia-se soerguendo... seguindo o
lento caminhar do jovem que passo a passo se encaminhava para o bordo, o
agarrava com as mãos poderosas e se içava para fora de água.

Pisou a relva.

Kátia olhava hipnotizada.

O Manel Jaquim, depois interrogado, jura ter visto um sapo,apenas um sapo.

- Juro pela minha mãezinha que Deus lá tem, ó Patroa!

E cuspia nas palmas nas mãos, que limpova aos fundilhos das calças de
bombazina.

... Mas a Kátia viu um jovem aproximar-se, inclinar-se suavemente sobre ela,
olhando-a bem no fundo nos olhos, a boca em botão de rosa,pedindo um beijo.

Em pasmo, retroflectida, a cabeça em pé-de-vento, Kátia Alexandra Sofia da
Silva, esticou-se toda, seios à vela, que importava... nem se lembrava quem
era nem onde estava!...A proximidade foi um filme em câmara lenta... um
momento mágico, um parar do tempo

- Ai que nojo!

Num repente, agarrou a toalha meio-de-veludo e esfregou, obaton dos lábios,
repugnada.

- roaaac - roaaac - roaaac ...



Tanto um quanto outro desataram aos saltos, desatinados.

A moçoila desatou aos berros.

O Manel Jaquim deitou a mangueira ao chão e desatou a fugir caminho abaixo,
metendo a mão no bolso traseiro das calças, atropelando as couves, sem
atinar com o telemóvel muito menos com o número do serviço nacional de
emergências.

De dentro, a D. Birgolina acudiu de facalhão em punho, que estava a cortar o
chouriço.

Passada hora e meia vieram os polícias, os bombeiros a protecção civil.

Postados em fila no sofá da sala, foram interrogados por repórteres
cépticos, os únicos que colocaram algumas dúvidas na veracidade dos
factos narrados.

A história foi notícia de abertura no Notiário da Noite do canal oficial da
TV.

Uma fotografia da bela desnuda saiu nas páginas centrais da revista Caras.

O Silva, todo engravatado, compareceu nos estúdios ao lado da filhinha, nas
entrevistas.

Foi abordado por uns senhores graúdos do mundo do futebol,discretos e
circunspectos porque sim mais que também, pois lhes sobraram uns materiais
da construção dos estádios e que poderiam fazer... o que fizeram.

Venderam a moradia e compraram um palacete na Linha do Estoril,com piscina
verdadeira, com filtros e tudo, onde se dão as melhores festas da Socialite,
com champanhe e pastelinhos de bacalhau.

Nadam em euros e dão grandes sardinhadas aos domingos.



... E agora, já acreditas em contos de fadas?


Maria Petronilho

O Pisco e o Figo



"O Pisco e o Figo"


Segurei-me com toda a força nas minhas oito garras tremendo.

Do cimo, as enormes folhas agitavam-se rindo:
- Vem, Pisco, pica se te atreves!E abriam nesgas de brilhos azuis que me ofuscavam.
Os pomos pendentes e maduros convidavam tremelicando a gota de mel dos umbigos:
- Vem, Pisco, pica se te atreves!
As penas represas, eriçaram-se-me.
As meninas dos olhos abstraíram-se de tudo.
Num instante imenso transformei-me num projéctil movido pela ânsia... até que senti a doçura rosada do figo desfazer-se ao mergulhar o bico

De pálpebras cerradas, sorvi longamente o dulcíssimo frenesim do acometimento.


Maria Petronilho

segunda-feira, maio 10, 2004


Voo!
Como um pássaro que sobe cada vez mais alto e vê cada vez mais longe.
Sou da geração de mudança em que, na negrura mais funda lutou, contra tantos reveses, riscos, infortúnios... por um dealbar que hoje se comemora:
Passámos da mais antiga Ditadura da Europa, à Democracia.
Fomos o último vergonhoso Império que nos consumia enquanto Povo mas cujo manto inglório e ruço atirámos ao chão!
Como não falar da História em que participei, nesta data em que se comemoram trinta anos de Liberdade no meu país?!
Saudades de outrora... não tenho.
Vivo de esperança e de luta.


Maria Petronilho

terça-feira, abril 06, 2004


Natália Correia - à frente do seu tempo...





