quarta-feira, janeiro 19, 2005

A ROSA E O SER


A rosa abriu os olhos aos primeiros raios de sol.
Espreguiçou as pétalas e bebeu gotas de orvalho.
O ser pequenino acordou também e nele a esperança de ver o botão cerrado que cuidava. Correu ao jardim e sorriu de alegria ao ver que o sonho acontecera.
Estendeu as mãos pequeninas e, docemente, aconchegou
no côncavo as pétalas frescas e macias.
- Como é bom que tenhas nascido... murmurou. E ia mergulhar o rosto
na corola, para beijá-la e aspirar-lhe o perfume, quando uma vozinha murmurou:
- Tem cuidado!
O ser pequenino assustou-se, mas depois pensou ser a voz da sua imaginação.
Num ímpeto apaixonado, abraçou a rosa.
- Ai ! - Gritaram um e outro.
Um espinho acerado, perfurara a inocência do seu coração.
As pétalas ainda meio descerradas ficaram machucadas, e foram caindo.
Mas do âmago da rosa uma aura doirada se soltou e a ferida cobriu.
A gota de sangue, nele se envolvendo, na terra se embebeu.
O ser pequenino, elevou-se e pousou no coração da flor o seu coração ferido.
Reflectiram juntos acerca da angústia de amar-se demasiado.
A rosa sentiu o calor de uma lágrima e murmurou:
- Não chores, porque nem me destruíste nem o teu sangue se derramou em vão...
o pólen de soltaste, não se perdeu, fecundou o gineceu que esperava este momento. E o teu sangue derramado alimentará a nova roseira por que vim.
Juntos seremos eternos, pois o amor além da brevidade nos guiou.


Maria Petronilho

Menina e o Vento





Não me perguntem porque terei abandonado a rua que sempre pisava e me entranhei nos terrenos baldios cheios de latas e poças, sacos de plástico em tiras como bandeiras de nações despedaçadas.

Andava a custo, por causa dos obstáculos e dos cheiros nauseabundos.

Impelia-me uma espécie de ânsia que dentro do peito gritava, uma voz que ciciava ao meu ouvido.

- Anda! Vem cavalgar comigo! – Voz nítida, concreta, próxima, feita de sons cujas notas soavam fora e dentro da minha cabeça.

Olhei em redor, mas nada vi de estranho e no horizonte, ninguém!

- Anda! Vem cavalgar comigo!

Como estava sozinha, arrisquei:

- Mas quem és tu?! E onde estás?

- Sou o Vento, bradou ele numa voz muito alta.

Dei um pulo:

- Ora essa! O Vento chia, não fala, repliquei, mas sem convicção pois nunca tinha falado com o vento, apenas sabia do som que fazia passando e era inusitado que respondesse, que dialogasse... fosse em que língua fosse.

- O Vento tem muitas vozes, disse-me, como se me adivinhasse... na verdade a sua voz soava dentro e fora de mim, em uníssono.

- Dizem que o Vento canta nas folhas, nos pingos de água... atrevi-me a dizer.

- Pois canta! E assobia nos caules de erva.

- Está bem, mas nunca se disse que o Vento falasse!

- No entanto estás a falar comigo, disse ele rindo.

Eu também ri, porque o riso contagia mesmo se não sabemos do que rimos.

Nós ríamos sabendo que era de nós mesmos e de nos estarmos descobrindo.

- Porque me convidaste a cavalgar contigo se não te vejo, perguntei?

De repente as minhas saias rodopiaram, o meu cabelo levantou-se e vi que o chão ia ficando cada vez mais longe.

- Sentes-me, apesar de não me veres?

- Sinto, respondi eu incrédula, mas sem medo nenhum como se me pegassem ao colo.

À volta, tudo sereno. Parecia que o vento resolvera marcar encontro só comigo.

- E porque me levantaste do chão?

- Porque te convidei a viajar comigo e não me acreditaste!

- Como havia de acreditar-te?! Não te vejo, não tens dorso, já foi difícil perceber que falavas quanto mais que me convidavas para um passeio!

- Conheces-me desde sempre e ousas dizer que sou mentiroso?! Muitas vezes te convidei para passeios mas tu parecias nem dar conta, só olhavas o lugar onde punhas os pés!

- E agora vejo o que pisava, confessei envergonhada... mas onde me levas?

- Aonde sonhares ir!

- Como hei-de sonhar, se não durmo?!

- Não é preciso dormir para sonhar! Os melhores sonhos são os da vigília, pois trazem aos teus olhos o que mais anseias mas não te atrevias a olhar. Os sonhos estão sempre contigo.

Fiquei um pouco a pensar nisto. Senti um novelo de todas as cores desenrolar-se diante de mim e disse-lhe:

- São muitos sonhos e não sei qual escolha!

- Escuta-os, também têm voz!

- Hummm... pois será, mas diz-me: vou vaguear por aí como bruxa sem vassoura?

Ele riu muito alto

- És mesmo distraída! Porque não te aconchegas nas minhas asas e passaremos por onde quisermos, pois se me apetece sou brisa; se me aborreço, tempestade e se os meus companheiros me desafiam quando brincamos nas escadarias do céu, desato a correr e sou furacão...

- Isso é muito mau porque partes tudo, já viste?!

- Vejo depois, quando olho para trás... mas como querias que me divertisse se desde antes do tempo rodopio à volta da Terra, e cada vez me dão menos importância?!

- E que acontecerá quando chegar o fim deste meu sonho?

- Acharás outro e depois outro e outro.... quando te acostumares a viajar comigo, verás que não existe limite algum, pois o teu pensamento não tem princípio nem fim... como eu não tenho!

- Já sei aonde quero ir.... mas é muito longe, disse eu baixinho.

- Não existe longe para o vento, que te disse eu?!

E o vento ia ficar zangado mas olhou-me por cima do ombro, viu-me os olhos embaciados e eu já agarrada com confiança nas suas penas transparentes, determinada...

Acalmando, perguntou

- Desculpa, sou impetuoso... onde queres ir primeiro?

- .... a um lugar que existiu há muito, muito tempo...

- O Vento não conhece o tempo, gritou!

- Ao colo de minha mãe!



Maria Petronilho

terça-feira, janeiro 18, 2005

Estava Óscar em sossego...


O Óscar, um tipo calmo, via o tempo passar tranquilo.
Sozinhez de quando em vez, sim, mas quem a não tem, digam lá?!
Chegava na esquina, puxava conversa, dormia uma sesta, e pensava que bem lhesabia a liberdade que tinha.
Com isso se contentava.
Sentava-se junto à janela, às tardes, a ver quem passava.
Conhecia a D. Ana da Praça, o Zé Joaquim da Taberna, o Manuel da Hortaliça, aJoana da Mercearia.
... Mas um dia prendeu-se na saia dela!
Na saia e na bundinha, que ao andar rebolava,
E no pedaço de perna, torneada que aparecia, depois da bainha da saia, atésumir na chinela.
Um dia e outro ainda, quase sempre à mesma hora, lá ia a moça e o Óscar marcavaponto, no peitoril da janela.
Subiu os olhos à cinta, subiu pelas costas acima, e demorou-se na nuca.
Santo Deus, que coisa linda!
Ansiava ver-lhe a cara.
Passou a ir ao quiosque, a comprar uma revista, ficando a lê-la na rua.
A lê-la!
Fingia! E esperava. Da primeira vez que viu aquele palminho de cara, o Óscaraté tremeu, ficou corado e de olho arregalado.
Ai minha nossa senhora, tinha de saber quem era a moça morena que há tantotempo fazia, que andava de olho nela!
Virou-se num só impulso, como se fosse segui-la, esquecido de onde estava, docavalheiro que era... sentindo subir-lhe um viço, um arrepio, que era?!
De repente apercebeu-se, puxou o lenço do bolso e assou-se com estrondo,tentando disfarçar o embaraço com o alarido.
A vizinhança olhou e, à socapa, sorriu.
E ele, de novo composto, foi-se embora rua abaixo, enfiou-se porta dentro, foitomar um duche fresco.
Naquela altura, passou. Passou-lhe uma coisa, veio-lhe outra: um catarro mesmoa sério, que o manteve no recato por três dias, de resguardo.
Ao quarto, saiu do quarto e voltou para a janela, à espera dela.
E ela passou, donairosa, abanando a saia, rebolando a anca, os ombros a dar adar, ai o Óscar, que arrepios sentia!
Se era febre ou o contrário, quem saberia?!
Voltou a comprar revistas, às vezes repetidas, a ser fiel cliente do Janeca doQuiosque e foi metendo conversa.
Uma coisa leva a outra, e lá descobriu que a moça tinha por nome Jacinta.
Jacinta... ai que flor de moça, pensava!
Ja-cinta; Já-sinta... já sentia o cheiro dela, mesmo ao longe, da janela,quando passava na rua...
Mais adiante não ia. Isto é: querer, quereria, pior que não se atrevia a pisar ao tempo que ela as pedrinhas da calçada.
De noite é que eram elas!
O pobre já tinha olheiras, sonhava, que não dormia.
Sonhava com tantas coisas que nem posso descrevê-las!
Um dia a linda moça não é que lhe bate à porta?!
Truz-truz-truz!
- Quem vem lá? – Perguntou ele, arrepiado que nem um gato.
- Sou a Jacinta, senhor Óscar, faça favor de chegar à janela, que querodizer-lhe uma coisa!
Ai quer-me dizer uma coisa... pensou o Óscar e ia-lhe dando outra, ali mesmo,enquanto abria a vidraça.
- Ora viva, menina Jacinta, que já sei a sua graça! Que me quer a senhorita? Etodo ele se curvava, as mãos convulsas agarradas ao peitoril, os nós dos dedosbrancos, com medo de cair, com medo de saltar, de alçar a perna esquecendo-seda altura... não era muita, mas para quem o único desporto era comprarrevistas, a queda era certa.
- Sabe, senhor Óscar?! Sei que o senhor comprou um folheto de modas que eumuito procuro e era o último que o Janeca do Quiosque lá tinha... tinha ofeitio de uma blusa com folho na golinha... será que o senhor que me oempresta?
- Ó menina Jacinta, até lha faço, ora essa!
Entre, entre, faça obséquio! Não repare na modéstia da casa, já vê, sou umhomem solteiro...
E tremia-lhe a mão no trinco, afastava-se para o lado só uma fresta, convidandoa moça a entrar por ela... e a moça, que não se ralava com frestas, entrava, umpouquinho à força, roçando o peito de repente atrevido do Óscar, que escutava ocoração lá dentro, ecoando em toda a casa
Tum-tum-tum-tum!
- A menina sente-se na sala, que eu vou buscar a revista.
- Ora muito agradecida! – Retorquiu ela – e assomou-se à janela.
- Com que então é daqui que tu me comes com os olhos todas as tardes, e nem ostens para me dizeres bons-dias!
Ele apareceu com folhas várias, dispersas, nas mãos aos trémulas.
- Veja! Veja à sua vontade! Escolha qual é a tal que procura,
ia dizendo, porque não se achava, perdido de todo, numa hesitação desvairada,com vontade de ser folha desfolhada.
- E já escolheu o tecido, a menina?!
- Porque pergunta? Sua mãe é costureira?
- Eu vivo sozinho, menina. É que ia buscar a fita métrica, tirava-se o molde àmedida...
- Está bem lembrado, sim senhor! Vá buscar a fita, vá lá, senhor Óscar, e tenhacuidado não caia, olhe que tropeça!
Tropeçava. Tropeçava em tudo: na esquina da mesa, na ponta do tapete, nabiqueira da bota, malvada! Até a bota conspirava contra ele nesta hora, quemdiria!
A fita métrica... ora onde teria ele uma bendita fita métrica, que se enrolasseà volta de uma cintura?!
Tinha uma de alumínio... serviria?!
Revirou a caixa das ferramentas e veio de lá com uma fita extensível.
- Ó menina Jacinta, acha que presta, esta fita?
Ora se me permite... e espero que me permita!
- Permito, sussurrou ela, levantando ambos os braços: Ora meça!
- Ora meça... Homessa, se meço!
- Meço e não só!
- Meço, teço, ai que desta é que me atiro!
E foi-se chegando, chegando... ela esperando, esperando... ah como é infinitoàs vezes o tempo...
Mas chega sempre o tempo de dar o primeiro beijo!


