domingo, fevereiro 15, 2004


O Amanhã é sempre uma Promessa


Faz noite negra mas eu canto: a canção dos jovens, a canção dos pobres, a canção de esperança da gente do meu país.
Faz noite negra
A lua brilha tão pequena!Pequenas são as estrelas em seu redor.Mas se toda essa luzSe juntasseSe as estrelas todasSe unissemQue fulgor!
E a Luz é a vida.E para viver é preciso despertar.E desperto o dia, pouco a pouco a noite chega e de novo suge a manhã, uma manhã em que o sol seja igual para todos nós.
Em que não haja manchas negras, nem lagos de pranto, em que não haja crianças-esqueletos.
O meu amanhã-promessa virá tanto mais depressa
quento nós dermos as mãos!

"O Reino da
Fantasia"



Era uma vez um reino. Um grande reino mais rico que a corte de Salomão, mais fértil que imaginação dos deuses, mais belo que ver as avesinhas pipilando docemente nos ramos floridos da Primavera.

É o reino mais ambicionado do Universo, mas só as almas líricas dos poetas lá têm entrada, fazendo girar a chave maravilhosa da aventura na porta irreal do paraíso.

À entrada, dois hercúleos leões rugem assustadoramente os afiados dentes a tudo o que não seja o sonho e a poesia.

Mal estes chegam vêm recebê-los milhares de anjos que constróem com as brancas asas da pureza eterna muralha de segura quietude.

Lá dentro tudo é soberbo, magnífico: a relva é fresca e verde, muito, muito verde, em contraste com os seixos brancos de que são feitas as casas.

Há cataratas borbulhejantes de água de um cristal puríssimo, que vêm mais tarde espraiar-se abaixo numa brilhante lâmina de safira reluzente onde brilham as incrustações de prata feitas pelo sol cálido e risonho.

E as flores? Tantas e tão, tão belas as há ali que, se quiséssemos, faríamos com elas uma coroa tão larga como o anel de Saturno.

Há ainda árvores gigantescas e sombrias ou pequeninas e graciosas que desejaríamos apanhá-las num ramo para por aos pés do Menino Deus.

E o céu ?!O cerúleo céu tão lindo tão ridente quer banhado pela luz sol quer iluminado apenas pelas estrelas e a lua.

E que curiosos são os insectos, construindo com mil cuidados os o casulo sedoso onde e a pouco e pouco e pouco os ovos se transformam em lindas borboletas coloridas e rendilhadas que, mais tarde, irão enfeitar as s rosas altivas ou as violetas perfumadas dos canteiros e dos bosques.

E que belo o mar um mar calmo onde as raras ondas são cintilações de uma infinita esmeralda.

E há neve nas montanhas altas e agressivas.

Aves cantam á porfia nas florestas

Lá há tudo, até a realização dos mais incríveis sonhos.

quinta-feira, fevereiro 12, 2004


"Canção de Navegar"

...Porque "Navegar a Vida", "é preciso".
Passar por todas as etapas do rio: ignorando o percurso futuro e tendo presente o passado... sequer vislumbrando a foz!
Navegar a vida foi aguentar o timão, levantar e manter as velas, e ao mesmo tempo nunca fraquejar no manejo dos remos.
Num mar de Adamastores, de tempestades, sem jamais perder a esperança de alcançar o repouso temporário de uma praia, (canto IX dos Lusíadas) antes de a madre mar me engolir, me transformar em futuro que ignoro mas não temo.
Navegar a vida é ter coragem de atravessá-la de olhos abertos, por mais salgadas que sejam as águas.
Enfim, estou num mar de remanso, sem descanso, mas com o sol dourando de ocaso o meu barco...

quarta-feira, fevereiro 04, 2004


Amar é complementar-se. É querer o bem de quem se ama além do nosso. As mãos dão-se com frenesi e com anseio se colam, mas os olhos fixam-se na mesma rota, distintos.
É dura a estrada da vida. Se seguimos amados e amando, temos e damos incentivo e amparo.
É uma fusão que não destrói mas antes engrandece os dois companheiros. E quanto maior for essa cumplicidade, maior será a confiança. Estaremos simultaneamente presos e libertos. Seguros de nós e do outro.
Em sincronia. E quanto maior a dádiva, mais cresce cada um dos amantes e mais o amor se afunda. Se prolonga além da paixão, que foi princípio e se reacende viva como a chama do lar cada vez que o acto de amar se consuma.
Sem extinguir-se jamais, prolongando-se além vida!

Levantei-me cedo e passei o dia na cozinha... adoro!
Estou fatigada, sim, mas feliz de ver minha comida apetitosa... que depois me esqueço de comer!
A solução é congelar, para depois me dedicar a trabalhar sem parar.
Não sei descansar... sei meditar, o que não é descanso, mas intensa actividade interior.
Sei relaxar, o que é uma displina espirutual.
Sei evedir-me do meu corpo até não mais senti-lo.
Nada disto é descanso. Como o não é o sono.
Refazemos energias utilizando técnicas ou o instinto... descansar é ficar com o sangue parado sem fluir-refluir, afogando-nos de ausência.
Por isso não descanso nem tenho pena.

É O SONHO QUE COMANDA A VIDA!

ÀS VEZES OS SONHOS PAIRAM INDISTINTOS... SOBREVIVEMOS NUMA VAGA FELICIDADE,
FEITA DE BREVES SORRISOS, FREQUENTES , VAGOS...

SE A ALMA SE ENTREGA, A VIDA RENASCE E REJUBILA ! A ALEGRIA NOS ELEVA!
VOAMOS COMO AVES POR CÉUS ALTOS, AZUIS, ILUMINADOS E LINDOS!

O CORAÇÃO EM TODO O NOSSO SER BATE MAIS FORTE, O SANGUE PULSA E VIBRA, A
JUVENTUDE RESPIRA POR TODOS OS NOSSOS OS NOSSOS POROS!

QUANDO PASSAMOS, TODOS NOS OLHAM, NOS DÃO PASSAGEM SORRINDO!

O ANDAR TORNA-SE LEVE E ELÁSTICO... TUDO O QUE ANTES NOS PARECIA VEDADO ESTÁ
DE AO NOSSO ALCANCE!

SENTIMO-NOS LEVES! BRILHAMOS CÁ DENTRO E VEMOS ESSE BRILHO ACONTECER NO
ESPELHO DOS QUE NOS OLHAM!


MAS SE QUEM DETÉM DA NOSSA ALMA, TODO ESSE PODER, NOS ABANDONA...
DERRAMAMO-NOS, DECAÍMOS, MURCHAMOS QUAL FLOR CORTADA A QUE NINGUÉM COLOCOU
AO MENOS UM DEDAL DE ÁGUA...


E A VIDA DEIXA DE SER VIDA!

terça-feira, fevereiro 03, 2004


Os olhos ensombram-se de tanta beleza!
O coração, de tanta felicidade!
O poema nascerá pois baloiça indeciso
e os olhos escondem-se atrás das pálpebras
guardando os sonhos no recôndito onde habito
... e, consciente, desconheço.

Só me encontro quando à superfície
brota espontânea a fonte
que ora se vê ora se esconde.
Preciso esperar esse momento afim de matar a própria sede.

Um beijo na face, uma mão no ombro, um olhar que encontra o outro.
Na palma da tua mão, na fímbria da tua pálpebra, o único remédio para a minha tristeza.

Onde ficou o teu coração que me nega amparo nesta hora?

segunda-feira, fevereiro 02, 2004


Foi assim que tudo começou:
Entregue a mim mesma em criança, solta no campo, curiosa e observadora, pensava e agia como os nossos antepassados terão pensado.
Como não tinha nada nem ninguém, acho que substituí a presença da minha mãe (cuidava dela) pelas primeiras poesias.
Sempre me lembro de ler e escrever, não sei como, talvez a minha mãe me tenha ensinado em pequenina, não há como saber.
A casa cheia de livros do avô Petronilho e eu louca por conhecê-los!

Ao sol, as minhas gatas, de olhos cerrados, verdes e dourados.
Os pássaros espanejando as peninhas.
Trocando chilreios.
Entardece: a cor do céu já não se distingue da do Tejo, ao fundo.
Passa um barco.
Passa uma nuvem cor-de-rosa.
Nasce vénus, a primeira estrela.
Deste lado da terra tudo se aquieta, se prepara para a noite que chega.
"Competição, vaidade... ridículo!"


Certa vez, três amigas foram à feira.
Uma comprou uns sapatos, outra uns brincos e a terceira, um anel.


Voltaram, reuniram o povo no largo da aldeia e pensavam, pensavam....
... em como haviam de mostrar a todos as prendas novas que tinham.

De repente:
- Plim!