Nasceu a 13 de Setembro de 1913, saiu da ingrata vida a 16 de Março de 1993

“Será preciso passar uma década sobre a minha morte para começarem a compreender o que escrevi.
Sei-o porque o sinto.
E vai ser a partir dos Açores que isso acontecerá”

Natália Correia nasceu adiantada no tempo, para o anunciar, antecipar.
Poetisa, dramaturga, romancista,, ensaísta, deputada, editora, pintora, tradutora, marcou a vida portuguesa, abalou os pés de barro dos deuses que atabafavam a cultura portuguesa.
Concebia, à semelhança de Teixeira de Pascoaes, “ a poesia como uma profecia” e o “poeta como um profeta”
Na sua obra, celebra o ser humano como “andrógino” (recordemos o vocábulo que inventou, “Mátria”); o ser completo; uno e plural.
O Desejado, o que contém a esperança e a resistência.
Pedro e Inês, símbolos da paixão, da volúpia pela morte.
Da Ilha, espaço do sagrado, da esfinge, da iniciação.
Bate-se pela recuperação do excelso, do politeísmo, do feminismo, do barroco, do diferente e pelo repúdio da crucificação, da massificação, do descontrolo demográfico... numa terra onde se morria de fome.

“Como atingir a paz com os olhos postos num só deus, se as guerras são fornecidas pela nossa fé na vitória sobre a fé dos outros?”, interrogava, interrogava-se.

A participação política foi-lhe, desde muito cedo, uma constante.
Introduzida nos círculos da Oposição (fase em que foi jornalista), depressa se destacou na luta contra a Ditadura, apoiando as campanhas de Norton de Matos e de Humberto Delgado.
Após a Revolução dos Cravos, aceita ser deputada independente.

“Fui deputada porque me pediram para introduzir o discurso cultural no Parlamento”

Utilizando como ninguém a riquíssima tradição cultural de escárnio e maldizer da nossa poesia.

As causas, as pessoas do coração e do sonho, da fé, tinham-na do seu lado; as causas, as pessoas da manipulação, do utilitarismo, da serventia, conheciam-lhe a cólera, o chiste, a indignação... que fazia penetrar com mestria e elegância
.
“Não me mato
Antes me zango
Até ficar um cato
Quem me tocar, maldito
Que se pique”

Glória te seja dada, Natália Correia, agora e sempre... enfim!


Maria Petronilho

Jacques BREL (1929-1978)





JACQUES BRELL?
Un cri.
UM GRITO.
Une déchirure.
ALGO QUE SE RASGA.
Une désespérance optimiste.
UMA DESESPERANÇA OPTIMISTA.
Une fraternité douloureuse.
UMA FRATERNIDADE DOLOROSA.
Un écorché vif.
UM APRISIONADO VIVO
Un rebelle tendre .
UM REBELDE TERNO