Maria Petronilho

A gota de orvalho e o coelhinho Pimpão


O dia amanheceu cheio de sol.
De noite, o coelhinho Pimpão deliciara-se escutando a chuva a bailar no ar e a dançar sapateado no chão.
Pimpão adormeceu embalado pela música do céu.
A noite passou e o vendaval seguiu...
O dia acordou azul e sereno, resplandecente de sol.
Pimpão, olhou pela janela e sorriu
- Hummmm, exclamou sorrindo, espreguiçando muito as patinhas, quase tocando o topo da toca.
Saiu abanando a cauda e foi ter com a família, que preparava o pequeno-almoço na cozinha.
Comeu as ervinhas frescas que a mamã lhe serviu e depois saiu correndo, para brincar no ar, saltitar nas poças da chuva caída na noite anterior, mordiscar as pétalas de flor tenrinhas, que tinham desabrochado nessa mesma manhã.
No alto viu um girassol novinho em folha, olhando deslumbrado a grande e linda estrela que luzia no alto.
Era tão lindo!
Amarelinho, viçoso, as pétalas reflectindo a luz.
Pimpão quis chegar mais perto e sentir o perfume da flor.
Colocou-se sobre as patitas traseiras, estendeu a mãozinha macia e puxou para si o caule da planta,
Mas ai!
Uma gota fria, muito fria, escorregou lá de cima e caiu certeira sobre o seu nariz.
Pimpão levou um susto, sentiu um forte arrepio e correu, correu, correu...
Entrou assarapantado na toca e refugiou-se junto à bola de pelo macio que era o seu pai descansando.
- Papá, papá, está chovendo muito – gritou o coelhinho em alvoroço.
O pai voltou a focinho sorridente para o filho.
- Confusão tua, Pimpão! Choveu foi durante a noite. E também fez frio.
Mas assim que o sol nasceu, a chuva seguiu o seu caminho no céu e as gotinhas que ficaram reuniram-se sobre as pétalas e flores, em perolazinhas de orvalho.
- Mas pai! Uma gota de chuva molhou e esfriou o meu narizinho! Não estou dizendo mentira nenhuma vem ver!
- Eu sei o que acoteceu mesmo sem ir ver, porque quando eu era um láparo como tu também corria pelo campo de manhã e apanhava gotas de orvalho que caíam das flores que eu espreitava e caíam no meu nariz, pregando-me sustos como o que tiveste agora.
- Então não foi um pedaço de chuva que se atrasou e choveu sobre o meu narizinho, papá?
- Não, tolinho, não foi um pedaço de chuva... As gotas de chuva são irmãs muito amigas e vão juntinhas para todo o lado embaladas em nuvens de muitas cores. O que te caiu no nariz foi uma inofensiva gotinha de orvalho que o sol deixou sobre a flor, afim de a refrescar.
Caiu sobre ti, não está lá mais. Queres ir verificar?
Papai coelho queria que seu filho crescesse sem medo, embora no mundo dos coelhos seja necessário ser-se muito cuidadoso.
Pimpão respirou fundo, bateu com o pé no chão, encheu o peito de ar fresco e declarou:
- Vou ver de novo, papá! Verificarei com os meus próprios olhos tudo quanto me explicaste.
E saiu correndo, aprendendo como é bom viver escutando a chuva, brincando ao ar livre, aspirando o perfume das flores desabrochadas ao sol da manhã

E contar com o conforto de pais que sossegam os sustos da gente e nos explicam a arte de crescer com coragem e sabedoria.


Maria Petronilho

Quilos de Adrenalina

"Quilos de Adrenalina"



O Fonseca, bigodudo, tesudo, grisalho, encarrapitado no alto da cadeira,
meditava.
Acontecia-lhe de quando em quando, essa coisa de falar consigo mesmo, sobretudo
desde que via a sua vidinha ir-se por água abaixo....
- Ó diacho, dizia consigo mesmo, tenho de sair disto!
Mas sair disto era cada vez mais um caso bicudo.
- Arre, que parece que ando embruxado...
E cofiava o bigode farto, para distrair olhares das entradas, que lhe mostravam
a testa alta e, em baixo, da incipiente papada.
Para a idade que tinha, não estava nada mal o Fonseca!
Todas as manhãs se examinava escrupulosamente ao espelho, quando metia o pé na
banheira, para o duche ritual e a seguir, já fresco, ao fazer (aliás desfazer)
a barba.
Nu, pois claro.
O espelho não era qualquer de armário, era uma parede inteira da casa de banho.

O Fonseca virava-se e revirava-se:
Era a barriga, era a gordurinha sobre a anca... nada mal!
- Nada mal, nada mal, nada mal...
Cantarolava, enquanto se escanhoava.
Mas sentia-se vazio.
Nos últimos tempos, além da decadência da idade, da crise económica que também
o afectava, sentia uma inexplicável angústia, um nó na garganta...
- Que coisa, não posso andar a vida inteira na cepa torta!
Acordar não era fácil: revirava-se na cama e apalpava, apalpava... o lençol, a
almofada... melhor dizendo:
Tomava real consciência da sua vida solitária
- raio de vida!,
Eram as suas primeiras palavras.
Tomava o cafézinho, e o bolo de arroz matinal, na confeitaria da esquina.
Tudo apressado:
- Ó Zé, vê lá se a bica sai!
- E o empregado olheirento, coitado, nem sabia a quantas andava.
Tudo desabava, essa é que era essa.
- O mundo não é dos inteligentes, é dos espertos...
Pensava o Fonseca, enquanto lançava olhares de carneiro mal morto sobre a borda
da chávena.
- E rodava os olhinhos agudos pela sala apinhada.
O costume: pelintras de merda!

Uma dama de lilás entrara, no entanto, em cena.
Pedia “por favor” ao empregado, com pano de cozinha pendurado do avental;
pegava na asa da xícara de dedo mínimo espetado; limpava cuidadosamente os
lábios à pontinha do guardanapo de papel, com muito cuidado, fazendo boquinhas
para não esborratar o baton cor-de-rosa
- Tenho de conhecê-la! Homessa!
Deve ser mulher de massa... de alguma, pelo menos, da que me falta!

E lá conseguiu arranjar pretexto, que palavra puxa palavra...
Era uma dama de meia idade, ainda boazona, solitária, que vivia de uma pensão,
de uma renda... ao certo, ao certo, não sabia.
Mas que parecia bem de vida, parecia.

Um dia, pensou num negócio, enquanto olhava distraídamente o noticiário
- Vou vender adrenalina!
E disse-lho a ela, já pegando-lhe familiarmente no cotovelo, em ar de
confidência:
- Olha, sabes o que é que está a dar? Adrenalina!
- Adrenalina?! - Espantou-se ela, pensando que fosse alguma doença rara.
- Pois, mulher!,
Então tu andas ao de cimo da terra e não vês?!
Olha-me aqueles palermas a atirem-se de pontes e abismos, atados que nem
palaios, de cabeça para baixo... pagam fortunas, o que pensas?!
Ia fazendo gestos, encenava, arrebatava-se.
- E sabes para quê?
Ela olhava-o como se hipnotizada e ia acenando com a cabeça, ora para cima ora
para baixo...
- Ai, ele é uma grande cabeça!
– Ai as coisas que ele pensa!
Pelo rabinho do olho malandro, ele palrava e observava o efeito.
Sinaizinhos piscavam num lugar qualquer, lá num recôndito entre a
sub-consciência e o aflorar da consciência.
Luzes amarelas: “cuidado Fonseca!”
Luzes vermelhas: “olha que deitas tudo a perder, rapaz!"
Luzes verdes: “avança, avança, que ela está de maré!”
E ele avançava...
Avançava um passo, a metê-la num canto, e avançava um sonho, murmurando:
- Olha lá! E se a gente alugasse uma avioneta e lhes vendesse adrenalina?

Pronto, os dados estavam lançados!
Ela mirava-o de boca aberta:
- Mas ó Fonseca, sussurrou, quem é que ia comprar uma doença?!
Ele riu à gargalhada:
- Quem beneficiasse do Seguro, ora essa!
Ela percebeu a brincadeira e aligeirou a pressão na moleirinha.
Ele avançou de novo:
Explicou-lhe que adrenalina era uma espécie de bebedeira sem ter bebido, o que
levou horas em exposições e contradições – arre porra!
- Mas o que é tens na ideia, homem, diz de uma vez por todas!
- Então a gente juntava os trocos e alugava uma avioneta... e depois
vende-se-lhes adrenalina aos quilos!
- Mas como assim, se é uma bebedeira sem bebida?!
- Arre que é estúpida a mulher!, impacientava-se o Fonseca, subindo o tom
vários decibéis.
- Ó mulher, então não percebes?!
- A gente sobe... sobe... e eles atiram-se lá do cimo, atados a fitas de
nailon!