A que tinha o anel, espetou o dedo enfeitado, exclamando
--Olha um bichooooooooooooooooooooooooooooooo
A que tinha sapatos novos, avançou e bateu o pé, dizendo:
-- Matá-lo! Matá-lo! Matá-lo!
A que tinha uns brincos novos a brilhar, por sua vez, abanou a cabeça, gritando
-Não! Não! Não!
QUE POSSO DIZER QUE NÃO TENHAS SENTINDO JÁ,

VISTO NOS MEUS OLHOS?!


... AMOR A CRESCER....INCONTIDO... NOS DEIXANDO LOUCOS... PLENOS!

VOU NA DERIVA DE TI, POR TI, EM TI, COMIGO E CONTIGO.

DEIXAS-ME SEM FÔLEGO!

Sonho contigo

Adormeço e sonho contigo, desperto pensando em ti e
acordada sigo sonhando...
Cerro os olhos, enrolo-me e abraço-me a mim mesma, revendo-nos em sonho,
sentindo-me.... tão leve, tão mulher, tão plena, tão feliz!
Que tudo o mais me não toque, para poder estar junto de ti em sonho, num
cantinho de céu ignorado....
De olhos fechados, te sinto, te oiço, te respiro.... cada gesto, cada
beijo.
Cada segundo de ti junto de mim, teu corpo e meu corpo permenecem unidos,
tua presença vive - e meus seios ficam túrgidos, meus mamilos esperando teu
beijo!
Afasto-me de tudo, aparto-me de tudo para ficar,
perdidamente, a sonhar contigo nesta plenutude - semi ausência

Tão viva, a tua lembrança, que tudo de ti a mim toda toma!
E ASSIM VOU NAVEGANDO A TARDE, NESTE ESTADO DE ESPÍRITO EM QUE VOO NAQUELE TEU SUSPIRO QUE OUÇO NO ESPELHO DE TEU SOM:
.... PORQUE É QUE DEPOIS NOS SENTIREMOS ASSIM TÃO LEVES?!
UMA DOCE PAZ ME INVADE.
AGRADA-ME ESTE SILÊNCIO DOS OUTROS, EM QUE ESTOU MAIS CONTIGO, CON-TENDO CADA MOMENTO TEU EM MIM

DEIXAR-ME FICAR ASSIM LÂNGUIDAMENTE, ORA LÁ FORA, ORA AQUI, RECORDANDO OS NOSSOS PASSOS, AS NOSSAS CONVERSAS RISOS (E GRITOS) E BEIJOS E CARÍCIAS...
DEIXA O MUNDO ACONTECER LÁ FORA....
AQUI A ALMA SIMPLES SE SENTE COMO NO BALOIÇO VAI E VEM UMA CRIANÇA - SOLTA, SUSPENSA, INQUIETA MAS CONTENTE POR ESTAR TÃO MAIS PERTO DO CÉU QUE DA TERRA...


POR TI, POR AMOR E EM PAZ CONTIGO

TOCAS MINHA ALMA FUNDO, QUE SE EXPÕE PÉTALA A PÉTALA COMO FLOR OCULTA À ESPERA DE QUEM QUEIRA PERDER SEU TEMPO OLHANDO-A...

... E COMO ME CONHECES TANTO, PARA ALÉM DO TEMPO,

MINHAS LÉGUAS E LÉGUAS ANDADAS ESTENDENDO ESPERANÇAS COMO QUEM ESTENDE LENÇÓIS FLORINDO NOS VARAIS DA VIDA, CATANDO SONHOS LINDOS!




COMPLICANDO A SIMPLICIDADE?!

NEGANDO O DIREITO DE SER FELIZ ENQUANTO O SANGUE CORRE E PULSA E VIBRA DENTRO DE TI?

A VIDA INTENSA!

É TÃO BOM SENTIR-SE A GENTE VIVENDO E AMANDO!

TÃO BREVES OS DIAS!

TÃO LINDO SENTIR QUE A NATUREZA FLORESCE E ACONTECE EM NÓS!

ESTAMOS VIVOS!

AQUI E AGORA!

UM DIA... SE VERÁ....

NÃO PENSES NO PROVIR CERTO DAS CINZAS

ENQUANTO ÉS FLOR!

domingo, fevereiro 01, 2004

É O SONHO QUE COMANDA A VIDA!

ÀS VEZES OS SONHOS PAIRAM INDISTINTOS... SOBREVIVEMOS NUMA VAGA FELICIDADE, FEITA DE BREVES SORRISOS, FREQUENTES , VAGOS...

SE A ALMA SE ENTREGA, A VIDA RENASCE E REJUBILA ! A ALEGRIA NOS ENLEVA! VOAMOS COMO AVES POR CÉUS ALTOS, AZUIS, ILUMINADOS E LINDOS!

O CORAÇÃO EM TODO O NOSSO SER BATE MAIS FORTE, O SANGUE PULSA E VIBRA, A JUVENTUDE RESPIRA POR TODOS OS NOSSOS OS NOSSOS POROS!

QUANDO PASSAMOS, TODOS NOS OLHAM, NOS DÃO PASSAGEM SORRINDO!

o ANDAR TORNA-SE LEVE E ELÁSTICO... TUDO O QUE ANTES NOS PARECIA VEDADO ESTÁ DE NOVO AO NOSSO ALCANCE!

SENTIMO-NOS LEVES! BRILHAMOS CÁ DENTRO E VEMOS ESSE BRILHO ACONTECER NO ESPELHO DOS OLHOS QUE NOS OLHAM!


MAS SE QUEM DETÉM A NOSSA ALMA, TODO ESSE PODER, NOS ABANDONA... DERRAMAMO-NOS, DECAÍMOS, MURCHAMOS QUAL FLOR CORTADA A QUE NINGUÉM COLOCOU AO MENOS UM DEDAL DE ÁGUA...


E A VIDA DEIXA DE SER VIDA!

Falar da Saudade


HOUVE UM TEMPO NO MEU PAÍS EM QUE SAUDADE ERA A ÚNICA PALAVRA SUBVERSIVA QUE PODIA DIZER-SE EM VOZ ALTA.

ACONTECIA NUM TEMPO DE LUTA INGLÓRIA.
OLHAVA E PENSAVA.

AQUELA CARA DE OLHOS-LAGOS EM CRATERA FUNDA, DE LÁBIOS SECOS E APERTADOS, DE FIRME MAS TÃO TRISTE EXPRESSÃO DE DESALENTO, CAVANDO A TERRA MADRASTA, ZUMBA QUE ZUMBA A ENXADA, CAVANDO MÁGOA APÓS MÁGOA.

CORRENDO DE NOITE PELAS BRENHAS, SACO CHEIO DE CONTRABANDO ÀS COSTAS: ERA O CAFÉ, O AÇÚCAR, O TABACO QUE FALTAVAM, PEQUENOS TESOUROS DE QUEM NÃO TINHA NADA MAIS QUE A SORTE DE ATRAVESSAR O PULO DO RIO OU CAIR AO TIRO DO GUARDA.
DOS DOIS, UM DESTINO CERTO.

SUBIR DE ARMA NO OMBRO A ESCADA SEM FIM DO NAVIO, LENÇOS ACENANDO EM BAIXO "ADEUS, MEU FILHO, QUE VOLTES VIVO"... A GUERRA ERA UM BURACO NEGRO NO COMEÇO DA VIDA INCERTA.
SEM MAIS SAÍDA.

FUGIR DE NOITE, MALA DE CARTÃO, EM BUSCA DO PÃO SONHADO EM TERRA ALHEIA - FRANÇA, ALEMANHA, SUÍÇA... OS OLHOS MAREJADOS, PARA TRÁS OS ENTES QUERIDOS, ATÉ UM DIA ...
FADO.

NA DESVENTURA, O TOQUE DE UMA GUITARRA NA RUELA, UM SOM QUE NÃO SE SABIA DE ONDE VINHA, MAL BRILHAVA UMA CANDEIA ACESA.

SOBRE A ENXERGA OS OLHOS INSONES ABERTOS.
OS OLHOS VERMELHOS NO CHORO DE TANTAS NOITES
À ESPERA.

AI DE QUEM VAI, AI DE QUEM FICA!
NO MEIO ESSA PONTE DE ESPERANÇA DE VOLTAR UM DIA, BRAÇOS ABERTOS.

DEBRUÇADA,
ESSA CARÊNCIA DE BEIJOS A ARDER FUNDO NA ALMA.