Né à Bruxelles dans une famille d'industriels, Jacques Brel
NASCIDO EM BRUXELAS NUMA FAMÍLIA DE INDUSTRIAIS, JACQUES BRELL
s'intéresse très tôt à la chanson et vient à
INTERESSA-SE MUITO CEDO PELA CANÇÃO E VAI PARA PARIS EM 1953.
Paris en 1953. Il débute au théâtre des Trois-Baudets,
ESTREIA-SE NO TEATRO TROIS-BAUDETS.
enregistre quelques disques, mais reste pratiquement inconnu
GRAVA ALGUNS DISCOS, MAS CONTINUA PRÁTICAMENTE DESCONHECIDO
jusqu'en 1957.
ATÉ 1957.
Le succès de Quand on n'a que l'amour lui assure alors un certain
O SUCESSO DE QUANDO NÃO SE TEM SENÃO UM AMOR ASSEGURA-LHE ENTÃO UM CERTO
public, d'une coloration catholique qui se retrouve dans les grandes
PÚBLICO, DE UMA COLORAÇÃO CATÓLICA QUE SE ENCONTRA NAS GRANDES
tendances de ses chansons : l'amitié, la fraternité...
TENDÊNCIAS DAS SUAS CANÇÕES: A AMIZADE, A FRATERNIDADE...
Il va peu à peu prendre ses distances par rapport à
VAI AOS POUCOS MARCANDO AS SUAS DISTÂNCIAS EM RELAÇÃO
cette inspiration première;
A ESTA PRIMEIRA INSPIRAÇÃO;
s'il reste fidèle au thème de l'amitié (Jef), il
SE CONTINUA FIEL AO TEMA DA AMIZADE (JEF),
passe lentement d'un amour idéalisé à une solide misogynie
PASSA LENTAMENTE DE UM AMOR IDEALIZADO A UMA SÓLIDA MISOGENIA
(Les Biches), du déisme à l'anticléricalisme
(AS BICHAS), DO DEÍSMO AO ANTI CLERICALISMO
(Les Bigotes, À mon dernier repas) et d'une certaine
(AS HÓSTIAS, NA MINHA ÚLTIMA REFEIÇÃO) E DE UMA CERTA
à un anticonformisme qui ira croissant (Les
MORDACIDADE A UM ANTI CONFORMISMO QUE IRÁ CRESCENDO
Bourgeois, Le Moribond). De grands succès jalonnent sa
(OS BURGUESES, O MORIBUNDO). GRANDES SUCESSOS COROAM A SUA CARREIRA:
carrière : La Valse à mille temps (1959), Les Bourgeois
A VALSA A MIL TEMPOS (1959), OS BURGUESES (1961),

(1961), Amsterdam (1965).
AMESTERDAM (1965).


Son oeuvre, qui ne se distingue pas particulièrement
A SUA OBRA NÃO SE DESTINGUE PARTICULARMENTE PELA BUSCA MELÓDICA,
par la recherche mélodique, brille surtout par une science
BRILHA SOBRETUDO PELA CIÊNCIA DO TEXTO E DO JOGO DE PALAVRAS
du texte et du jeu de mots qui fonctionne essentiellement
QUE FUNCIONA ESSENCIALMENTE
sur le principe des oppositions binaires
SOBRE O PRINCÍPIO DAS OPOSIÇÕES BINÁRIAS
(le noir et le blanc, les paires minimales approximatives)
(O NEGRO E O BRANCO, OS PARES MINIMALISTAS APROXIMATIVOS)
et sur une certaine prédilection pour le néologisme.
E SOBRE UMA CERTA PREDILECÇÃO PELO NEOLOGISMO.
Mais c'est sur scène que Brel frappe surtout, apportant
MAS É EM CENA QUE BRELL ARREBATA SOBRETUDO, TRAZENDO
à ses chansons une nouvelle dimension,
ÀS SUAS CANÇÕES UMA NOVA DIMENSÃO,
gestuelle, grâce à un travail d'expression très
GESTUAL, GRAÇAS A UM TRABALHO DE EXPRESSÃO
minutieusement préparé.
MINUCIOSAMENTE PREPARADO.


Jacques Brel a quitté la scène en 1967, après avoir
jACQUES BRELL DEIXOU A CENA EM 1967, DEPOIS DE TER INTREPRETADO
interprété une comédie musicale (L'Homme de
UMA COMÉDIA MUSICAL (O HOMEM DE LA MANCHA),
la Mancha), pour se consacrer au cinéma.
PARA SE CONSAGRAR AO CINEMA.
Il continue cependant à enregistrer ou à réenregistrer
CONTINUA ENTRETANTO A GRAVAR OU A REGRAVAR
des chansons (Vesoul, 1968 ; L'Enfance, 1973).
CANÇÕES (VESÚVIO, 1968; A INFÂNCIA, 1973).


Après quatre ans de «retraite» aux îles Marquises, il enregistre
APÓS QUATRO ANOS "EM RETIRO" NAS ILHAS MARQUISES, GRAVA
en 1977 un album qui rassemble tous les thèmes de son oeuvre :
EM 1977 UM ÁLBUM QUE REUNE TODOS OS TEMAS DA SUA OBRA
l'amitié (Jojo), la misogynie (Les Remparts de Varsovie, Le
A AMIIZADE, A MISOGENIA, A MORTE E A GENEROSIDADE.
Lion), la mort (Vieillir) et la générosité
(Jaurès).