Quanto mais alto estiverem mais bêbados ficam!
- Ai que cabecinha, Fonseca, que cabecinha abençoada que tu tens, homem!
E afagava-lhe a nuca com a direita e a cabecinha com a destra...


Maria Petronilho

Série Contos de Fadas - A verdadeira história do principe-sapo no séc XXI


Kátia Alexandra Sofia da Silva retirou sem sombra de pejo aparte de cima do
seu biquini e esparramou-se na relva, de modo a ser atingida pelos
respingos, já que era tarde tardezinha e o Manel Jaquim jardineiro, regava
o toro

de uma ameixoeira, que o empresário da construção civil, Silva pai, não era
de desperdiçar terreno nem despesas com coisas que não dessem fruta ou, ao
menos, umas hortaliças.

O Caldo verde da D. Birgolina tinha fama, feito com as tenras couves que
adornavam as alamedas.

Boné para a nuca, testa meio calva meio grisalha reflectindo o fulgor do sol que declinava,
o Manel Jaquim, declinado dos ossos e de outras miudezas de que a gente não
fala, nem olhou para a moça, que se virava e revirava na toalha turca dum
lado e do outro aveludada.

Olhava enfastiada os restos da revista Caras que folheara,molhando a ponta
do dedo mindinho na ponta da língua, ficando as páginas coladas com uma
mistura de saliva e cola... nada a fazer senão mirá-las,remirá-las, e
arrancá-las, lançando-as por cima do ombro, que a brisa se encarregava de
levá-las a passeio para onde não a incomodassem..

Por isso, aproveitavam a frescura das águas do tanque a que chamavam
Piscina, quando se reuniam lá em casa as Tias,

modelos, príncipes artistas... vogavam deliciados, que estavam habituados a
frescuras.

Ela, Kátia Alexandra Sofia, à água... só vê-la!

Ou senti-la morninha, debaixo do chuveiro de uma das três casas de banho da moradia
recoberta de azulejos.

Os banhos de sol junto da Piscina eram pretexto para se apresentar bronzeada
nas festas, dizendo que acabara de chegar de férias nas Caraíbas.

Rebolava-se a inconsciente adolescente, impaciente vá-se lá saber porquê, os
olhos postos no ondear das páginas...

Eis senão quando algo no meio do tanque, de fundo pintado de azul turquesa,
começa a emergir, a emergir, a emergir... e os olhos castanhos,delineados,
de Kátia a aumentar, a aumentar, a aumentar...

Sacudiu a loiríssima cabeleira escadeada por três vezes ebenzeu-se

- Ai! Então não querem lá ver que o sol me fez mal?!

Da água, uma cabeça, depois uns ombros musculosos, um tronco de atleta,
abdominais firmes, foram surgindo... a Katia ia-se soerguendo... seguindo o
lento caminhar do jovem que passo a passo se encaminhava para o bordo, o
agarrava com as mãos poderosas e se içava para fora de água.

Pisou a relva.

Kátia olhava hipnotizada.

O Manel Jaquim, depois interrogado, jura ter visto um sapo,apenas um sapo.

- Juro pela minha mãezinha que Deus lá tem, ó Patroa!

E cuspia nas palmas nas mãos, que limpova aos fundilhos das calças de
bombazina.

... Mas a Kátia viu um jovem aproximar-se, inclinar-se suavemente sobre ela,
olhando-a bem no fundo nos olhos, a boca em botão de rosa,pedindo um beijo.

Em pasmo, retroflectida, a cabeça em pé-de-vento, Kátia Alexandra Sofia da
Silva, esticou-se toda, seios à vela, que importava... nem se lembrava quem
era nem onde estava!...A proximidade foi um filme em câmara lenta... um
momento mágico, um parar do tempo

- Ai que nojo!

Num repente, agarrou a toalha meio-de-veludo e esfregou, obaton dos lábios,
repugnada.

- roaaac - roaaac - roaaac ...



Tanto um quanto outro desataram aos saltos, desatinados.

A moçoila desatou aos berros.

O Manel Jaquim deitou a mangueira ao chão e desatou a fugir caminho abaixo,
metendo a mão no bolso traseiro das calças, atropelando as couves, sem
atinar com o telemóvel muito menos com o número do serviço nacional de
emergências.

De dentro, a D. Birgolina acudiu de facalhão em punho, que estava a cortar o
chouriço.

Passada hora e meia vieram os polícias, os bombeiros a protecção civil.

Postados em fila no sofá da sala, foram interrogados por repórteres
cépticos, os únicos que colocaram algumas dúvidas na veracidade dos
factos narrados.

A história foi notícia de abertura no Notiário da Noite do canal oficial da
TV.

Uma fotografia da bela desnuda saiu nas páginas centrais da revista Caras.

O Silva, todo engravatado, compareceu nos estúdios ao lado da filhinha, nas
entrevistas.

Foi abordado por uns senhores graúdos do mundo do futebol,discretos e
circunspectos porque sim mais que também, pois lhes sobraram uns materiais
da construção dos estádios e que poderiam fazer... o que fizeram.

Venderam a moradia e compraram um palacete na Linha do Estoril,com piscina
verdadeira, com filtros e tudo, onde se dão as melhores festas da Socialite,
com champanhe e pastelinhos de bacalhau.

Nadam em euros e dão grandes sardinhadas aos domingos.



... E agora, já acreditas em contos de fadas?


Maria Petronilho

O Pisco e o Figo



"O Pisco e o Figo"


Segurei-me com toda a força nas minhas oito garras tremendo.

Do cimo, as enormes folhas agitavam-se rindo:
- Vem, Pisco, pica se te atreves!E abriam nesgas de brilhos azuis que me ofuscavam.
Os pomos pendentes e maduros convidavam tremelicando a gota de mel dos umbigos:
- Vem, Pisco, pica se te atreves!
As penas represas, eriçaram-se-me.
As meninas dos olhos abstraíram-se de tudo.
Num instante imenso transformei-me num projéctil movido pela ânsia... até que senti a doçura rosada do figo desfazer-se ao mergulhar o bico

De pálpebras cerradas, sorvi longamente o dulcíssimo frenesim do acometimento.


Maria Petronilho

segunda-feira, maio 10, 2004


Voo!
Como um pássaro que sobe cada vez mais alto e vê cada vez mais longe.
Sou da geração de mudança em que, na negrura mais funda lutou, contra tantos reveses, riscos, infortúnios... por um dealbar que hoje se comemora:
Passámos da mais antiga Ditadura da Europa, à Democracia.
Fomos o último vergonhoso Império que nos consumia enquanto Povo mas cujo manto inglório e ruço atirámos ao chão!
Como não falar da História em que participei, nesta data em que se comemoram trinta anos de Liberdade no meu país?!
Saudades de outrora... não tenho.
Vivo de esperança e de luta.


Maria Petronilho

terça-feira, abril 06, 2004


Natália Correia - à frente do seu tempo...





Nasceu a 13 de Setembro de 1913, saiu da ingrata vida a 16 de Março de 1993

“Será preciso passar uma década sobre a minha morte para começarem a compreender o que escrevi.
Sei-o porque o sinto.
E vai ser a partir dos Açores que isso acontecerá”

Natália Correia nasceu adiantada no tempo, para o anunciar, antecipar.
Poetisa, dramaturga, romancista,, ensaísta, deputada, editora, pintora, tradutora, marcou a vida portuguesa, abalou os pés de barro dos deuses que atabafavam a cultura portuguesa.
Concebia, à semelhança de Teixeira de Pascoaes, “ a poesia como uma profecia” e o “poeta como um profeta”
Na sua obra, celebra o ser humano como “andrógino” (recordemos o vocábulo que inventou, “Mátria”); o ser completo; uno e plural.
O Desejado, o que contém a esperança e a resistência.
Pedro e Inês, símbolos da paixão, da volúpia pela morte.
Da Ilha, espaço do sagrado, da esfinge, da iniciação.
Bate-se pela recuperação do excelso, do politeísmo, do feminismo, do barroco, do diferente e pelo repúdio da crucificação, da massificação, do descontrolo demográfico... numa terra onde se morria de fome.

“Como atingir a paz com os olhos postos num só deus, se as guerras são fornecidas pela nossa fé na vitória sobre a fé dos outros?”, interrogava, interrogava-se.

A participação política foi-lhe, desde muito cedo, uma constante.
Introduzida nos círculos da Oposição (fase em que foi jornalista), depressa se destacou na luta contra a Ditadura, apoiando as campanhas de Norton de Matos e de Humberto Delgado.
Após a Revolução dos Cravos, aceita ser deputada independente.

“Fui deputada porque me pediram para introduzir o discurso cultural no Parlamento”

Utilizando como ninguém a riquíssima tradição cultural de escárnio e maldizer da nossa poesia.

As causas, as pessoas do coração e do sonho, da fé, tinham-na do seu lado; as causas, as pessoas da manipulação, do utilitarismo, da serventia, conheciam-lhe a cólera, o chiste, a indignação... que fazia penetrar com mestria e elegância
.
“Não me mato
Antes me zango
Até ficar um cato
Quem me tocar, maldito
Que se pique”

Glória te seja dada, Natália Correia, agora e sempre... enfim!