De passagem






venho falar-te da gralha
banhando-se
no fumo do teu cigarro
espanejando-se e saindo do teu cinzeiro abandonado
livre rebrilhando de negro azul qual fénix
para sair procurando seus pequenos cacos e nicos e ticos nadas
brilhos rebrilhos de azuis

usando ao inverso de ti e de mim
o mau para o bem

venho falar-te
da simples grandeza que existe na simplicidade

venho pedir-te. observa
há várias gerações que garça real pratica
na rã cirurgia genética

venho contar-te
de que tanto o gato doméstico se droga
na erva dos gatos que cresce espontânea no teu jardim
como o jaguar na trepadeira Iaga e livres prosperam
escondidos nas florestas da América do sul

enquanto os homens deixarem

em aparente contraste
venho falar-te
das renas
que escavam as neves espessas
em busca do cogumelo pintado de vermelho e branco
venho falar-te do povo sami
que vive na pré história em cadeia com a rena
e usa a sua urina para ter a ilusão que voa

tu fazes a festa do pai natal
qual de vos brinca de acreditar no quê?!

venho falar-te do lémur
embriagando-se na natureza

venho dizer-te que o pássaro do mel se alimenta mas nunca destroi a colmeia

venho pedir-te que acordes

sê és muito mais que uma besta humana
nota como todo o infinito se toca

pára e pensa!

O Sonho Comanda a Vida!



ÀS VEZES OS SONHOS PAIRAM INDISTINTOS... SOBREVIVEMOS NUMA VAGA FELICIDADE, FEITA DE BREVES SORRISOS, FREQUENTES , VAGOS...

SE A ALMA SE ENTREGA, A VIDA RENASCE E REJUBILA ! A ALEGRIA NOS ELEVA! VOAMOS COMO AVES POR CÉUS ALTOS, AZUIS, ILUMINADOS E LINDOS!

O CORAÇÃO EM TODO O NOSSO SER BATE MAIS FORTE, O SANGUE PULSA E VIBRA, A JUVENTUDE RESPIRA POR TODOS OS NOSSOS OS NOSSOS POROS!

QUANDO PASSAMOS, TODOS NOS OLHAM, NOS DÃO PASSAGEM SORRINDO!

O ANDAR TORNA-SE LEVE E ELÁSTICO... TUDO O QUE ANTES NOS PARECIA VEDADO ESTÁ DE NOVO AO NOSSO ALCANCE!

SENTIMO-NOS LEVES! BRILHAMOS CÁ DENTRO E VEMOS ESSE BRILHO ACONTECER NO ESPELHO DOS OLHOS QUE NOS OLHAM!


MAS SE QUEM DETÉM A NOSSA ALMA, TODO ESSE PODER, NOS ABANDONA... DERRAMAMO-NOS, DECAÍMOS, MURCHAMOS QUAL FLOR CORTADA A QUE NINGUÉM COLOCOU AO MENOS UM DEDAL DE ÁGUA...


E A VIDA DEIXA DE SER VIDA!




Da Minha Janela

De manhã vê-se o céu vermelho, por cima das vivendas baixas, para os lados da Ponte, dourando a cúpula do Seminário.

Aos poucos desce uma poeira amarela e brilhante cheia de matizes, recortada pela escura sombra das velhas casas brancas, cor-de-rosa e amarelas.
Á frente de cada prédio há um jardinzinho onde cada um nos mostra o que terá dentro de si:
Cultivam-se couves, flores ou crescem ervas bravias.
Muito cedo tudo recende um particular aroma que não existe em mais nenhum lugar da terra e reluzem indistintas sobre todas as plantas, como pérolas, gotas de orvalho.
Depois começa a passar gente: primeiro os operários, com a pasta do almoço na mão, depois os estudantes com os livros debaixo do braço.
O sol aquece e a água depositada no chão e nas ervas evapora-se. As plantas parecem agora baças e empoeiradas.
Os rapazes e raparigas das escolas secundárias parecem um carreiro de formigas atentas e carregadas de uma ciência escondida.
Apitam as sirenes das fábricas.
Mulheres de cestas de verga ou ráfia apressam-se para as compras, os carros sentem-se incomodados na estreita linha entre os passeios e apitam..
Sai de cena o guarda-noturno com o seu molho de chaves tilintando à cinta e os olhos cobertos de sono.
Outro aparece, ao que parece pela ordem pública nada mira, e anda rua acima rua abaixo passeando a gorda barriga, as mãos inermes cruzadas atrás das costas.
A meio da manhã, parafusos e engrenagens rolam, acalmam-se os ruídos, gira que gira o dia.
Pelo meio dia salta a manivela e toda a gente corre que a barriga chia.
De tarde, a rua na modorra vai cumprindo hora após hora o seu ritual, sonolenta.
As persianas baixas. As vizinhas lavaram a loiça e espreitam como gatas atrás das cortinas.
Um ou outro par afoito desafia o comentário certo.
Num repente cai a noite, mal o sol tomba atrás do prédio mais alto.
Aproveitando a súbita penumbra, quem não olha não vê, os estudantes de regresso a casa, chegam-se mais – ele e ela murmuram algo e lá se dissimula na sombra a fugaz papoila de um beijo.
Os mais novos chispam centelhas de desafio no cigarrinho escondido na palma da mão; endireitam o pescoço enquanto pigarreiam a virilidade emprestada pelo gesto enfim ousado.
Muitos vão sobrecarregando os livros de cabeça baixa, como muares ruminando fora de hora cada palavra proferida na aula – levam toneladas de sabedoria às costas e parecem subir a rua de rastos.
Os marinheiros, colarinho azul e branco, barrete atirado para a nuca, parecem com fome de vento e passam assobiando.
Um clarão amarelo, depois branco, hesita mas fica – os candeeiros acendem-se lá no alto.
Sobe de todos os lados um aroma de guisados, se cozidos, de frituras que se misturam no ar a brincar ao desafio com as barrigas vazias.
Num tempo, o primordial desígnio de viver para para comer ou o inverso, fica reinando. Adivinha-se o nham nham nham mascando uns melhor outros pior o que tanto lhes custou a alcançar – jantar na mesa a horas das ave-marias.
Descem os sacos do lixo, que são discretamente colocados na beira do passeio e as mãos escondem-se atrás dos aventais como se assim se aventasse o olhar do último a quem se imita o gesto.
Era a hora por que os cães e os gatos vadios tanto esperavam – num instante a rua vazia está pejada de restos e seres furtivos e desconfiados, lazarentos, desgraçados.
Acenderam-se entretanto os olhos amarelentos das janelas.
Cada um cala-se ou comenta o que fez – sobretudo o que não fez e gostaria de ter feito mas mais não se diz porque falar demais é um papão que anda solto e pode estar escondido dentro do seio do teu parece-que-melhor-amigo.
Uma a uma cada casa adormece – o cansaço às vezes traz consigo a insónia – mas que remédio para poupar energia senão rebolar-se a insónia onde se rebola a rebeldia – no escuro?!
Os últimos carros deslizam, à larga, ninguém que os ameace de atropelamento nos passeios desertos.
E tudo é silêncio. Excepto os mais fracos que berram na voz do vinho o que a todos atravanca o espírito mas só diz em voz alta o bêbado e em voz muito baixinha o que bebeu tanta esperança para mitigar a dor da revolta que se atreve a infringir o universal da quietude do faz-de-conta.


Saudades da Horta das Carriças




Nota: a Carriça é uma ave que, quando se ara a terra, saltita de rego em rego atrás do lavrador para comer os vermes que a charrua pôs à superfície.

Não era lavrada a Horta, mas cavada à enxada, não se sabe portanto de onde lhe virá o nome.



Na Horta das Carriças havia um poço com nascente a uns três metros de fundo, de onde a água se tirava aos baldes, com uma grande cegonha *.

A cercá-la, uma parede de pedra solta, ao correr de toda ela. Nasciam espontaneamente bastas e pequenas violetas brancas. O cavador não lhes tocava com a sua enxada, talvez porque o comovesse tal gesto da Natureza.

No velho aterro, sobras da terra onde o poço fora escavado, ainda em montão e amparadas por pedregulhos ali deixados ao acaso, alguém espetara estacas de lilases brancos e azuis, que cresceram desvairadamente e floriam em tal abundância que o ar da primavera vivia ali, embalsamado em odores e cores.

A água seguia por um tosco rego escavado no chão rico, há muito tempo. A salsa não secava nunca e existia sem ter sido semeada por ninguém.

A erva cobria tudo e, das fendas na parede, rebentavam videiras bravas, que se aproveitavam às vezes para fazer enxertos na vinha.

Num canto sombrio, numa espécie de caverna de verdor, cresciam violetas dobradas, azuis, enormes como nunca vi, ia jurar que foi Deus que as inventou ali mesmo e só ali existiam.

Rompera o muro, com as suas fortes raízes, entre aquela horta e a do vizinho, uma árvore altíssima. Esta, em vez de provocar discórdia, provocava harmonia: Aproveitávamos todos as suas pequeninas bagas, aromáticas e roxas, que caíam lá do alto do Lamegueiro, em profusão, sobre as duas propriedades.