Jacques Brel a mené parallèlement une carrière d'acteur
JACQUES BRELL LEVOU PARALELAMENTE UMA CARREIRA DE ACTOR.
(Mon Oncle Benjamin, de Molinaro; Les Risques du métier, de Cayatte) et
de réalisateur (Franz, 1972).



(Biographie de «L'Encyclopedia Universalis»)
BIOGRAFIA DA "ENCICLOPÉDIA UNIVERSALIS", QUE ENCONTREI NO ENDEREÇO http://membres.lycos.fr/herweb/brel0.htm
E TRADUZI LIVREMENTE, NUM REPENTE, SEM DICIONÁRIO, QUE NUNCA TIVE...
MAS COM A MINHA ALMA, SENSIBILIDADE E CARINHO


Maria Petronilho

"NENHUM SER IMENSO É SIMPLES"
(homenagem a Frida Kalo)




Falar de Frida Kalo é revelar a complexidade da alma feminina, tantas vezes oculta, porém exposta por esta mulher de uma força, tenacidade, poder imensos. Percorrer a sua vida e a sua obra é como olhar-se num duplo espelho: no espelho de seu interior que insistentemente nos mostra; olhar-se no espelho de mistério que habita ocultamente cada mulher, porém só ousa desvendar uma grande alma.

Frida sofreu desde cedo a sina do sofrimento. Aos seis anos a poliomielite deixa-a com uma perna definhada. Aos dezanove um terrível acidente ferroviário arruina para sempre a sua saúde. Mas muito mais pode a mente de uma mulher de vontade férrea!

Apaixonada, casa com o pintor Diego Rivera, famoso e com o dobro da sua idade. Em alguns dos seus quadros mostra o amor obsessivo que por ele nutria; perdoando-lhe infedelidades, levando-a ao divórcio e a recidivo casamento meses mais tarde. Pensa nele constantemente; dimui-se perante o seu talento: observe-se o quadro “Frida Kahlo y Diego Rivera”, 1931, ele enorme, de grandes pés bem assentes na terra e ela como que uma menina de mão dada, flutuante a seu lado... porém no amor feminino há sempre algo de materno, um amor telúrico que abrange tudo. quem nos deu o ser e o ser que damos: patentes no quadro El abrazo de amor de El universo, la tierra (México), Yo, Diego y el señor Xólotl, 1949.

Frida autoretratou-se em todas as fases da sua vida, mesmo aquelas que apenas pode adivinhar: o seu nascimento; o aleitamento pela sua ama - porque nada a podia impedir de se doar, mostrando, como ela dizia quem conhecia melhor - Frida ela-mesma.

Dualidade de mulher,Las dos Fridas, 1939, assume o seu consciente e os assomos do inconsciente na sua pintura Lo que vi en el agua o Lo que el agua me dio, 1938 -não, não lhe chamassem surrealismo, "eu pinto a minha realidade", e com que frontalidade o fazia! Com a mesma com que assumidamente se declarava uma mulher sensual Yo y mis pericos, 1941 Autorretrato con monos, 1943, porém enferma de solidão Autorretrato con mono, 1938, rebelando-se contra tal Autorretrato con pelo cortado, 1940. -qual a fêmea que rejeita os seus instintos senão a que deixa reprimir-se.

Frieda deixar-se reprimir?! Nunca! Por nada! Nem o mais voraz sofrimento, as sucessivas cirurgias cujo sofrimento físico também não dissimula, antes pungentemente revela. Como se dissesse: sou uma mulher por inteiro, sim: sofro e amo; quero ser mãe e assumo ser mulher, de cabeça bem erguida!

Esta pintora mexicana é mais que um exemplo, é um símbolo de força e persistência. É alguém que desentranhou o seu âmago e o mostrou destemidamente ao mundo. A vida deixou-a liberta e a nós o sonho de nos tornarmos mais fortes; guiando os nossos instintos com inteligência; as nossas emoções sem vergonha.

Viva Frida Kahlo Mulher, Atitude e Exemplo!