Maria Petronilho

Jacques BREL (1929-1978)





JACQUES BRELL?
Un cri.
UM GRITO.
Une déchirure.
ALGO QUE SE RASGA.
Une désespérance optimiste.
UMA DESESPERANÇA OPTIMISTA.
Une fraternité douloureuse.
UMA FRATERNIDADE DOLOROSA.
Un écorché vif.
UM APRISIONADO VIVO
Un rebelle tendre .
UM REBELDE TERNO








Né à Bruxelles dans une famille d'industriels, Jacques Brel
NASCIDO EM BRUXELAS NUMA FAMÍLIA DE INDUSTRIAIS, JACQUES BRELL
s'intéresse très tôt à la chanson et vient à
INTERESSA-SE MUITO CEDO PELA CANÇÃO E VAI PARA PARIS EM 1953.
Paris en 1953. Il débute au théâtre des Trois-Baudets,
ESTREIA-SE NO TEATRO TROIS-BAUDETS.
enregistre quelques disques, mais reste pratiquement inconnu
GRAVA ALGUNS DISCOS, MAS CONTINUA PRÁTICAMENTE DESCONHECIDO
jusqu'en 1957.
ATÉ 1957.
Le succès de Quand on n'a que l'amour lui assure alors un certain
O SUCESSO DE QUANDO NÃO SE TEM SENÃO UM AMOR ASSEGURA-LHE ENTÃO UM CERTO
public, d'une coloration catholique qui se retrouve dans les grandes
PÚBLICO, DE UMA COLORAÇÃO CATÓLICA QUE SE ENCONTRA NAS GRANDES
tendances de ses chansons : l'amitié, la fraternité...
TENDÊNCIAS DAS SUAS CANÇÕES: A AMIZADE, A FRATERNIDADE...
Il va peu à peu prendre ses distances par rapport à
VAI AOS POUCOS MARCANDO AS SUAS DISTÂNCIAS EM RELAÇÃO
cette inspiration première;
A ESTA PRIMEIRA INSPIRAÇÃO;
s'il reste fidèle au thème de l'amitié (Jef), il
SE CONTINUA FIEL AO TEMA DA AMIZADE (JEF),
passe lentement d'un amour idéalisé à une solide misogynie
PASSA LENTAMENTE DE UM AMOR IDEALIZADO A UMA SÓLIDA MISOGENIA
(Les Biches), du déisme à l'anticléricalisme
(AS BICHAS), DO DEÍSMO AO ANTI CLERICALISMO
(Les Bigotes, À mon dernier repas) et d'une certaine
(AS HÓSTIAS, NA MINHA ÚLTIMA REFEIÇÃO) E DE UMA CERTA
à un anticonformisme qui ira croissant (Les
MORDACIDADE A UM ANTI CONFORMISMO QUE IRÁ CRESCENDO
Bourgeois, Le Moribond). De grands succès jalonnent sa
(OS BURGUESES, O MORIBUNDO). GRANDES SUCESSOS COROAM A SUA CARREIRA:
carrière : La Valse à mille temps (1959), Les Bourgeois
A VALSA A MIL TEMPOS (1959), OS BURGUESES (1961),

(1961), Amsterdam (1965).
AMESTERDAM (1965).


Son oeuvre, qui ne se distingue pas particulièrement
A SUA OBRA NÃO SE DESTINGUE PARTICULARMENTE PELA BUSCA MELÓDICA,
par la recherche mélodique, brille surtout par une science
BRILHA SOBRETUDO PELA CIÊNCIA DO TEXTO E DO JOGO DE PALAVRAS
du texte et du jeu de mots qui fonctionne essentiellement
QUE FUNCIONA ESSENCIALMENTE
sur le principe des oppositions binaires
SOBRE O PRINCÍPIO DAS OPOSIÇÕES BINÁRIAS
(le noir et le blanc, les paires minimales approximatives)
(O NEGRO E O BRANCO, OS PARES MINIMALISTAS APROXIMATIVOS)
et sur une certaine prédilection pour le néologisme.
E SOBRE UMA CERTA PREDILECÇÃO PELO NEOLOGISMO.
Mais c'est sur scène que Brel frappe surtout, apportant
MAS É EM CENA QUE BRELL ARREBATA SOBRETUDO, TRAZENDO
à ses chansons une nouvelle dimension,
ÀS SUAS CANÇÕES UMA NOVA DIMENSÃO,
gestuelle, grâce à un travail d'expression très
GESTUAL, GRAÇAS A UM TRABALHO DE EXPRESSÃO
minutieusement préparé.
MINUCIOSAMENTE PREPARADO.


Jacques Brel a quitté la scène en 1967, après avoir
jACQUES BRELL DEIXOU A CENA EM 1967, DEPOIS DE TER INTREPRETADO
interprété une comédie musicale (L'Homme de
UMA COMÉDIA MUSICAL (O HOMEM DE LA MANCHA),
la Mancha), pour se consacrer au cinéma.
PARA SE CONSAGRAR AO CINEMA.
Il continue cependant à enregistrer ou à réenregistrer
CONTINUA ENTRETANTO A GRAVAR OU A REGRAVAR
des chansons (Vesoul, 1968 ; L'Enfance, 1973).
CANÇÕES (VESÚVIO, 1968; A INFÂNCIA, 1973).


Après quatre ans de «retraite» aux îles Marquises, il enregistre
APÓS QUATRO ANOS "EM RETIRO" NAS ILHAS MARQUISES, GRAVA
en 1977 un album qui rassemble tous les thèmes de son oeuvre :
EM 1977 UM ÁLBUM QUE REUNE TODOS OS TEMAS DA SUA OBRA
l'amitié (Jojo), la misogynie (Les Remparts de Varsovie, Le
A AMIIZADE, A MISOGENIA, A MORTE E A GENEROSIDADE.
Lion), la mort (Vieillir) et la générosité
(Jaurès).

Jacques Brel a mené parallèlement une carrière d'acteur
JACQUES BRELL LEVOU PARALELAMENTE UMA CARREIRA DE ACTOR.
(Mon Oncle Benjamin, de Molinaro; Les Risques du métier, de Cayatte) et
de réalisateur (Franz, 1972).



(Biographie de «L'Encyclopedia Universalis»)
BIOGRAFIA DA "ENCICLOPÉDIA UNIVERSALIS", QUE ENCONTREI NO ENDEREÇO http://membres.lycos.fr/herweb/brel0.htm
E TRADUZI LIVREMENTE, NUM REPENTE, SEM DICIONÁRIO, QUE NUNCA TIVE...
MAS COM A MINHA ALMA, SENSIBILIDADE E CARINHO


Maria Petronilho

"NENHUM SER IMENSO É SIMPLES"
(homenagem a Frida Kalo)




Falar de Frida Kalo é revelar a complexidade da alma feminina, tantas vezes oculta, porém exposta por esta mulher de uma força, tenacidade, poder imensos. Percorrer a sua vida e a sua obra é como olhar-se num duplo espelho: no espelho de seu interior que insistentemente nos mostra; olhar-se no espelho de mistério que habita ocultamente cada mulher, porém só ousa desvendar uma grande alma.

Frida sofreu desde cedo a sina do sofrimento. Aos seis anos a poliomielite deixa-a com uma perna definhada. Aos dezanove um terrível acidente ferroviário arruina para sempre a sua saúde. Mas muito mais pode a mente de uma mulher de vontade férrea!

Apaixonada, casa com o pintor Diego Rivera, famoso e com o dobro da sua idade. Em alguns dos seus quadros mostra o amor obsessivo que por ele nutria; perdoando-lhe infedelidades, levando-a ao divórcio e a recidivo casamento meses mais tarde. Pensa nele constantemente; dimui-se perante o seu talento: observe-se o quadro “Frida Kahlo y Diego Rivera”, 1931, ele enorme, de grandes pés bem assentes na terra e ela como que uma menina de mão dada, flutuante a seu lado... porém no amor feminino há sempre algo de materno, um amor telúrico que abrange tudo. quem nos deu o ser e o ser que damos: patentes no quadro El abrazo de amor de El universo, la tierra (México), Yo, Diego y el señor Xólotl, 1949.

Frida autoretratou-se em todas as fases da sua vida, mesmo aquelas que apenas pode adivinhar: o seu nascimento; o aleitamento pela sua ama - porque nada a podia impedir de se doar, mostrando, como ela dizia quem conhecia melhor - Frida ela-mesma.

Dualidade de mulher,Las dos Fridas, 1939, assume o seu consciente e os assomos do inconsciente na sua pintura Lo que vi en el agua o Lo que el agua me dio, 1938 -não, não lhe chamassem surrealismo, "eu pinto a minha realidade", e com que frontalidade o fazia! Com a mesma com que assumidamente se declarava uma mulher sensual Yo y mis pericos, 1941 Autorretrato con monos, 1943, porém enferma de solidão Autorretrato con mono, 1938, rebelando-se contra tal Autorretrato con pelo cortado, 1940. -qual a fêmea que rejeita os seus instintos senão a que deixa reprimir-se.

Frieda deixar-se reprimir?! Nunca! Por nada! Nem o mais voraz sofrimento, as sucessivas cirurgias cujo sofrimento físico também não dissimula, antes pungentemente revela. Como se dissesse: sou uma mulher por inteiro, sim: sofro e amo; quero ser mãe e assumo ser mulher, de cabeça bem erguida!

Esta pintora mexicana é mais que um exemplo, é um símbolo de força e persistência. É alguém que desentranhou o seu âmago e o mostrou destemidamente ao mundo. A vida deixou-a liberta e a nós o sonho de nos tornarmos mais fortes; guiando os nossos instintos com inteligência; as nossas emoções sem vergonha.

Viva Frida Kahlo Mulher, Atitude e Exemplo!


Maria Petronilho

Sobre a Obra Poética de Gustavo Dourado



Lucidez.
A clareza explícita em aparentes meandros.
As palavras abrem e expõem as ideias que ocultavam - que o-cultavam?
Também a clara luz se decompões nas sete cores do arco íris e de novo o prisma as reúne na única e primeira branca luz.
Gustavo Dourado tem o poder de desencantar ternura na angústia.
Gusta.vo d.oura.do: Em tudo encontro o poeta definido:Inevitável amor, transparente e precioso; nu; vestido de subtil claridade.
De um lírico som, imagem = pureza. Em cada ponto; em cada letra ... respira poesia e é ar que se respira.
Fonte que flui; água de beber e sede viva. Entendê-lo é como olhar o sol e sentir o calor, os pingos da chuva.
Escutar o mar e sentir o berço.
As estações e rotações.
Os universos tocando-se humana e divinamente – nada os separa.
O entendimento sobrepõe-se.

Escutar o mar e sentir o berço.
A Voz soando no bate-que-bate do coração!