Os frutos da terra a todos os homens pertencem: eram deliciosas, embora se lhes aproveitasse só um niquinho de polpa e de sumo... o resto era um caroço redondo e negro, que cuspíamos mas nunca germinou.

O rego de verdura desembocava num tanque de pedra granítica, quadrado, pejado de limos, de onde saía a água para a rega, por um buraco feito no fundo que se atafulhava ou desatafulhava com um trapo, conforme as necessidades das plantas: Ervilhas, favas, feijão, couve, árvores generosas de pêssegos, pêras e maçãs.

Mesmo ao lado, inusitada, uma roseira-chá enorme, frondosa, onde me escondia a mascar laranjas e limas-doces e que tinha sempre uma rosa, mesmo no tempo frio, para oferecer à sua pequena amiga.

O outro lado do pomar era o reino das laranjeiras. Aí o doce aroma das florinhas brancas de seda, que juncavam o chão de alvura, envolvia-me.

Ai andar ali descalça, sem medo dos lacraus, das centopeias, das aranhas!

Rebolar naquele tapete tenro, encher o peito de ar perfumado e não pensar em mais nada! Deixar ali suspensos os meus sonhos e os meus poemas inventados e logo esquecidos!

E recordar a minha mãe, há tanto tempo coroada de noiva com aquelas mesmas flores e depois levada no seu vestido branco para debaixo da terra com tantos lírios roxos, carapeteiros brancos, rosas e lágrimas.

Ali lembrava eu, sozinha, a minha mãe breve, a mãe quase desconhecida. Ali chamava por ela, que mais ninguém lhe dizia o nome, que mais ninguém lhe via os retratos, que se fora como uma borboleta leve e me deixara.

Ali eu invocava as recordações mais fundas do meu peito de criança ferida.



Voltei às Carriças com a minha filha pela mão, em silêncio, e saí de lá a chorar:

É um recanto na minha memória, já não existe.Não restou nada, senão a saudade .



*cegonha - engenho para tirar a água a pouca profundidade, constituído por uma vara que tem um balde suspenso numa das extremidades e um peso na outra.


ENQUANTO BRILHAR A VIDA!

AS CRIANÇAS APRENDEM MUITO PORQUE NUNCA SE SATISFAZEM COM RESPOSTAS INCOMPLETAS - A SUA PUREZA LEVA-AS A QUERER MERGULHAR NO SUMO DAS COISAS E BEBER SABEDORIA COMO SE BEBESSEM NÉCTAR!

ESSE É UM DOS MAOIRES ENCANTOS!

DE SACOLA, DE VESTIDINHO CURTO ÀS TRÊS PANCADAS, DE CABELO AO VENTO - IR NO SONHO.

FUI UMA CRIANÇA BRAVIA.

METIA A MÃO NOS BURACOS, HOUVESSE LÁ COBRAS OU NINHOS. SEM MEDO DE NADA! DEIXAVA-ME LEVAR PELAS VENTANIAS, SOLTA, LEVEZINHA, MAL TOCANDO O CHÃO OU AS ÁRVORES, OS MUROS, O QUE HOUVESSE PARA MANTER EQUILIBRIO, APENAS COM AS PONTAS DOS DEDOS.

ANDAVA JÁ COM UM LIVRO E UM LÁPIS (NO BOLSO?) E ESCREVIA... SEMPRE SOZINHA POR ONDE OUTROS NÃO SE ATREVIAM.

SEMEAVA A CONFUSÃO NAS RUAS QUANDO PASSAVA EM DEBANDADA DE PÁSSAROS-ANJOS-TRAQUINAS COM OS MEUS AMIGOS.



MAS DEIXA QUE TE DIGA QUE CONTINUO.
QUE ME MANTENHO LIVRE E SONHADORA.
QUE VIVE EM MIM A MENINA.

DEIXEM-ME CORRER E BRINCAR.
DEIXEM-ME PINTAR DE NUVENS COR-DE-ROSA A VIDA, QUE AINDA É TEMPO, ENQUANTO BRILHAR A VIDA!





Dos Primeiros




São seis da manhã.

Silêncio ainda. Numa ou outra casa recomeça a vida.

Olho em mudo espanto pela janela

Um fio de luzes de cores várias, azuis amarelas e brancas, recorta além o perfil do Tejo.

A meio do rio reluz, colorido, um barco.

Tão distintas as margens nesta hora!

Margens que de dia parecem fundidas, por causa dos tons azuis-cinza da água, do céu.

Em mudo recolhimento, mantenho-me no escuro.



Pertenço àqueles tantos que começam a trabalhar com os olhos pesados de sono.

Sou daqueles que se perfilam nas paragens dos primeiros autocarros.

Dos que durante oito horas a fio não sairão dos seus postos de trabalho, a não ser para um intervalo de almoço à base de sandes e sumo. E café como estímulo.

Dos que regressam cansados para viver mais uma faina de esforço.

Dos primeiros sacrificados se esta guerra iminente acontece;




nudez, exponho tudo quando tenho:



Alegria na tristeza e dignidade na alma!





4 fev de 2003


Acerca da arte de embalsamar diplomas

Travam-se entre sorrisos
Batalhas de subentendidos
Os olhos dardejam
Arrogantes lampejos
As sobrancelhas regem
Como batutas de indiferença
É suposto entender-se os códigos
Das insofismáveis
Feiras de arquétipos
Ah o ser eu mais que tu
Mas o outro acha que não
Que ele é mais que tu e eu
E sorrindo se vão fuzilando
Ai se fossem de aço os pensamentos
Que se cruzam no espaço
Que limpeza se faria
Neste campo de batalha!
O meu tabu é mais elevado que tu!
Mas nada há que derrube
Os muros de cimento armado
Do meu inabalável egoísmo
A minha arrogância vale muito mais
Que a tua experiência de vida

Saberás quantos manuais li
Acerca da arte de embalsamar diplomas?!


Aos cem novos anos

Natal de Universal amor.
Dentro de ti.
Na tua casa, que é o mundo.
Vem aí um século-menino.
Dá-lhe, a mão que é pequenino, e ajuda-o a acordar-nos.
Ensina-lhe os primeiros passos.
Diz-lhe de quanto podem os braços unidos.
Diz-lhe que todos temos bocas, estômagos, assim como almas, precisando alimentos.
Fala-lhe que os desvalidos não trazem rótulos, andam escondidos.
Só os mais corajosos se mostram como somos.
E que os Humanos não têm raças.
O sexo só faz diferença na hora de conceber.

Vêm aí cem anos novos, vamos escrever poesia de vida nessa folha!



Dezembro, 2000
Outono No Cais


Tardinha calma e serena. À beira do cais vejo o sol encolher os alaranjados raios e mergulhá-los no mar.
Uma campainha toca, um barco atraca. Põem uma prancha e a gente passa, rotina do dia-a-dia; gente que vai e vem correndo, indiferente.
Sobre o rio, as gaivotas mergulham e fazem ninhos das ondas, ninhos verdes e frios onde só peixes nascem.
A noite desce e as luzes acendem-se. Caminho à toa, aos empurrões dos outros e dando empurrões também...
Ora! Para quê? Não tenho pressa nenhuma...
- Desculpe!
- Ãh?! Ah, não faz mal!
Lá vai apressada, os livros debaixo do braço, a bata branca esvoaçando à aragem fresca que, agora, se faz sentir.
Tenho frio. O vento sopra mais forte. Já escureceu por completo.
Para cá e para lá, caminho rente à água, continuo a divagar, a ver o que me rodeia, sobretudo a pensar.
- Quentes e boas!
O grito de guerra do homem das castanhas. Veio mesmo a calhar!
Aproximo-me dele, que tira do assador uma porção de coraçõeszinhos castanho-negros, fumegantes. Pago e vou-me embora. O calor das castanhas sabe-me bem nas mãos enregeladas.
Continuo a caminhar pelo cais, agora também eu apressada, em busca de um autocarro vazio. Entro e sento-me. Olho lá para fora. Os vultos continuam a girar perante mim, indefinidos, silenciosos.
Ao longe... coisa nenhuma: o nevoeiro cobre a outra margem e céu e rio confundem-se numa massa negra que, mais além, a ponte marca com um tracejado hesitante.
Umas gotas de chuva batem, ralas, no vidro a meu lado. Um cauteleiro passa, de gola levantada e boné enfiado até às orelhas.
- Olhá Lotaria! Olha Taluda d' Ótono!
Mais gente entra no carro, que arranca lentamente, subindo a avenida.
Dos lados, as árvores já estão quase despidas e no chão as pessoas, de impermeáveis e chapéus de chuva, passam depressa, pisando e chutando montes de folhas secas que se misturam com a água que corre pela beira da rua.
Embalada pelo motor, que geme e guincha, encolhida no meu canto, abandono o cais.
De vez em quando a cabeça cai-me para a frente. Levanto-a e arregalo os olhos, pesados de tristeza e sono.