Maria Petronilho

Sobre a Obra Poética de Gustavo Dourado



Lucidez.
A clareza explícita em aparentes meandros.
As palavras abrem e expõem as ideias que ocultavam - que o-cultavam?
Também a clara luz se decompões nas sete cores do arco íris e de novo o prisma as reúne na única e primeira branca luz.
Gustavo Dourado tem o poder de desencantar ternura na angústia.
Gusta.vo d.oura.do: Em tudo encontro o poeta definido:Inevitável amor, transparente e precioso; nu; vestido de subtil claridade.
De um lírico som, imagem = pureza. Em cada ponto; em cada letra ... respira poesia e é ar que se respira.
Fonte que flui; água de beber e sede viva. Entendê-lo é como olhar o sol e sentir o calor, os pingos da chuva.
Escutar o mar e sentir o berço.
As estações e rotações.
Os universos tocando-se humana e divinamente – nada os separa.
O entendimento sobrepõe-se.

Escutar o mar e sentir o berço.
A Voz soando no bate-que-bate do coração!


Maria Petronilho

"Louredo"




Naquele tempo não havia em Monsanto qualquer estrada, a não ser as deixadas pelos romanos, de lajes negras e lisinhas de tão gastas, que permaneciam pregadas no chão desde há centos e centos de anos.
O Louredo era uma casa isolada no sopé do “monte-Santo” .
Ao redor, apenas as dependências devidas a uma casa de lavoura: palheiros, cabanal, casa do forno, e bancadas de cantaria monolíticas, imensas, ao livre.
Terreiro, sobreiras esparsas e vários muros de pedra solta.
A casa de grossas paredes negras, tinha dois pisos e balcão alto, sem amparo.
No andar térreo, as lojas, onde se guardavam os potes de barro com os mantimentos: azeite, azeitona, enchidos, salgadeiras, tábuas de queijos, arcas com os cereais de moinho. Os frutos secos ao sol sobre esteiras no Outono.
No piso superior, a cozinha de chaminé, o largo lar, fumeiro estendido por cima durante o Inverno, a sala e os pequenos quartos de tradição, com cortinas.
A rodear o rectângulo da porta e das janelas, uma tarja de tinta azul, da mesma cor da porta de trinco, que nunca se fechava à chave.
Dos lados da janela maior, incrustados na parede, dois aros de ferro ostentavam craveiros de viçosos cravos rubros, pendentes, odoríferos.
Entre o lado norte e o palheiro, de duas divisões, a primeira para guardar o feno, a segunda os animais: burras, cabras e galinhas, um bosque inusitado e inacessível de esplendorosas mimosas sensitivas, como que a desafiar-nos, pois a porta que dava acesso a esse jardim dourado, estava apenas disponível no fim da primavera, quando as reservas de feno chegavam ao termo e se armazenava nova colheita.
Um pouco adiante, as furdas dos preciosos suínos, esterqueira para fermentação do estrume, e duas cancelas: a de ferro, para o caminho que dava acesso à fonte e por onde passavam os animais e os carros de bois e outra de madeira, mais estreita, mesmo ao pé da porta, por onde se ia para a horta, o tanque, o poço da nora.
Muitas árvores de variadas espécies.
Flores plantadas a esmo, crescendo de forma quase miraculosa.
A leira dos morangos, com a cameleira ao centro.
E, à direita, algo que maravilhava: era uma árvore de sombra, folha muito recortada, que na primavera dava resplandecentes cachos de flores brancas, as quais eram apanhadas, laboriosamente separadas as pétalas, e fritas em pastéis dos mais deliciosos que imaginar-se possa!
Depois da horta, a vinha.
As árvores eram escolhidas de forma a produzir fruta todo o ano: havia figos de Inverno, cor de romã por dentro e maçãs crespas, enormes, que supostamente deveriam ser consumidas no Inverno, mas eram sempre intragáveis.
A romãzeira, de enormes flores escarlates, era a minha paixão.
E as pétalas das flores dos marmeleiros, uma delícia ... degustavam-se às escondidas.
Com os diospiros, havia que ter cautela!
Ou deixavam a língua carraspana ou a gente se lambuzava irremediavelmente de doçura amarela, que acabaria por nos valer uma sova!
Tinha um grande desgosto a minha avó: por causa das geadas e nevões, queimavam-se-lhe todas as amendoeiras que, persistentemente, plantava.
Ora reza a lenda que tais árvores foram trazidas por um mouro do sul enamorado por uma donzela nórdica que definhava saudosa da alvura a que estava habituada na sua terra....