Maria Petronilho

"Louredo"




Naquele tempo não havia em Monsanto qualquer estrada, a não ser as deixadas pelos romanos, de lajes negras e lisinhas de tão gastas, que permaneciam pregadas no chão desde há centos e centos de anos.
O Louredo era uma casa isolada no sopé do “monte-Santo” .
Ao redor, apenas as dependências devidas a uma casa de lavoura: palheiros, cabanal, casa do forno, e bancadas de cantaria monolíticas, imensas, ao livre.
Terreiro, sobreiras esparsas e vários muros de pedra solta.
A casa de grossas paredes negras, tinha dois pisos e balcão alto, sem amparo.
No andar térreo, as lojas, onde se guardavam os potes de barro com os mantimentos: azeite, azeitona, enchidos, salgadeiras, tábuas de queijos, arcas com os cereais de moinho. Os frutos secos ao sol sobre esteiras no Outono.
No piso superior, a cozinha de chaminé, o largo lar, fumeiro estendido por cima durante o Inverno, a sala e os pequenos quartos de tradição, com cortinas.
A rodear o rectângulo da porta e das janelas, uma tarja de tinta azul, da mesma cor da porta de trinco, que nunca se fechava à chave.
Dos lados da janela maior, incrustados na parede, dois aros de ferro ostentavam craveiros de viçosos cravos rubros, pendentes, odoríferos.
Entre o lado norte e o palheiro, de duas divisões, a primeira para guardar o feno, a segunda os animais: burras, cabras e galinhas, um bosque inusitado e inacessível de esplendorosas mimosas sensitivas, como que a desafiar-nos, pois a porta que dava acesso a esse jardim dourado, estava apenas disponível no fim da primavera, quando as reservas de feno chegavam ao termo e se armazenava nova colheita.
Um pouco adiante, as furdas dos preciosos suínos, esterqueira para fermentação do estrume, e duas cancelas: a de ferro, para o caminho que dava acesso à fonte e por onde passavam os animais e os carros de bois e outra de madeira, mais estreita, mesmo ao pé da porta, por onde se ia para a horta, o tanque, o poço da nora.
Muitas árvores de variadas espécies.
Flores plantadas a esmo, crescendo de forma quase miraculosa.
A leira dos morangos, com a cameleira ao centro.
E, à direita, algo que maravilhava: era uma árvore de sombra, folha muito recortada, que na primavera dava resplandecentes cachos de flores brancas, as quais eram apanhadas, laboriosamente separadas as pétalas, e fritas em pastéis dos mais deliciosos que imaginar-se possa!
Depois da horta, a vinha.
As árvores eram escolhidas de forma a produzir fruta todo o ano: havia figos de Inverno, cor de romã por dentro e maçãs crespas, enormes, que supostamente deveriam ser consumidas no Inverno, mas eram sempre intragáveis.
A romãzeira, de enormes flores escarlates, era a minha paixão.
E as pétalas das flores dos marmeleiros, uma delícia ... degustavam-se às escondidas.
Com os diospiros, havia que ter cautela!
Ou deixavam a língua carraspana ou a gente se lambuzava irremediavelmente de doçura amarela, que acabaria por nos valer uma sova!
Tinha um grande desgosto a minha avó: por causa das geadas e nevões, queimavam-se-lhe todas as amendoeiras que, persistentemente, plantava.
Ora reza a lenda que tais árvores foram trazidas por um mouro do sul enamorado por uma donzela nórdica que definhava saudosa da alvura a que estava habituada na sua terra....

Costume de Natal: "O Beijar do Menino"


O fim de Novembro era ainda tempo de azáfama. No alambique de cobre, cujo bojo reluzente assentava na fornalha, o bagaço de uva cozia interminavelmente. Do cano, que atravessava um comprido tanque de alvenaria, caía pingo a pingo, do outro lado, a água-ardente.
Provavam e faziam caretas, aventavam os restos dos copos, até que o pingo se transformava em fio e o líquido era recolhido num funil de zinco enfiado no gargalo dos garrafões empalhados pela paciência do António Figueiredo.
As bilhas do azeite chegavam da Vila, no dorso dos burros, que inteligentemente escolhiam com os cascos um caminho por entre as pedras que resvalavam ladeira abaixo.
Na loja, media-se e guardava-se em talhas de barro, parecidas na minha imaginação, àquelas aonde se escondiam os quarenta ladrões de Ali Babá quando planeavam os assaltos.
As borras turvas iam para um caldeirão enorme, suspenso na ponta de um gancho farrusco, cuja corrente se perdia no escuro incógnito.
Alteava-se o fogo, juntava-se soda cáustica comprada na mercearia do adro. Alguém tomava assento num tropeço de cortiça e, o dia inteiro, vira que vira com um pau, até que a mistura esbranquiçada se tornava espessa, era deixada a arrefecer, cortada em barras e arrumada em prateleiras.
De noite as geadas caíam e as manhãs acordavam branquinhas e frias. Até o cimo do castelo se embrulhava num manto cinzento.
Passara há pouco o tempo do reboliço das dornas e pipas, atravancando o terreiro de baixo.
Mil vezes esfregadas, acertados a martelo os círculos dos aros, vedadas a pez as tampas redondas e torneiras, embutidas as rolhas de cortiça, lá repousavam enfim na paz misteriosa da fermentação.
À medida que o frio se intensificava, os cânticos na missa dos Domingos, iam tomando maior alegria.
Eu, de véu branco entre os véus negros, saía da minha habitual abstracção, distraída com os movimentos do incensório, o palavreado inteligível do padre, que as senhoras muito sérias e compostas fingiam acompanhar nos missais, mesmo se analfabetas. Iam respondendo sabe-se lá o quê, num infindável latinório ora pró nobis....
Eu ajoelhava, juntas as mãos em frente do peito conforme me era ordenado, persignava-me com a destra, saltitava ora num pé ora no outro, enfadada.
Mas por este tempo, algo me atraía: as cantigas!
Cantigas que eu sabia, pois as lera nos livros do meu avô e não eram lamentos intermináveis, mas cantos alegres, cujo acento se prolongava muito nas últimas sílabas:
“Ó meu menino Jesus
Ó meu Menino tão belo
Logo tu foste nascer
No tempo do caramelo”
E, escorregando no caramelo, a água que embebia a terra saturada e os musgos, gelando os caminhos, voltava enregelada, sentando-me de mãos estendidas frente ás chamas da lareira.
Uma manhã havia em que a minha avó decretava que a Henriqueta pegasse numa escova de piaçaba, numa barra de sabão branca, e esfregasse a casa de ponta a ponta.
O Vicente armava com tábuas uma mesa comprida ao cimo da escada.
Minha avó abria as arcas e retirava as preciosas toalhas bordadas, ornadas de rendas finas.
Armava-se o “altar”, com pratos repletos de doces, douradas broas de mel, filhós, frutos e flores, garrafas de licores pacientemente macerados em garrafas cujos topos eram selados com cera.
A bisavó, na sua casaquinha com folhinho na cintura sobre saia rodada, tomava assento de rainha e esperava.
Minha avó, a roupa mais negra que nunca, remirava tudo, alisava aqui uma prega, compunha e ajeitava defeitos que só ela via.
Por fim, o padre chegava, montado num burro pardo, com o sacristão e os meninos de opa vermelha, palmilhando atrás.
Desmontava no terreiro, tirava do alforge um embrulho de pano branco, subia o balcão, onde nos enfileirávamos todos.
Enquanto o prior deitava um olhar de viés à mesa que esperava no interior, o sacristão desvendava a imagem de um menino nuzinho de dentro do pano e colocava-lha nas mãos.
Os meninos desencantavam a caldeirinha e o aspersório da água benta.
Fazia-se silêncio, colocávamos os véus e ajoelhados, beijávamos a imagem fria.
O padre abençoava tudo, murmurando monotonamente qualquer coisa que não se conseguia perceber.
A seguir, embrulhava de novo o menino, passava-o ao sacristão, que ia arrumá-lo no alforge e começava o alvoroço:
- Senhor prior faça favor de entrar! Prove disto, coma daquilo...
O senhor prior provava de tudo, se provava!
Ia abanando a cabeça, ignorando os guardanapos, limpava as mãos à batina e fazia sinal aos meninos, que iam levando o que restava nos pratos e os despejando nos alforges.
Provava o licor de laranja, de tirinhas cortadas muito finas, e dava estalidos com a língua.
Depois o de ginja, sempre abanando a cabeça, que sim, que sim, mas estava com pressa...
Corado, empanzinado como um cortiço, despedia-se das velhas, que o miravam com um sorriso contemplativo, as mãos cruzadas sobre as barrigas redondas.
Tão subitamente como chegara, assim partia o prior, o Menino no alforge repleto de doces, ao menos protegido pelo eterno pano branco e amarrotado, às três pancadas.
O padre de preto tomava assento sobre a albarda do burro e o sacristão e os meninos de opas vermelhas seguiam-nos palmilhando, pelos descampados agora no lusco-fusco, esteva aqui, tojo acolá, enquanto a geada caía, cobrindo tudo de um branco uniforme e frio.

Costumes de Natal :
"O Madeiro e a Missa do Galo"



Era no adro da igreja que o Natal se festejava.
Muito tempo antes se sorteara entre os lavradores, a honra de oferecer a árvore para a festa.
Pelo vigésimo quarto dia de Dezembro, juntavam-se os homens da aldeia. Iam em romaria, de pé sobre uma carroça que, mesmo indo leve, gemia vereda fora.
No bornal, pão e chouriço, um naco de presunto, um punhado de azeitonas.
E o garrafão de tinto, empalhado, preso aos varais pela asa.
Os machados afiados jaziam a um canto.
Contavam-se pilhérias. Alinhavam-se umas quadras. Soltavam-se umas cantigas.
Soavam risos e palmas.
No campo, erguia-se altiva a árvore premiada, que seria abatida no seu fulgor e pujança.
Os homens saltavam alegres do tabuado, rosetas nas faces, machados em riste.
Erguiam-nos bem alto acima da cabeça, nas mãos calosas, e desferiam o primeiro golpe:
- hemp!
Faziam fila, o segundo golpe soava:
- Hemp!
E assim se consumava o sacrifício, por longo tempo, soando em meio ao silêncio
- Hemp!
- Hemp!