....De Ver Poesia

A minha mãe morreu em Abril... nunca a primavera foi tão linda!
Por todo o lado havia flores brancas e roxas, que sempre lá estiveram mas
eu - que tinha seis anos - nunca tantas vira!
As brancas eram dos espinheiros, breves como os flocos de neve ...que sempre
tentava guardar nas palmas das mãos fechadas.
As outras eram lírios e açucenas - que cobriam o vestido de noiva com que
minha mãe seguiria para sempre vestida.
Houve outra primavera quase tão linda: cheirava intensamente a eucalipto e
os campos eram verdes verdes - o rio mais azul que nunca!
Eu passava na minha rotina, pesada com a minha filha, que nasceu noutro
Abril, dezanove anos depois.




Diamante



...
Lembro-me vagamente de ser transportada por dois bombeiros muito jovens:
Ela conduzia e ele sentou-se ao meu lado.
Disse-me que me deitasse na maca, mas eu sentia falta de ar.
Armou a cadeira, e fixou-a nas traseiras da ambulância.
Pegou na minha mão. Perguntei-lhe baixinho o nome e a idade.
Tinha a idade da minha filha. Sorrimos.
Deixaram-me no corredor do Hospital, mesmo em frente da sala do assistente do meu cardiologista.
O meu grande amigo, provera a tudo:
Reservara-me (reserva-me) uma caminha para o caso de me sentir aflita.
Dera-me o número de casa, fizera-me inúmeras recomendações; medicação rigorosa,ensinou-me como aplicar as injecções a mim própria.
Não pude falar com ele, porque depois da dor atroz sob o esterno, ficara sem poder falar. Balbuciei auxílio aos bombeiros, que com muito custo me entenderam dizer a morada.
Escrevia... mas com a grafia que aprendera nos livros antigos do avô Petronilho... grafia onde coisa era “cousa” e farmácia “pharmácia”
Trocara breves impressões com o meu primo Carlos, médico com longa prática de cardíaco... acabou o doutoramento no ano passado, após vinte e três dias de lhe terem colocado um outro coração a bater dentro do peito.
Meu primo imaginava que eu tivesse receio: Explicou-me em pormenor como me fariam a angiografia e que não doía nada... eu ri:
- Mas, Carlos, eu não temo agulhinhas!
Volto ao corredor do Hospital, à cadeira de rodas e ao rebuliço causado por um internamento que urgia, sem que ninguém ou documento algum me acompanhasse.
Ia de roupão. Não pudera tomar banho mas conseguira, devagarinho, meter numa pequena bolsa a escova de dentes, um bloco, uma esferográfica e três livros:
Dois de Fernando Pessoa e um de Isabel Allende.
Passou por mim um senhor que me olhou com um entendimento indizível, acenou respeitosamente com a cabeça e, sem uma palavra, seguiu.
Senti-me confortada.
As enfermeiras andavam numa lufa-lufa: mas eu era doente e amiga do Professor Ravara e estava no lugar que me indicara: Medicina 1, o que ele chefia.
A enfermaria era pequena: tinha três camas.
Numa delas, um casal despedia-se de uma senhora idosa.
No visor da máquina junto a ela as linhas coloridas seguiam vias desconhecidas.
Soava um tiq-tiq-tiq, em simultâneo com as linhas quebradas por ângulos, para mim enigmáticos, que subiam, desciam, subiam, seguiam...
Aos pés da cama um nome: Noémia.
Uma enfermeira chegou e, com suavidade, convidou o casal a sair, murmurando:
- “Vão tranquilos, ela já está inconsciente, não sente nada...”
Na outra cama, uma menina dos seus vinte anos.
Ligada ao soro, levantava-se de vez em quando, tinha dores, era de uma simpatiatão radiosa que parecia florir o quarto.
Lia um livro, ou fingia ler.
Telefonava à mãe.
Aos pés da cama, um nome:
Marina.
A D. Noémia estava muito agitada.
Afligia-a muito sentir os pulsos atados às grades levantadas da cama.
Pedia para fazer xixi... e Marina ia junto dela, dizendo-lhe muito docemente:
“Faça na fraldinha, vá lá, D. Noémia, tem fraldinha, faça...”
Depois, a D. Noémia ficava longo tempo longe.
Um pombo torquaz alojara-se-lhe na garganta. Tentava enrolar os lençóis de forma obstinada.
De quando em vez, falava.
Falava com muita gente: com as filhas, os genros, o marido, os criados...preocupavam-na todas as tarefas.
Decidida e autoritária, chamava.
Dava ordens.
De repente, caía na abstracção total.
Agitava os pulsos.
Quedava-se.
Os olhos quase sempre fechados mexiam-se muito.
Suplicava que lhe desatassem os pulsos, por favor, por favor!
Aquilo não era coisa que se fizesse a ninguém!
Eu, que divagava ora ali ora noutro lado qualquer, escutei a catequista ou a professora de religião e moral dizer:
- Nunca se deve negar o último desejo de um moribundo!
E vi o desenho idiota do catecismo: de um lado chamas, do outro um padre, um homem agonizante ao meio.
Não sei como desci, peguei na mão da D. Noémia, lhe desamarrei a gaze dos pulsos.
A moça tocou à campainha, enquanto a senhora tentava libertar-se dos eléctrodos.
Olhei profundamente o rosto da senhora e pensei: A morte está na tua frente: Encara-a!
Encarei e era tranquila, doce, pacífica.
A enfermeira alarmou-se, pediu auxílio.
Achei-me de novo na cama, com a máscara de oxigénio, e um enfermeiro, com os olhos mais azuis e compreensivos do mundo, disse-me:
- Todos os sensíveis são julgados loucos, por serem diferentes.
A D. Noémia foi ligada a tudo o que era preciso: à máquina, às grades da cama... desprendia-se da vida.
A moça, da sua cama, explicou que a senhora tinha mais de noventa anos e fora uma grande fazendeira em Angola...
O tempo não existia, mas a D. Noémia percorria a vida em ordem inversa, ficando mais jovem à medida que o tic-tic-tic abrandava e as linhas no visor se iam tornando menos quebradas, de ângulos mais espaçados.
Eu, ora me apercebia disto tudo ora mergulhava no mais profundo de quanto profundo possa ser o sono.
Falava com a minha filha, ralhei com ela, sentada na beira da cama, de pernas penduradas na borda... mas num lapso vi que as grades da cama estavam levantadas.
Peguei no livro de Fernando Pessoa, deixei-o aberto sobre o vão das páginas, às cegas.
A menina sorria-me e olhava se eu pegava no bloco e escrevia... Perguntou-me porquê.
Eu disse-lhe que só sabia escrever.
O último poema Chama-se “diamante”... Ela pediu-mo, eu dediquei-lho mas recomendei-lhe que o copiasse, pois gostava de guardar certos papéis...Prometeu que sim.
Cada vez ia ficando mais tempo numa doce ausência.
Sentia-me um rio a percorrer um deserto, dividindo-se em muitos braços, como um delta... e ia sendo sorvida no nada, no absoluto nada, doce, tão docemente...na paz completa, na ausência de todo o sofrimento.
Percebi que estava morrendo e perguntei-me:
- Mas onde estará Deus nesta sala?!
A D. Noémia, que tinha atravessado a sua vida inteira, e recomeçara a viver agora, terminou balbuciando
- “pa-pa-pa-pá... ma-ma-ma-mã »… e os tic-tic-tic que já eram pingos de som,tornaram-se num zumbido.
E o rio ia sendo absorvido... e eu deixava de ser e minhas últimas perguntasforam:
- Aquele homem seria mesmo meu pai?
Depois, no fio derradeiro:
- Será que comecei por falar ou escrever?
Depois a paz, nem branca, nem negra, nem nada... paz absoluta...
Nada.
Quanto tempo depois me dei conta de mim?
Estava onde?
Nua sob um lençol, de fralda, ligada a fios e tubos.
Um enfermeiro disse-me, de muito longe:
- Agora vamos drogá-la a valer, sim?
... Deslizaram-me para uma sala em penumbra.
No monitor do computador, corredores cinzentos perpassavam.... Eu, drogada,tentava olhar...
O médico sorriu:
- Com que então a ver o seu coração por dentro?!
Movia-se!
Depois o nada... o longo nada... de quando em vez pressentia movimento, as enfermeiras murmuraram entre si:
- Já viste, no dia de hoje estamos cheios?!
... Seria dia de Ano Novo.
Doía-me muito a garganta.
Tentei uma posição mais confortável.
Tentei afastar a máscara transparente, que incomodava...
- Tch tch thc... não pode!
Tem de ficar de modo a que o oxigénio lhe encha os pulmões, e sem a máscaraainda não consegue!
Disseram-me que o Professor Ravara telefonara.
Não sei como, vi-me de novo na primeira cama, na enfermaria onde dera entrada.
Sozinha.
A cama da D. Noémia estava impecavelmente arrumada e anónima.
A de Marina... onde está Marina?
- Marina teve alta!
... Marina, levaste o meu último poema... onde estás, que lhe faltam os dois últimos versos, que deixei escritos no bloco e ainda tenho:
“Reviver
Partir para onde?”
Uma enfermeira, pegou no meu livro e disse-me:
- Olhe o que estava a ler:
“O poeta é um fingidor”
... Olhou-me e sorriu.