Costume de Natal: "O Beijar do Menino"


O fim de Novembro era ainda tempo de azáfama. No alambique de cobre, cujo bojo reluzente assentava na fornalha, o bagaço de uva cozia interminavelmente. Do cano, que atravessava um comprido tanque de alvenaria, caía pingo a pingo, do outro lado, a água-ardente.
Provavam e faziam caretas, aventavam os restos dos copos, até que o pingo se transformava em fio e o líquido era recolhido num funil de zinco enfiado no gargalo dos garrafões empalhados pela paciência do António Figueiredo.
As bilhas do azeite chegavam da Vila, no dorso dos burros, que inteligentemente escolhiam com os cascos um caminho por entre as pedras que resvalavam ladeira abaixo.
Na loja, media-se e guardava-se em talhas de barro, parecidas na minha imaginação, àquelas aonde se escondiam os quarenta ladrões de Ali Babá quando planeavam os assaltos.
As borras turvas iam para um caldeirão enorme, suspenso na ponta de um gancho farrusco, cuja corrente se perdia no escuro incógnito.
Alteava-se o fogo, juntava-se soda cáustica comprada na mercearia do adro. Alguém tomava assento num tropeço de cortiça e, o dia inteiro, vira que vira com um pau, até que a mistura esbranquiçada se tornava espessa, era deixada a arrefecer, cortada em barras e arrumada em prateleiras.
De noite as geadas caíam e as manhãs acordavam branquinhas e frias. Até o cimo do castelo se embrulhava num manto cinzento.
Passara há pouco o tempo do reboliço das dornas e pipas, atravancando o terreiro de baixo.
Mil vezes esfregadas, acertados a martelo os círculos dos aros, vedadas a pez as tampas redondas e torneiras, embutidas as rolhas de cortiça, lá repousavam enfim na paz misteriosa da fermentação.
À medida que o frio se intensificava, os cânticos na missa dos Domingos, iam tomando maior alegria.
Eu, de véu branco entre os véus negros, saía da minha habitual abstracção, distraída com os movimentos do incensório, o palavreado inteligível do padre, que as senhoras muito sérias e compostas fingiam acompanhar nos missais, mesmo se analfabetas. Iam respondendo sabe-se lá o quê, num infindável latinório ora pró nobis....
Eu ajoelhava, juntas as mãos em frente do peito conforme me era ordenado, persignava-me com a destra, saltitava ora num pé ora no outro, enfadada.
Mas por este tempo, algo me atraía: as cantigas!
Cantigas que eu sabia, pois as lera nos livros do meu avô e não eram lamentos intermináveis, mas cantos alegres, cujo acento se prolongava muito nas últimas sílabas:
“Ó meu menino Jesus
Ó meu Menino tão belo
Logo tu foste nascer
No tempo do caramelo”
E, escorregando no caramelo, a água que embebia a terra saturada e os musgos, gelando os caminhos, voltava enregelada, sentando-me de mãos estendidas frente ás chamas da lareira.
Uma manhã havia em que a minha avó decretava que a Henriqueta pegasse numa escova de piaçaba, numa barra de sabão branca, e esfregasse a casa de ponta a ponta.
O Vicente armava com tábuas uma mesa comprida ao cimo da escada.
Minha avó abria as arcas e retirava as preciosas toalhas bordadas, ornadas de rendas finas.
Armava-se o “altar”, com pratos repletos de doces, douradas broas de mel, filhós, frutos e flores, garrafas de licores pacientemente macerados em garrafas cujos topos eram selados com cera.
A bisavó, na sua casaquinha com folhinho na cintura sobre saia rodada, tomava assento de rainha e esperava.
Minha avó, a roupa mais negra que nunca, remirava tudo, alisava aqui uma prega, compunha e ajeitava defeitos que só ela via.
Por fim, o padre chegava, montado num burro pardo, com o sacristão e os meninos de opa vermelha, palmilhando atrás.
Desmontava no terreiro, tirava do alforge um embrulho de pano branco, subia o balcão, onde nos enfileirávamos todos.
Enquanto o prior deitava um olhar de viés à mesa que esperava no interior, o sacristão desvendava a imagem de um menino nuzinho de dentro do pano e colocava-lha nas mãos.
Os meninos desencantavam a caldeirinha e o aspersório da água benta.
Fazia-se silêncio, colocávamos os véus e ajoelhados, beijávamos a imagem fria.
O padre abençoava tudo, murmurando monotonamente qualquer coisa que não se conseguia perceber.
A seguir, embrulhava de novo o menino, passava-o ao sacristão, que ia arrumá-lo no alforge e começava o alvoroço:
- Senhor prior faça favor de entrar! Prove disto, coma daquilo...
O senhor prior provava de tudo, se provava!
Ia abanando a cabeça, ignorando os guardanapos, limpava as mãos à batina e fazia sinal aos meninos, que iam levando o que restava nos pratos e os despejando nos alforges.
Provava o licor de laranja, de tirinhas cortadas muito finas, e dava estalidos com a língua.
Depois o de ginja, sempre abanando a cabeça, que sim, que sim, mas estava com pressa...
Corado, empanzinado como um cortiço, despedia-se das velhas, que o miravam com um sorriso contemplativo, as mãos cruzadas sobre as barrigas redondas.
Tão subitamente como chegara, assim partia o prior, o Menino no alforge repleto de doces, ao menos protegido pelo eterno pano branco e amarrotado, às três pancadas.
O padre de preto tomava assento sobre a albarda do burro e o sacristão e os meninos de opas vermelhas seguiam-nos palmilhando, pelos descampados agora no lusco-fusco, esteva aqui, tojo acolá, enquanto a geada caía, cobrindo tudo de um branco uniforme e frio.