Até que chegava a hora do golpe de misericórdia.
Faziam grande algazarra, berravam-se cautelas, davam-se passadas largas, retrocedendo às fosquinhas... como se esta fosse a primeira árvore derrubada nas suas vidas!
Uma vez caída, as enchós nas mãos experientes, podavam os verdes ramos.
Iam-se buscar cordas, que se atavam aos extremos e se puxavam aos ombros.
- Eia..!. Eia...! num ritmo cadenciado pelo esforço.
Içava-se o tronco parra o carro e passava-se à merenda.
Redobrava a alegria, atiçada pela boa pinga.
Enfim, rumava-se à vila.
A carroça, de pesada, mais gemia, lentamente, às passadas retesas das bestas.
Chegavam em frente da igreja, onde o padre os esperava, de aspersório e caldeirinha.
Tiravam com grande pompa o madeiro e depunham-no no adro.
O padre chegava-se perto, andava em volta examinando-o, ora abanando a cabeça ora franzindo o sobrolho.
Por fim conformado, mas nunca satisfeito, aspergia de um lado ao outro.
Borrifava-o ao de leve com água benta, murmurando sabe-se lá que mistérios.
E recolhia-se ao agasalho da ceia.
Juntava-se alguma lenha e ateava-se o fogo ao lenho.
A noite vinha descendo, a seiva ia crepitando, se derramando, cedendo.
Na torre, tocava o sino:
- Dling dlong dling dlong... dling!
De todas as direcções vinha o povo convergindo.
Elas de xaile de marino com franjas, lenço de arabescos atado debaixo do queixo; eles de capote ou samarra, gola de pele de raposa, cajado na mão direita.
Passada a passada, iam tomando lugar em volta do fogo, que resplandecia e soltava estrelas de ouro no negrume da noite fria.
Elas entravam na igreja.
Eles juntavam-se mais: tirava de sobre o ombro a garrafa de água-ardente, atada por um baraço à asa tosca de um copo.
Passavam-na de mão em mão, para aquecer a garganta, que protestava tossindo:
- Está mesmo boa!
- Mesmo boa, a bagaceira! Replicava outro, sério.
De dentro do templo, soava uma cantilena, uma voz se erguia, outras se lhe juntavam em coro:
“Da vara nasceu a vara
Da vara nasceu a flor
E da flor nasceu Maria
De Maria o redentor”
Subia o bafo no ar.
As crianças, agarradas à barra da saia das mães, esfregavam os olhos de sono.
O padre movia-se com lentidão, de paramentos brancos, bordados a ouro.
O sacristão e os meninos de coro, faziam gestos servis: ora lhe depunham nas mãos gorduchas e inertes o cálice; ora lho retiravam; mudavam a folha do livro; chegavam-lhe o incensório fumegante, que ele agitava com uma lentidão hipnótica, acima abaixo, esquerda direita... e os olhos dos fiéis seguiam-no, vidrados.
Murmurava algo que se não ouvia... e mesmo que ouvisse, quem destrinçaria palavra daquele fraseado monótono?!
Nas filas, as pessoas faziam gestos automáticos a um tempo, como se manejadas pelos fios invisíveis de marionetas:
Ora se erguiam, ora se ajoelhavam, ora se sentavam esperando...iam murmurando algo inteligível, de olhos postos no vago.
Excepto se encontravam outro olhar e se aproveitava o ensejo para um breve mexerico:
- Então a vizinha já sabe o que dizem daquela? Dizem que ela e o António é um Deus nos acuda!
- Ai coitado do marido, que é corno e ainda não sabe!
Subentendiam-se olhares contristados, misturados de sorrisos à socapa.
Uma cotovelada certeira, fazia-las retomar o lugar em cena e a deixa na ladainha.
Respondiam automaticamente o que não sabiam, ao que nem escutavam.
Era a tradição que as movia, como um mágico coreografo.
No fim, lá iam em fila deitar a ponta da língua de fora, com ar contrito, em fileira cerrada.
O padre, retirava do fundo mágico de um cálice de ouro, uma hóstia precariamente segura entre o polegar e o indicador e depunha-a complacentemente, de boca em boca, com ar de asco.
Se uma moçoila se apresentava, rosada, na sua frente, os olhinhos chispavam-lhe concupiscentes, como quem diz:
- Toma lá, mas não foi para tomar a sagrada hóstia que Deus te deus te fez uma boca tão redondinha... ai se te apanho a jeito!
De língua recolhida no céu-da-boca, não fossem os dentes macular inadvertidamente a sagrada ceia, a boca seca recusando-se a engoli-la como a uma pastilha, elas retiravam-se, de cabeça baixa, dando a Deus o sacrifício do acto por mor dos seus pecados.
Mais uma bênção, mais uma vénia e ala... para a saída, às arrecuas quase até chegar à porta.
Cá fora, risadas altas, em volta das altas chamas!
Rubras as faces e as brasas, que iam consumindo o tronco, numa incandescência rubra, varando-o de lado a lado.
Os homens olhavam as mulheres, contrariadas.
Elas aguardavam-nos, em silêncio, a alguns passos.
Acabara-se a festa... Missa do Galo e Madeiro, só para o próximo ano!
Cada um se aproximava da sua consorte, sem uma palavra, um gesto.
O hábito acertava-lhes os passos, que soavam caminho abaixo, rumo ao casebre de pedra nua e telha vã, à enxerga de palha sobre os ferros pintados da cama, onde se consumaria o acto que seria Natal no fim do verão.

segunda-feira, abril 05, 2004


Diamante





...
Lembro-me vagamente de ser transportada por dois bombeiros muito jovens:
Ela conduzia e ele sentou-se ao meu lado.
Disse-me que me deitasse na maca, mas eu sentia falta de ar.
Armou a cadeira, e fixou-a nas traseiras da ambulância.
Pegou na minha mão. Perguntei-lhe baixinho o nome e a idade.
Tinha a idade da minha filha. Sorrimos.
Deixaram-me no corredor do Hospital, mesmo em frente da sala do assistente do meu cardiologista.
O meu grande amigo, provera a tudo:
Reservara-me (reserva-me) uma caminha para o caso de me sentir aflita.
Dera-me o número de casa, fizera-me inúmeras recomendações; medicação rigorosa,ensinou-me como aplicar as injecções a mim própria.
Não pude falar com ele, porque depois da dor atroz sob o esterno, ficara sem poder falar. Balbuciei auxílio aos bombeiros, que com muito custo me entenderam dizer a morada.
Escrevia... mas com a grafia que aprendera nos livros antigos do avô Petronilho... grafia onde coisa era “cousa” e farmácia “pharmácia”
Trocara breves impressões com o meu primo Carlos, médico com longa prática de cardíaco... acabou o doutoramento no ano passado, após vinte e três dias de lhe terem colocado um outro coração a bater dentro do peito.
Meu primo imaginava que eu tivesse receio: Explicou-me em pormenor como me fariam a angiografia e que não doía nada... eu ri:
- Mas, Carlos, eu não temo agulhinhas!
Volto ao corredor do Hospital, à cadeira de rodas e ao rebuliço causado por um internamento que urgia, sem que ninguém ou documento algum me acompanhasse.
Ia de roupão. Não pudera tomar banho mas conseguira, devagarinho, meter numa pequena bolsa a escova de dentes, um bloco, uma esferográfica e três livros:
Dois de Fernando Pessoa e um de Isabel Allende.
Passou por mim um senhor que me olhou com um entendimento indizível, acenou respeitosamente com a cabeça e, sem uma palavra, seguiu.
Senti-me confortada.
As enfermeiras andavam numa lufa-lufa: mas eu era doente e amiga do Professor Ravara e estava no lugar que me indicara: Medicina 1, o que ele chefia.
A enfermaria era pequena: tinha três camas.
Numa delas, um casal despedia-se de uma senhora idosa.
No visor da máquina junto a ela as linhas coloridas seguiam vias desconhecidas.
Soava um tiq-tiq-tiq, em simultâneo com as linhas quebradas por ângulos, para mim enigmáticos, que subiam, desciam, subiam, seguiam...
Aos pés da cama um nome: Noémia.
Uma enfermeira chegou e, com suavidade, convidou o casal a sair, murmurando:
- “Vão tranquilos, ela já está inconsciente, não sente nada...”
Na outra cama, uma menina dos seus vinte anos.
Ligada ao soro, levantava-se de vez em quando, tinha dores, era de uma simpatiatão radiosa que parecia florir o quarto.
Lia um livro, ou fingia ler.
Telefonava à mãe.
Aos pés da cama, um nome:
Marina.
A D. Noémia estava muito agitada.
Afligia-a muito sentir os pulsos atados às grades levantadas da cama.
Pedia para fazer xixi... e Marina ia junto dela, dizendo-lhe muito docemente:
“Faça na fraldinha, vá lá, D. Noémia, tem fraldinha, faça...”
Depois, a D. Noémia ficava longo tempo longe.
Um pombo torquaz alojara-se-lhe na garganta. Tentava enrolar os lençóis de forma obstinada.
De quando em vez, falava.
Falava com muita gente: com as filhas, os genros, o marido, os criados...preocupavam-na todas as tarefas.
Decidida e autoritária, chamava.
Dava ordens.
De repente, caía na abstracção total.
Agitava os pulsos.
Quedava-se.
Os olhos quase sempre fechados mexiam-se muito.
Suplicava que lhe desatassem os pulsos, por favor, por favor!
Aquilo não era coisa que se fizesse a ninguém!
Eu, que divagava ora ali ora noutro lado qualquer, escutei a catequista ou a professora de religião e moral dizer:
- Nunca se deve negar o último desejo de um moribundo!
E vi o desenho idiota do catecismo: de um lado chamas, do outro um padre, um homem agonizante ao meio.
Não sei como desci, peguei na mão da D. Noémia, lhe desamarrei a gaze dos pulsos.
A moça tocou à campainha, enquanto a senhora tentava libertar-se dos eléctrodos.
Olhei profundamente o rosto da senhora e pensei: A morte está na tua frente: Encara-a!
Encarei e era tranquila, doce, pacífica.
A enfermeira alarmou-se, pediu auxílio.
Achei-me de novo na cama, com a máscara de oxigénio, e um enfermeiro, com os olhos mais azuis e compreensivos do mundo, disse-me:
- Todos os sensíveis são julgados loucos, por serem diferentes.
A D. Noémia foi ligada a tudo o que era preciso: à máquina, às grades da cama... desprendia-se da vida.
A moça, da sua cama, explicou que a senhora tinha mais de noventa anos e fora uma grande fazendeira em Angola...
O tempo não existia, mas a D. Noémia percorria a vida em ordem inversa, ficando mais jovem à medida que o tic-tic-tic abrandava e as linhas no visor se iam tornando menos quebradas, de ângulos mais espaçados.
Eu, ora me apercebia disto tudo ora mergulhava no mais profundo de quanto profundo possa ser o sono.
Falava com a minha filha, ralhei com ela, sentada na beira da cama, de pernas penduradas na borda... mas num lapso vi que as grades da cama estavam levantadas.
Peguei no livro de Fernando Pessoa, deixei-o aberto sobre o vão das páginas, às cegas.
A menina sorria-me e olhava se eu pegava no bloco e escrevia... Perguntou-me porquê.
Eu disse-lhe que só sabia escrever.
O último poema Chama-se “diamante”... Ela pediu-mo, eu dediquei-lho mas recomendei-lhe que o copiasse, pois gostava de guardar certos papéis...Prometeu que sim.
Cada vez ia ficando mais tempo numa doce ausência.
Sentia-me um rio a percorrer um deserto, dividindo-se em muitos braços, como um delta... e ia sendo sorvida no nada, no absoluto nada, doce, tão docemente...na paz completa, na ausência de todo o sofrimento.
Percebi que estava morrendo e perguntei-me:
- Mas onde estará Deus nesta sala?!
A D. Noémia, que tinha atravessado a sua vida inteira, e recomeçara a viver agora, terminou balbuciando
- “pa-pa-pa-pá... ma-ma-ma-mã »… e os tic-tic-tic que já eram pingos de som,tornaram-se num zumbido.
E o rio ia sendo absorvido... e eu deixava de ser e minhas últimas perguntasforam:
- Aquele homem seria mesmo meu pai?
Depois, no fio derradeiro:
- Será que comecei por falar ou escrever?
Depois a paz, nem branca, nem negra, nem nada... paz absoluta...
Nada.
Quanto tempo depois me dei conta de mim?
Estava onde?
Nua sob um lençol, de fralda, ligada a fios e tubos.
Um enfermeiro disse-me, de muito longe:
- Agora vamos drogá-la a valer, sim?
... Deslizaram-me para uma sala em penumbra.
No monitor do computador, corredores cinzentos perpassavam.... Eu, drogada,tentava olhar...
O médico sorriu:
- Com que então a ver o seu coração por dentro?!
Movia-se!
Depois o nada... o longo nada... de quando em vez pressentia movimento, as enfermeiras murmuraram entre si:
- Já viste, no dia de hoje estamos cheios?!
... Seria dia de Ano Novo.
Doía-me muito a garganta.
Tentei uma posição mais confortável.
Tentei afastar a máscara transparente, que incomodava...
- Tch tch thc... não pode!
Tem de ficar de modo a que o oxigénio lhe encha os pulmões, e sem a máscaraainda não consegue!
Disseram-me que o Professor Ravara telefonara.
Não sei como, vi-me de novo na primeira cama, na enfermaria onde dera entrada.
Sozinha.
A cama da D. Noémia estava impecavelmente arrumada e anónima.
A de Marina... onde está Marina?
- Marina teve alta!
... Marina, levaste o meu último poema... onde estás, que lhe faltam os dois últimos versos, que deixei escritos no bloco e ainda tenho:
“Reviver
Partir para onde?”
Uma enfermeira, pegou no meu livro e disse-me:
- Olhe o que estava a ler:
“O poeta é um fingidor”
... Olhou-me e sorriu.