Conto de Um Natal


Até as outras crianças, quando nos viam, fugiam de nós ou nos atiravam pedras e gritavam sempre:
- fora, maltrapilhos!
Era o que ouviam dizer ás mães quando, famintos, nos atrevíamos a bater às portas das casas pequenas do bairro.
Andávamos quase nus, descalços, sujos, feridos, o cabelo desgrenhado, o estômago vazio, mas sempre com a boca a sorrir, sempre dispostos a fazer diabruras àqueles que nos escorraçavam.
Éramos três: o Ruivo e a Sardenta eram irmãos. Tinham ambos as cabeças vermelhas e as caras salpicadas de pontinhos, muitos pontinhos negros. Ela era a mais velha, tinha uns nove anos. Isso dava-lhe uma certa importância e autoridade quando, por uma caixa velha encontrada no lixo, discutíamos.
Eu era a mais nova e vivia com eles na barraca, depois da morte dos meus pais, que aliás nunca tinham querido saber muito de mim. Mas como a caridade se vê sobretudo nos mais pobres, eles lá conseguiram arranjar-me um lugar na sua miserável casa já cheia.
Num dia de inverno, frio, escuro e triste, depois de termos procurado debaixo de chuva em todas as latas do lixo, de termos roubado uma laranja a um vendedor ambulante e conseguido um pão fresco na padaria da esquina, escondemo-nos na escada de um prédio velho e começámos a comer, com delícia, o nosso almoço.
Nisto o Ruivo, esperto e matreiro, de quem havia sempre algo de extraordinário a esperar, levantou-se, abriu os braços, fez uma pirueta, sentou-se outra vez, pôs-se a olhar para longe, para muito longe de nós e disse:
- Eh malta! Vocês sabem porque é que está tanto frio?
Nós, nem resposta. Estávamos habituados a perguntas deste género vindas da parte dele. Continuámos a comer em silêncio.
- Sabem, ou não?
- Não! – respondeu-lhe a irmã.
- Mas eu sei! – disse com uma voz triunfante. Nós, caladas. Isso pareceu irritá-lo porque se levantou de um pulo, cerrou os punhos e gritou:
- Vocês querem ou não querem saber?
- Porque é? – perguntei eu.
- Porque vai ser o Natal.
- Natal?! – Admirou-se a Sardenta – O que é o Natal?
- Ah, agora sim! Ora oiçam lá o que eu ouvi os Lanzudos estarem a dizer:
Lanzudos era a nossa maneira de tratar os outros, os ricos, os que se vestiam de lã e corriam e brincavam sem ninguém lhes fazer mal.
- Que é que ouviste? Conta! – pedimos.
- Eles estiveram a dizer que o Natal é uma festa e que se dão prendas às pessoas e que é por isso que as montras estão tão bonitas.
- Oh, temos de ir ver as montras! – disse eu. E logo a Sardenta:
- Isso! Experimenta, que logo vês o que te acontece! Eu cá não vou, não! Já estou farta de apanhar!
47 Baixei a cabeça, triste, mas o Ruivo consolou-me:
- Deixa lá, Macaquinha, vamos nós, queres?
- Quero sim! – respondi logo eu. Quando é que há-de ser?
- Logo à noite, quando há muitas luzes e pouca gente na rua.
_- Está bem!
À noite, a Sardenta foi para a barraca, para junto dos pais e irmãos e eu e o Ruivo partimos à aventura. Tínhamos medo, mas ainda maior curiosidade de ver as coisas com que os Lanzudos fariam a tal festa Natal.
Já era bastante tarde. O vento zumbia, cortante. Passavam alguns carros e pessoas embuçadas que não reparavam em nós. As luzes deslumbravam e aquelas enormes janelas enfeitadas com bolas grandes e brilhantes, com ramos verdes, com sinos de ouro e prata, com grandes bonecas sorrindo, com castelos de chocolate, bolos, pão, fruta.... com tanta coisa deslumbravam-nos ainda mais. E abríamos muito os olhos redondos, e soltávamos ohs e ahs e esborrachávamos os narizes de encontro aos vidros.
- Ruivo, olha como é grande aquela bola! E como brilha!
- Sim, tão linda! E vês aquele carro, mais abaixo? Quase jurava que anda sozinho. Até parece a sério!
- E aquela boneca além? Parece mesmo um bebé. Oh se eu tivesse uma boneca assim!
- Que sorte têm os Lanzudos !
- E porquê só eles, Ruivo? Porquê?
- Sei lá! Afinal isto tudo é para lembrar o nascimento de um miúdo pobre... Vê se entendes!
- O quê? De um miúdo pobre?
- Sim, foi o que eu ouvi. Disseram que ele dormia na palha como a gente.
- Ah, ainda bem que ele não era Lanzudo!
- Lanzudo? Bom, parece que sim, rei ou lá que é. É muito esquisito. Também disseram que era muito rico, tinha não sei quê mais que a gente.
- Ora! Estás a ver aquele bolo grande, todo branco? Que bom deve ser!
- Oh, sim! E aquele castanho mais abaixo? Tem uns molhinhos de palha e em cada um um bonequinho cor-de-rosa, vês?
- Que engraçado!
E assim fomos, rua após rua, demorando-nos diante de cada montra, fazendo conjecturas, admirando tudo. Mas o tempo passava e o sono chegou. Combinámos vir mais vezes.
- Amanhã a gente volta, sim, Macaquinha?
- Sim! Quero ver tudo, tudo. Que coisas tão lindas, hein, Ruivo?
- E agora? Vamos Para a barraca?
- não! Tenho muito sono. Olha uma portada aberta, vamos!
Não tardou, estávamos a dormir num canto, com um sorriso nos lábios, sonhando ser os donos de todas aquelas maravilhas.
Ao outro dia não parámos de falar à Sardenta em todas aquelas belas coisas que tínhamos visto na véspera. Ela já estava meio resolvida a acompanhar-nos, mas o medo foi mais forte. Ficou.
Chegada que foi a noite, lá fomos nós outra vez e a cena repetiu-se por muitos dias, e em todos eles nos extasiávamos diante das mesmas coisas, descobrindo outras, cada vez mais encantados.
Mas naquela noite o vento era tão frio, a chuva tão forte, que resolvemos refugiar-nos em qualquer lado à espera que o temporal amainasse para depois continuarmos o nosso passeio. Por entre as grossas bátegas de chuva começámos à procura de qualquer canto seco, até que avistámos uma grande porta por onde, durante certo tempo, entrou muita gente. Depois, mais ninguém. Resolvemos espreitar: para lá dessa porta havia uma outra, fechada. Olhámos um para o outro e encolhemos os ombros, desanimados.
- Nada feito! Está fechada, disse.
- Atenção, Macaquinha! Vem aí alguém!
Rapidamente, escondemo-nos atrás da porta grande. Uma velhota entrou, empurrou a porta fechada e sumiu do outro lado.
- Olha! Afinal a porta pode-se abrir!
- Vamos dar uma vista de olhos?
- Vamos!
Devagarinho, abrimos a porta e espreitámos para dentro: havia várias filas de bancos e, no meio deles, muitas pessoas. Lá ao fundo, à volta de uma estranha mesa, vários padres falavam uma linguagem que nunca até então tínhamos ouvido. Mais atrás, um grupo de rapazes, todos vestidos de igual, cantava.
Não sei de onde, vinha uma música bela, suave. Havia também muitas luzes e velas ardiam em redor da mesa. De vez em quando os padres, sempre cantando, faziam grandes gestos em direcção ao céu e ao povo, ajoelhavam e tornavam a levantar-se e as pessoas imitavam-nos e falavam muito baixinho.
- Céus! Os padres parecem zangados!
- Não me parece! Todos fazem como eles.
- O que será isto? Seja o que for, lá de dentro vem um calor muito bom.
- E se a gente entrasse?
- Está bem, vamos.
A porta fechou-se silenciosamente atrás de nós, que nos metemos no canto mais escuro que encontrámos e aí ficámos a observar.
Mais uma pessoa entrou na casa e, com ela, o vento frio da rua. Arrepiei-me e o Ruivo estremeceu. Encostei-me mais a ele, que me passou um braço pelos ombros.
- E se nos sentássemos? Aqui atrás ninguém repara na gente. Estão todos tão atentos. Achas que nos mandam embora se nos descobrem aqui?
- Não, acho que não. Chega-te mais para cá. Está tanto frio, mesmo assim!
Sentámo-nos no chão. Estava-se ali bem. Cheirava a um fumo esquisito que vinha da mesa onde os padres estavam.
O Ruivo perguntou:
- Ainda tens frio?
- Não.... Ruivo, sabes quem é que nasceu?
- Não, não me lembro do nome.
- Um miúdo pobre que depois se passou para os Lanzudos?
- Não, não era bem isso, era muito esquisito, como te hei-de explicar?
- Como é que se chamava?
- Eu ouvi o nome... era Ju... Je... espera, era Jesus E não se passou nunca para os Lanzudos, dizem que eles o mataram por causa disso.
O coro continuava a cantar “Feliz Natal” “Feliz Natal”
Eu pensava que gente ruim eram os Lanzudos que tinham querido apanhar o miúdo pobre e que o tinham matado por ele querer continuar pobre. E em como o mais esquisito de tudo era estarem a fazer-lhe uma festa cheia de coisas que nos faziam crescer água na boca.
As lágrimas correram cara abaixo.
Senti o contacto quente de uns lábios na minha face. Vi o Ruivo despir o seu casaco leve e esfarrapado para me cobrir com ele. Sorri.
- Pobre do miúdo, o tal Jesus, se tivesse vindo com a gente....
Sorriu.
Lentamente, a cabeça descaiu-me, escorregou no ombro do amigo que ainda tinha e adormeci.