Costumes de Natal :
"O Madeiro e a Missa do Galo"



Era no adro da igreja que o Natal se festejava.
Muito tempo antes se sorteara entre os lavradores, a honra de oferecer a árvore para a festa.
Pelo vigésimo quarto dia de Dezembro, juntavam-se os homens da aldeia. Iam em romaria, de pé sobre uma carroça que, mesmo indo leve, gemia vereda fora.
No bornal, pão e chouriço, um naco de presunto, um punhado de azeitonas.
E o garrafão de tinto, empalhado, preso aos varais pela asa.
Os machados afiados jaziam a um canto.
Contavam-se pilhérias. Alinhavam-se umas quadras. Soltavam-se umas cantigas.
Soavam risos e palmas.
No campo, erguia-se altiva a árvore premiada, que seria abatida no seu fulgor e pujança.
Os homens saltavam alegres do tabuado, rosetas nas faces, machados em riste.
Erguiam-nos bem alto acima da cabeça, nas mãos calosas, e desferiam o primeiro golpe:
- hemp!
Faziam fila, o segundo golpe soava:
- Hemp!
E assim se consumava o sacrifício, por longo tempo, soando em meio ao silêncio
- Hemp!
- Hemp!

Até que chegava a hora do golpe de misericórdia.
Faziam grande algazarra, berravam-se cautelas, davam-se passadas largas, retrocedendo às fosquinhas... como se esta fosse a primeira árvore derrubada nas suas vidas!
Uma vez caída, as enchós nas mãos experientes, podavam os verdes ramos.
Iam-se buscar cordas, que se atavam aos extremos e se puxavam aos ombros.
- Eia..!. Eia...! num ritmo cadenciado pelo esforço.
Içava-se o tronco parra o carro e passava-se à merenda.
Redobrava a alegria, atiçada pela boa pinga.
Enfim, rumava-se à vila.
A carroça, de pesada, mais gemia, lentamente, às passadas retesas das bestas.
Chegavam em frente da igreja, onde o padre os esperava, de aspersório e caldeirinha.
Tiravam com grande pompa o madeiro e depunham-no no adro.
O padre chegava-se perto, andava em volta examinando-o, ora abanando a cabeça ora franzindo o sobrolho.
Por fim conformado, mas nunca satisfeito, aspergia de um lado ao outro.
Borrifava-o ao de leve com água benta, murmurando sabe-se lá que mistérios.
E recolhia-se ao agasalho da ceia.
Juntava-se alguma lenha e ateava-se o fogo ao lenho.
A noite vinha descendo, a seiva ia crepitando, se derramando, cedendo.
Na torre, tocava o sino:
- Dling dlong dling dlong... dling!
De todas as direcções vinha o povo convergindo.
Elas de xaile de marino com franjas, lenço de arabescos atado debaixo do queixo; eles de capote ou samarra, gola de pele de raposa, cajado na mão direita.
Passada a passada, iam tomando lugar em volta do fogo, que resplandecia e soltava estrelas de ouro no negrume da noite fria.
Elas entravam na igreja.
Eles juntavam-se mais: tirava de sobre o ombro a garrafa de água-ardente, atada por um baraço à asa tosca de um copo.
Passavam-na de mão em mão, para aquecer a garganta, que protestava tossindo:
- Está mesmo boa!
- Mesmo boa, a bagaceira! Replicava outro, sério.
De dentro do templo, soava uma cantilena, uma voz se erguia, outras se lhe juntavam em coro:
“Da vara nasceu a vara
Da vara nasceu a flor
E da flor nasceu Maria
De Maria o redentor”
Subia o bafo no ar.
As crianças, agarradas à barra da saia das mães, esfregavam os olhos de sono.
O padre movia-se com lentidão, de paramentos brancos, bordados a ouro.
O sacristão e os meninos de coro, faziam gestos servis: ora lhe depunham nas mãos gorduchas e inertes o cálice; ora lho retiravam; mudavam a folha do livro; chegavam-lhe o incensório fumegante, que ele agitava com uma lentidão hipnótica, acima abaixo, esquerda direita... e os olhos dos fiéis seguiam-no, vidrados.
Murmurava algo que se não ouvia... e mesmo que ouvisse, quem destrinçaria palavra daquele fraseado monótono?!
Nas filas, as pessoas faziam gestos automáticos a um tempo, como se manejadas pelos fios invisíveis de marionetas:
Ora se erguiam, ora se ajoelhavam, ora se sentavam esperando...iam murmurando algo inteligível, de olhos postos no vago.
Excepto se encontravam outro olhar e se aproveitava o ensejo para um breve mexerico:
- Então a vizinha já sabe o que dizem daquela? Dizem que ela e o António é um Deus nos acuda!
- Ai coitado do marido, que é corno e ainda não sabe!
Subentendiam-se olhares contristados, misturados de sorrisos à socapa.
Uma cotovelada certeira, fazia-las retomar o lugar em cena e a deixa na ladainha.
Respondiam automaticamente o que não sabiam, ao que nem escutavam.
Era a tradição que as movia, como um mágico coreografo.
No fim, lá iam em fila deitar a ponta da língua de fora, com ar contrito, em fileira cerrada.
O padre, retirava do fundo mágico de um cálice de ouro, uma hóstia precariamente segura entre o polegar e o indicador e depunha-a complacentemente, de boca em boca, com ar de asco.
Se uma moçoila se apresentava, rosada, na sua frente, os olhinhos chispavam-lhe concupiscentes, como quem diz:
- Toma lá, mas não foi para tomar a sagrada hóstia que Deus te deus te fez uma boca tão redondinha... ai se te apanho a jeito!
De língua recolhida no céu-da-boca, não fossem os dentes macular inadvertidamente a sagrada ceia, a boca seca recusando-se a engoli-la como a uma pastilha, elas retiravam-se, de cabeça baixa, dando a Deus o sacrifício do acto por mor dos seus pecados.
Mais uma bênção, mais uma vénia e ala... para a saída, às arrecuas quase até chegar à porta.
Cá fora, risadas altas, em volta das altas chamas!
Rubras as faces e as brasas, que iam consumindo o tronco, numa incandescência rubra, varando-o de lado a lado.
Os homens olhavam as mulheres, contrariadas.
Elas aguardavam-nos, em silêncio, a alguns passos.
Acabara-se a festa... Missa do Galo e Madeiro, só para o próximo ano!
Cada um se aproximava da sua consorte, sem uma palavra, um gesto.
O hábito acertava-lhes os passos, que soavam caminho abaixo, rumo ao casebre de pedra nua e telha vã, à enxerga de palha sobre os ferros pintados da cama, onde se consumaria o acto que seria Natal no fim do verão.