"....De Ver Poesia"




A minha mãe morreu em Abril... nunca a primavera foi tão linda!
Por todo o lado havia flores brancas e roxas, que sempre lá estiveram mas
eu - que tinha seis anos - nunca tantas vira!
As brancas eram dos espinheiros, breves como os flocos de neve ...que sempre
tentava guardar nas palmas das mãos fechadas.
As outras eram lírios e açucenas - que cobriam o vestido de noiva com que
minha mãe seguiria para sempre vestida.
Houve outra primavera quase tão linda: cheirava intensamente a eucalipto e
os campos eram verdes verdes - o rio mais azul que nunca!
Eu passava na minha rotina, pesada com a minha filha, que nasceu noutro
Abril, dezanove anos depois.

"Os saltimbancos"

Chegaram em carroças.

Os miúdos da aldeia medieval onde estive entregue ao abandono, corriam atrás, rindo muito dos velhos chapéus de palha que os burros levavam enfiados nas cabeças, as orelhas felpudas surgindo por entre buracos, disfarçados com flores de papel desbotado.

À noite, lá fomos: eu, a minha avó e a Henriqueta, juntar-nos à roda de povo no pequenino largo.

As pessoas, de escuro no escuro, ficaram de pé.

Os aparelhos eram cadeiras, mesas e duas estacas espetadas no chão de terra batida, uma corda esticada entre elas.

Os artistas vestiam farrapos, velhos e rotos.

Na roda dos pobres, aquela miséria extrema provocou comentários.

Sobretudo a magreza da menina que atravessou de braços no ar, a corda. Levezinha como uma borboleta, ameaçando partir a voar.

A contorcionista vestia um maillôt e estava tão grávida que as mulheres cochichavam entre si:

- Coitados, já começam a trabalhar na barriga da mãe.

Na meia-luz dos lampiões, pouco mais vi que a lástima.

Escutava o que se dizia à volta, e no fim um menino pequeno e sério passou por entre todos o chapéu que talvez fosse do pai, que apresentara o espectáculo, sem fausto.

Os homens remexeram as moedas raras no fundo dos bolsos das calças surradas, as mulheres remexeram as bolsas de feltro que ainda se usavam por baixo dos aventais.

E os tostões, pequeninos e negros, iam caindo um a um, dois a dois... com esforço, num mudo entendimento da fome compartilhada.

Só as crianças sorriram e bateram palmas. Os artistas aplaudiram no fim a plateia improvisada.

Nunca, nunca na minha vida gostei de circo!

Nem no Coliseu, por detrás da praça dos Restauradores, onde ofereciam bilhetes no Natal aos filhos dos funcionários, nem na TV do Circo do Mónaco, nem do magnífico circo de Moscovo.

Aquele primeiro que vi e ainda vejo por detrás das lágrimas que sinto bastou-me para toda a vida!

"Conto de Um Natal"