O AR DA LIBERTAÇÃO



Alice gosta da sua independência. Não a trocaria por nada. Mas adoeceu. Já não dá conta da casa, cansa-se, cansa-se!!

Vai tentando fazer o que pode. Procura, em tentativas desastrosas e com altos custos, uma empregada.

E sofre um mundo de desordem que lhe era estranha, enquanto uma chega e manda outra embora....




Até que chegou uma outra empregada, que a tratava por TU, sem a conhecer e a quem ela tratava por SENHORA, na tentativa de a fazer tomar consciência da asneira... mas não!
Mal chegava, encaminhava-se para a sala, sentava-se no sofá, ouvia as ordens sem atenção, abria o bar e bebia....
Era uma situação invertida, como invertida seria ela, ou fingia ser: assediava a patroa.

Esteve a limpar-lhe a casa por dez dias, dos quais faltou três e foi sete

Alice a blindava-se na sala de jantar, com os seus pertences secretos. Sentia-se prisioneira e a empregada como seu carrasco.
Quieta e calada, observava.

Às tantas dera-lhe na telha trazer uma estranha. Banqueteavam-se com a sua comida sem lhe pedirem sequer licença e tentavam sugestiona-la a todo o momento.
Mordia-lhes não terem a chave da porta!
E pediam-na a cada instante.

Uma era o lobo mau e a outra a avozinha, sendo a patroa o cão da casota.


Teve uma conversa com ela.


Conversa perdida.

O tratamento por TU continuou, as falinhas mansas continuam e ela, na sala de janta!r Escrevendo, lendo, alheada.... atenta!


Um dia, o quarto ou quinto trabalho, entrou com uma adolescente clara, radiosa e linda, que ela só interceptou a meio do hall, tão rápida e lesta entrou, como se toda a vida o tivesse feito.
- - Hoje trouxe a minha filha, para me ajudar.
- - Entraram para a cozinha, que Alice limpara ligeiramente após o seu almoço. Apressou-se.
- - Nas suas costas – costas com costas, de fato, quase que roçando-se que a cozinha é estreita, desatam a abrir o frigorífico, a caixa do pão (compras que Alice fizera arredondando os noves e os quatros que os supermercados usam para iludir os incautos) e que se apressara em transportar com esforço, em duas viagens.

Fora às dez horas.
Sem nenhum aviso nas vastas vidraças fechadas, tanto espreitara que um segurança fardado viera, dizendo-lhe do lado de lá
- - Só abre às duas!Está a ouvir? Só a -bre às du-as! – e batia com o indicador direito no mostrador do seu relógio de pulso.
Bem lá no alto, num enorme cartaz verde ela lia ao mesmo tempo que ouvia o guarda:

“Este Estabelecimento Está Aberto Domingos e Feriados das 8.30 às 22 horas”

Voltou.

Para Lá, era a descer, mas para cá era a subir, sem Santo André que a ajudasse.... boca aberta, arfando que nem um peixe acabado de cair no fundo do barco.

Como não havia comida, voltou lá às duas.

Pouco depois, entravam Eugénia e uma outra.


Bichanavam agora qualquer coisa e bichanavam entre si
- Anda, come!



Não quis ver mais, saiu e foi para o seu abrigo escrever, ler, ou simular que lia e escrevia.

Bem, limpou, lá isso é verdade, embora queixando-se do aspirador.

Alice reflectia.
Claro que não é natural uma patroa muralhar-se num aposento por quatro horas!
De vez em quando ia ver como iam as coisas:
- Olhe, os animais já estão tratados. Por favor, faça isto ou aquilo.
Mais comedida na presença da adolescente de nome indefinido, que ora era Nilde ou assim e logo era outro parecido...
Perguntara-lhe o nome e ficara na mesma.

Depois de as duas saírem, Alice foi ver o que haveria para petiscar, não tinha fome.
Ainda bem! Porque na embalagem fechada que ela metera na caixa do pão só havia um resto:
Dois pãezinhos de leite, que devorou lixada da vida com o descaramento.
Assim, sem mais nem menos, via-se desgovernada de novo e por alguns dias outros valores mais altos se levantavam, rigor econômico absoluto, nada de compras.

E pior do coração: falta de ar, de forças, tornozelos de hipopótamo... enfin, la routine habituel, como diria a Obelix!



No dia seguinte ,intercepta a limpar os pés no tapete da entrada, outra jovem.
Pele muito escura. Olhos de brilho intensíssimo, como duas gotas de amêndoa a saltar.


No terceiro dia, vai abrir a porta e apanha um susto: entra-lhe pela casa dentro, quase a empurrando, uma criatura cor de cobre, uma cor que há no centro de África, obtida pelo uso intensivo de um óleo especial, com aspecto de lutadora do Restling Challendge, um mulherão imenso, com um elaborado penteado de muita trancinha arruivada.

No ar: estás a ver, é esta aqui!... entre olhares.


Alice sente a ameaça declarada e ela, que não é de ter medo à toa, vai quase a tremer para a sala de jantar

E esta?!,Estão-me a preparar um golpe qualquer. De caras! E esta Fulana não se põe na rua sem uma boa justificação...

Pensa, Alice! Pensa, pensa, pensa!
A do tratamento por tu, já gastaste. E em vão!
Pensa, Alice, pensa!

Ficara de ir à Lacoste às três horas. Estavam à sua espera.


Vou num pulo buscar o saco de mão, com o telemóvel e tento avisar a Lacoste de que só poderei ir às seis, seis e meia...
Iam-se esborrachando no corredor:
- - Estás o olhar o relógio para quê, pergunta-lhe de supetão a Eugénia

Alice salta e determina:

- - Daqui não saio! Nem um minuto!

De repente, olha:

O dossiê verde, com etiqueta pomposa Plano de Gestão e Tesouraria!
Gozava dos números e coluninhas feitas no computador pala sua prima, à profissional, sempre ali na mesa, no meio de muita papelada dispersa: poesia, publicidade, revistas, um baralho espalhado por uma criança de meses, propositado, num labirinto, a ver se lá não meiam o bico!


Havia outro dossiê no cesto das revistas.
Ela senta-se de pernas abertas no sofá, pega nele sem cerimônia, abre-o e começa a ler... Esteve com azar! Era o dossiê dos bolos.
- - Sabes fazer bolo de chocolate?
- - Alice acena que sim. E a outra, voltando às páginas:
- - Olha, eu a falar nele e ele aqui! Hás-de fazer-me um bolo destes, ouvistes?

A Lutadora apanhou as trancinhas num puxo grosso e encostou-se à parede do hall, enquanto Alice safava as flores, a camilha de cetim com a toalha de renda.

- - Para que é que estás com isso? Deixa estar!
- - Não, não! Que me deu muito trabalhinho a fazer!

Vai puxando tudo para a cozinha, por causa do pó. E safa-se!
Conseguiu tirar o tapete, vá lá!