Até as outras crianças, quando nos viam, fugiam de nós ou nos atiravam pedras e gritavam sempre:
- fora, maltrapilhos!
Era o que ouviam dizer ás mães quando, famintos, nos atrevíamos a bater às portas das casas pequenas do bairro.
Andávamos quase nus, descalços, sujos, feridos, o cabelo desgrenhado, o estômago vazio, mas sempre com a boca a sorrir, sempre dispostos a fazer diabruras àqueles que nos escorraçavam.
Éramos três: o Ruivo e a Sardenta eram irmãos. Tinham ambos as cabeças vermelhas e as caras salpicadas de pontinhos, muitos pontinhos negros. Ela era a mais velha, tinha uns nove anos. Isso dava-lhe uma certa importância e autoridade quando, por uma caixa velha encontrada no lixo, discutíamos.
Eu era a mais nova e vivia com eles na barraca, depois da morte dos meus pais, que aliás nunca tinham querido saber muito de mim. Mas como a caridade se vê sobretudo nos mais pobres, eles lá conseguiram arranjar-me um lugar na sua miserável casa já cheia.
Num dia de inverno, frio, escuro e triste, depois de termos procurado debaixo de chuva em todas as latas do lixo, de termos roubado uma laranja a um vendedor ambulante e conseguido um pão fresco na padaria da esquina, escondemo-nos na escada de um prédio velho e começámos a comer, com delícia, o nosso almoço.
Nisto o Ruivo, esperto e matreiro, de quem havia sempre algo de extraordinário a esperar, levantou-se, abriu os braços, fez uma pirueta, sentou-se outra vez, pôs-se a olhar para longe, para muito longe de nós e disse:
- Eh malta! Vocês sabem porque é que está tanto frio?
Nós, nem resposta. Estávamos habituados a perguntas deste género vindas da parte dele. Continuámos a comer em silêncio.
- Sabem, ou não?
- Não! – respondeu-lhe a irmã.
- Mas eu sei! – disse com uma voz triunfante. Nós, caladas. Isso pareceu irritá-lo porque se levantou de um pulo, cerrou os punhos e gritou:
- Vocês querem ou não querem saber?
- Porque é? – perguntei eu.
- Porque vai ser o Natal.
- Natal?! – Admirou-se a Sardenta – O que é o Natal?
- Ah, agora sim! Ora oiçam lá o que eu ouvi os Lanzudos estarem a dizer:
Lanzudos era a nossa maneira de tratar os outros, os ricos, os que se vestiam de lã e corriam e brincavam sem ninguém lhes fazer mal.
- Que é que ouviste? Conta! – pedimos.
- Eles estiveram a dizer que o Natal é uma festa e que se dão prendas às pessoas e que é por isso que as montras estão tão bonitas.
- Oh, temos de ir ver as montras! – disse eu. E logo a Sardenta:
- Isso! Experimenta, que logo vês o que te acontece! Eu cá não vou, não! Já estou farta de apanhar!
47 Baixei a cabeça, triste, mas o Ruivo consolou-me:
- Deixa lá, Macaquinha, vamos nós, queres?
- Quero sim! – respondi logo eu. Quando é que há-de ser?
- Logo à noite, quando há muitas luzes e pouca gente na rua.
_- Está bem!
À noite, a Sardenta foi para a barraca, para junto dos pais e irmãos e eu e o Ruivo partimos à aventura. Tínhamos medo, mas ainda maior curiosidade de ver as coisas com que os Lanzudos fariam a tal festa Natal.
Já era bastante tarde. O vento zumbia, cortante. Passavam alguns carros e pessoas embuçadas que não reparavam em nós. As luzes deslumbravam e aquelas enormes janelas enfeitadas com bolas grandes e brilhantes, com ramos verdes, com sinos de ouro e prata, com grandes bonecas sorrindo, com castelos de chocolate, bolos, pão, fruta.... com tanta coisa deslumbravam-nos ainda mais. E abríamos muito os olhos redondos, e soltávamos ohs e ahs e esborrachávamos os narizes de encontro aos vidros.
- Ruivo, olha como é grande aquela bola! E como brilha!
- Sim, tão linda! E vês aquele carro, mais abaixo? Quase jurava que anda sozinho. Até parece a sério!
- E aquela boneca além? Parece mesmo um bebé. Oh se eu tivesse uma boneca assim!
- Que sorte têm os Lanzudos !
- E porquê só eles, Ruivo? Porquê?
- Sei lá! Afinal isto tudo é para lembrar o nascimento de um miúdo pobre... Vê se entendes!
- O quê? De um miúdo pobre?
- Sim, foi o que eu ouvi. Disseram que ele dormia na palha como a gente.
- Ah, ainda bem que ele não era Lanzudo!
- Lanzudo? Bom, parece que sim, rei ou lá que é. É muito esquisito. Também disseram que era muito rico, tinha não sei quê mais que a gente.
- Ora! Estás a ver aquele bolo grande, todo branco? Que bom deve ser!
- Oh, sim! E aquele castanho mais abaixo? Tem uns molhinhos de palha e em cada um um bonequinho cor-de-rosa, vês?
- Que engraçado!
E assim fomos, rua após rua, demorando-nos diante de cada montra, fazendo conjecturas, admirando tudo. Mas o tempo passava e o sono chegou. Combinámos vir mais vezes.
- Amanhã a gente volta, sim, Macaquinha?
- Sim! Quero ver tudo, tudo. Que coisas tão lindas, hein, Ruivo?
- E agora? Vamos Para a barraca?
- não! Tenho muito sono. Olha uma portada aberta, vamos!
Não tardou, estávamos a dormir num canto, com um sorriso nos lábios, sonhando ser os donos de todas aquelas maravilhas.
Ao outro dia não parámos de falar à Sardenta em todas aquelas belas coisas que tínhamos visto na véspera. Ela já estava meio resolvida a acompanhar-nos, mas o medo foi mais forte. Ficou.
Chegada que foi a noite, lá fomos nós outra vez e a cena repetiu-se por muitos dias, e em todos eles nos extasiávamos diante das mesmas coisas, descobrindo outras, cada vez mais encantados.
Mas naquela noite o vento era tão frio, a chuva tão forte, que resolvemos refugiar-nos em qualquer lado à espera que o temporal amainasse para depois continuarmos o nosso passeio. Por entre as grossas bátegas de chuva começámos à procura de qualquer canto seco, até que avistámos uma grande porta por onde, durante certo tempo, entrou muita gente. Depois, mais ninguém. Resolvemos espreitar: para lá dessa porta havia uma outra, fechada. Olhámos um para o outro e encolhemos os ombros, desanimados.
- Nada feito! Está fechada, disse.
- Atenção, Macaquinha! Vem aí alguém!
Rapidamente, escondemo-nos atrás da porta grande. Uma velhota entrou, empurrou a porta fechada e sumiu do outro lado.
- Olha! Afinal a porta pode-se abrir!
- Vamos dar uma vista de olhos?
- Vamos!
Devagarinho, abrimos a porta e espreitámos para dentro: havia várias filas de bancos e, no meio deles, muitas pessoas. Lá ao fundo, à volta de uma estranha mesa, vários padres falavam uma linguagem que nunca até então tínhamos ouvido. Mais atrás, um grupo de rapazes, todos vestidos de igual, cantava.
Não sei de onde, vinha uma música bela, suave. Havia também muitas luzes e velas ardiam em redor da mesa. De vez em quando os padres, sempre cantando, faziam grandes gestos em direcção ao céu e ao povo, ajoelhavam e tornavam a levantar-se e as pessoas imitavam-nos e falavam muito baixinho.
- Céus! Os padres parecem zangados!
- Não me parece! Todos fazem como eles.
- O que será isto? Seja o que for, lá de dentro vem um calor muito bom.
- E se a gente entrasse?
- Está bem, vamos.
A porta fechou-se silenciosamente atrás de nós, que nos metemos no canto mais escuro que encontrámos e aí ficámos a observar.
Mais uma pessoa entrou na casa e, com ela, o vento frio da rua. Arrepiei-me e o Ruivo estremeceu. Encostei-me mais a ele, que me passou um braço pelos ombros.
- E se nos sentássemos? Aqui atrás ninguém repara na gente. Estão todos tão atentos. Achas que nos mandam embora se nos descobrem aqui?
- Não, acho que não. Chega-te mais para cá. Está tanto frio, mesmo assim!
Sentámo-nos no chão. Estava-se ali bem. Cheirava a um fumo esquisito que vinha da mesa onde os padres estavam.
O Ruivo perguntou:
- Ainda tens frio?
- Não.... Ruivo, sabes quem é que nasceu?
- Não, não me lembro do nome.
- Um miúdo pobre que depois se passou para os Lanzudos?
- Não, não era bem isso, era muito esquisito, como te hei-de explicar?
- Como é que se chamava?
- Eu ouvi o nome... era Ju... Je... espera, era Jesus E não se passou nunca para os Lanzudos, dizem que eles o mataram por causa disso.
O coro continuava a cantar “Feliz Natal” “Feliz Natal”
Eu pensava que gente ruim eram os Lanzudos que tinham querido apanhar o miúdo pobre e que o tinham matado por ele querer continuar pobre. E em como o mais esquisito de tudo era estarem a fazer-lhe uma festa cheia de coisas que nos faziam crescer água na boca.
As lágrimas correram cara abaixo.
Senti o contacto quente de uns lábios na minha face. Vi o Ruivo despir o seu casaco leve e esfarrapado para me cobrir com ele. Sorri.
- Pobre do miúdo, o tal Jesus, se tivesse vindo com a gente....
Sorriu.
Lentamente, a cabeça descaiu-me, escorregou no ombro do amigo que ainda tinha e adormeci.

"Boca do Inferno"





Erguia-se no bordo da escarpa, rente ao mar, um enorme castelo, solitário, altivo e sombrio.
Nele, habitava, solitário, um bruxo.
Um dia porém, achou ser tempo de temperar com mais do que sal a sua vida.
Consultou a sua lâmina de cristal de rocha e ordenou-lhe que lhe mostrasse a mais bela donzela do reino, assim como o lugar onde pudesse encontrá-la.
Reuniu o séquito e cavalgou a dias a fio.
Levava riquezas nunca antes vistas, com que a seus pais a comprou.
Deslumbrado pela sua beleza, mandou que se velasse num véu preto e assim a levou de volta, a caminho da desventura.
Enquanto bem desfrutava da sua mal empregada formosura, mandou erguer alta torre, de uma só porta, escadaria estreita a toda a volta, e reservou-lhe aposentos no extremo da inusitada cornucópia.
Mandou vir de longe um criado que jamais a vira e, sob ameaça de morte certa caso a utilizasse, confiou-lhe uma das chaves, que guardava dependuradas de uma corrente à cintura.
Guardou a mulher como se guardam as coisas que se amam e detestam ao mesmo tempo, pois tanto o deslumbrava quanto temor lhe infundia.
Frente ao mar, o tempo passava, cronometrados os dias pelas marés, as semanas pela sucessão dos dias e das noites, os meses pelas luas.
Tão só se sentia o guardião como a cativa do seu senhor.
O horizonte de ambos era o mar, eternamente sempre outro e o mesmo.
A música que a ambos chegava era a dos pensamentos, a do marulhar revolto ou terno das ondas, o sibilo do vento por entre as rochas.
Assim passava o tempo e não passava, porque o tempo para ser tempo tem por referência a vida, de que ali só se sentia a ausência.
Mas um dia o ócio provocou no carcereiro uma curiosidade inadiável.
Deu por si a pensar obsessivamente que mulher seria aquela que merecia tão triste sorte.
Pouco depois, descerrou a fechadura, com a chave confiada mas jamais tirada da cinta.
A porta rangeu de ferrugem, ele apoiou sobre os gonzos todo o seu peso e, aos poucos, sentiu-a cedendo.
Enquanto ia subindo a escada de caracol que levava a câmara da cativa, mil pensamentos se lhe entrecruzavam no cérebro:
O que iria encontrar?
Seria bonita ou horrorosa?
Aleijada?
Muda ou doente?
E se estivesse morta?
Calou todas as vozes de inquietação que o assediavam e subiu, subiu, subiu sem pensar em mais nada.
Frente à porta da câmara, parou para se acalmar e tomar coragem.
Quando conseguiu dominar a tremura das pernas e das mãos, empurrou a porta.
O sol, que entrava por uma das ogivas da torre, bateu-lhe nos olhos e cegou-o por momentos.
Pouco a pouco retomou a visão, deparando-se com a silhueta de uma jovem dama, meia voltada, silenciosa, que em nenhuma das suas conjecturas, lograra imaginar.
Ela olhava-o, interrogativa, mas como ele de repente sentisse esquecidas todas as palavras, acabou ela por perguntar:
- Quem és tu, cavaleiro e porque vens perturbar a minha solidão?
E o homem, quando achou de novo a voz, respondeu finalmente:
- Sou o vosso guardião, senhora!
- O meu guardião? Guardião de quê? Desta solidão sem nome e sem razão?
Vê como se consomem os meus dias, sem prazer, sem ilusão!
... Ao menos tu!
- Eu, senhora? Eu estou ali em baixo tão só como vós, e a guardar... a guardar o quê? Para quê?!
Talvez que a partir de hoje possamos partilhar, senão redimir, as nossas horas perdidas neste ermo.
Ordenai, senhora, farei o que quiserdes.
Levar-vos-ei aonde desejardes!
Mas a nenhum lugar quisera ir a senhora, sedenta de presença humana, e ficaram a conversar por horas esquecidas...
Da cumplicidade e da troca de seus segredos e solidões, uma louca paixão nasceu.
O tempo que era tão lento cristalizou-se naquele instante.
E o instante fizeram eterno, esquecendo o lugar e o perigo, tão só um ao outro se entregando, em delícias se esquecendo, nada mais que um ao outro querendo.
O exterior esvaíra-se, pois não o sentiam nem mais lembravam.
Mas numa noite acordaram apavorados num mesmo pesadelo, em quem uma onda imensa de repente os engolia.
Aflitos, desceram as escadarias correndo.
Montaram o cavalo branco que por ali deambulava peado e acudiu de pronto à voz do dono.
Partiram a toda a brida sobre os rochedos fronteiros ao mar.
No paço, o feiticeiro olhou a sua lâmina de cristal e, louco de fúria e de ciúme, chamou a si todos os dons mágicos que possuía, ordenou que num repente se abrisse a terra e transformou a noite num cataclismo medonho, rochas deslizaram sobre rochas e um abismo sem fundo abriu-se: cavalo e cavaleiros despenharam-se e foram engolidos para sempre.
Assim que os dois amantes desapareceram no redemoinhar infernal, acalmou a tempestade e o mar voltou a ficar manso como se nada houvera acontecido.
O buraco nos rochedos, porém, nunca mais se fechou, como se essa ferida da natureza quisesse perpetuar a história.
Mas muitas vezes volta o vento e a fúria do mar retorna, tal como na noite em que a cativa e o guardião da torre desapareceram.