Poeira a rodos. Começam a esvaziar a despensa, a que ela chamava “destroços do Titanic”
...A anterior, Kátia, atirava porta dentro fosse o que fosse. Disse porta?! Não, aquilo era a baliza da Kátia!
- - Está tão escuro! Não tens luz em mais lado nenhum?
- - Tenho, no teto, mas não chego lá... importa-se de me mudar as lâmpadas do plafonniê?

- - Eu?!

- - - Pois, a senhora. Com esse escadote chega lá. Estão aqui as lâmpadas.

- - - Eu não mecho em fios elétricos!

- - - Não são fios, são casquilhos. Só que as lâmpadas estão escondidas dentro do suporte. Pousadas lá dentro, entende?

- - - NÁ! Tens que chamar um técnico para te trocar as lâmpadas. Eu cá não lhes mecho!


Há três fontes de luz no corredor em U: dois candeeiros de mesa, dois apliques de parede, dois plaffoniers de teto. Mas as lâmpadas destes fundiram-se há muito tempo. Todas as empregadas se negaram a muda-las... nem fechadas estão, apenas pousadas nos florões de gesso patinado.

Entretanto, só de novo, lembra-se: Tenho de lhe falar no pano úmido!

Vem da sala, mas encontra a Lutadora a pegar num alguidarzinho com as pontas dos dedos, vindo da cozinha.

Volta, para arrumar a papelada. A sala de jantar parece um sarcófago.
A Kátia devia ter algum Kalifa na família: gerações e gerações de adaptação a tempestades de areia... Limpar o pó?! Pois sim! Via-se por todo o lado, preto a saltar do esbranquiçado, nos móveis, objetos, quadros... Então os quadros!

As suas parentas, no campo, com bichos a entrar e a sair, arcas de trigo e milho e grão e tudo e mais alguma coisa, não tinham assim pó em casa! Lembra-se de não ver pó, só agora se dá conta. Como fariam? O terreiro era varrido até aos montes de lenha, às furdas, no meio das Lages, à volta das pias escavadas na pedra, com água para as galinhas, perus malvados, patos cagões, marrecos barulhentos... e, no verão, regado a regador. Não havia pó.
E esta?! O meu quinto andar parece-se mais com uma tenda no meio do deserto!
Bem, acabou-se a história do aspirador: vêm mostra-lhe os tubos: um deles não encaixa. Pois não, tem a abertura oval!
E esteve cá o senhor António a arranjá-lo ainda não há três dias!
- - É bom, é dos antigos e olhe que ainda os fabricam iguais, mas qualquer dia tens de pensar em comprar outro.
- - Qualquer dia! Tamanha trancada levou que ficou sem conserto!
- - E há-de tardar o dia em que possa comprar outro.

Bom, hoje “já conseguiu” arrumar os seus papéis. Vai para a sala de estar e grita para fora:
- - Se precisarem de alguma coisa, já sabem!

E pira-se.

- - Mas ó! Olha lá, como queres que eu limpe este tapete sem aspirador?! Há quanto tempo é que isto não é limpo, hãn?

Não ouve nada, já se foi.
Depois, como o tempo passou e passou, diz-lhes:
Bem, hoje os pássaros ainda não estão tratados. Vamos lá, que eu explico-lhes.
Eugénia abre as molas, deixa cair as bases plásticas das gaiolas, atrapalha-se e lá vai ela: cai-lhe tudo em cima... já agora, despeja os tabuleiros, bufando, e dê-me lá um saco de areia para pôr um bocadinho no fundo, está a ver a senhora? – e vai fazendo e a outra vai passando displicentemente a vassoura, caem cascas.
- - Lá me estás a sujar tudo!
- - Alice tenta astuciosamente mudar as gaiolas, pede o fio, vai fazendo e a outra a olhar-lhe as unhas – que arranjara na véspera à noite – como se os seus dedos fossem duchesses com chatilly. E vai murmurando:
- - eu ainda hoje não t fiz festinhas...
Nenhum pejo diante da Lutadora, apresentada à entrada como irmã anônima.
O cabelo de Alice esvoaça e cola-se-lhe à cara suada
- - - hummmmmm, hummmmmm Olha lá, quando é que cortas este cabelo, hein?
- - E apanha-o todo, e roça-o com as patas.

Alice sacode violentamente a cabeça, escapulindo-se-lhe das patorras, da proximidade gulosa. Estão as duas quase coladas a si, os seus dedos ágeis dão nós.
As duas patorras parecem de lama.
- - Uma das senhoras podia colocar a palma da mão debaixo deste tabuleiro? Desculpe lá, é mesmo só colocar a palma da mão, para eu fechar estas molas. A senhora, D. Eugénia, pegue aqui, está a ver a senhora? É fácil!
- - Vai tagarelando muito para esconder os nervos. Trabalha muito depressa, usa e abusa deliberadamente da palavra senhora:
- - E a senhora D. Eugénia isto, e a senhora D Eugénia sussurrando no seu ouvido:
- - - Hoje ainda não te fiz festinhas...
- - Lá estás tu a deitar coisas no chão outra vez. Olha lá!

Limpou meia dúzia de gaiolas. O chão fica meio varrido, meio por varrer.
- - Está na minha hora, olha lá! Eu cá vou-me embora!
- - Anda lá daí, para não ficar aí esse entulho, vá! Ai, arranjaste aqui uma boa empregada. Fico contigo toda a vida, estás a ver?
- - A senhora é que arranjou uma boa patroa!
- - Ai, tens-me aqui para o resto da vida!

E vai de lavar as mãos no lava-louças, e vá de ir mudar de roupa para o quarto do lado,porta aberta, com a acompanhante.

Lá se vão! Alice escorre suor
-Ai, estás toda vermelhinha!

Enfim, porta fechada nas costas!

Uf!


Já, já, um duche! Ai, águinha, águinha....

Toca o telefone:

- Daqui, Lacoste! Então a senhora não apareceu?!
- - Ah, vou já, desculpe, não confio nesta empregada sozinha em casa, está a ver?!
- - Vou já!

Vai já é a despir-se pelo caminha para a casa de banho, a torneira aberta no máximo, encharca-se a correr, veste a primeira coisa que encontra.

Lá, desabafa. Tinha de ser, senão rebentava!
E a empregada de balcão passa a trata-la que nem a um subordinado.
Mas o serviço foi feito e pago e quero mais é que ela vá ver se eu estou naquela esquina!

Volta.
Tem de sair! Há uma semana em casa, não pode mais! Agarra o livro, abre a porta. trrrrrrimmmmm! A filha! A filha quer horas de conversa.
- - Olha, querida, desculpa lá, queres ir ter comigo à esplanada do McDonald’s? Eu vou. Vou ler para lá, anda!
- - Ah, olha, hoje adiei um exame pela primeira vez na minha vida, e....
- - Anda lá, faz-te bem!
- - Ah, não dá, estás a ver? Tenho de dar banho ao gato, a pele dele, sabes, vou ver se ainda apanho o veterinário!
- - Mas estás a ver como é que o Zen fica se o meto na caixa de transporte, não é? O pobre até vai dar saltos! O veterinário vai ficar....
- - Olha, desculpa, depois ligo-te. Tenho de sair. Tenho de ir para a rua, se não vens, eu vou. Desculpa, sim?


Ela! Ela a apressar o telefonema da sua desatenta ouvinte palradora acerca de professores chanfrados, Freqüências demasiado freqüentes, inconstituicionalíssimamente frequantes!.
Sabes, o pobre do universitário só se tiver razão em tribunal, estás a ver isto?! Vê lá que....

Uf, uf!

Um café e um bolo, 150.00


Pede um café e um bolo.
- - Quanto é? Pergunta.
- - O moço fica a olhar para ela, parado. Depois acena para o cartaz com o preço por entre a publicidade, sobre o balcão, em frente da caixa registradora.
- - - Ai, desculpe, estava distraída.

Senta-se na ponta de uma cadeira, abre o livro.
Está tolhida. Tem consciência do seu próprio ar ridículo. Enfia a cara no livro e vai comendo ao mesmo tempo que aparenta ler.
Chega-se para o espaldar da cadeira aos pouquinhos. Agora um pé fora do sapato, o vestido tapa.

Aos poucos, aos poucos, muitíssimo aos poucos, a leitura envolve-a, os nervos desemaranham-se, vai ficando mais natural, mais com ar de toda a gente.

O sol vem.

Puxa a mesa para um canto à sombra. Depois a cadeira.
Está lá ao fundo, ali mesmo, que a sombra é um ângulozito no chão.

Uma mulher sozinha, chávena à frente, inquieta, sem nada, os cotovelos erguidos e as unhas tamborilando umas nas outras, olha-a Sente-se que está louca por soltar a língua. Até incomoda.

Porra!

A mulher tem-na na mira.


Mas que é isto?!

Eu gosto é de Homens! Bons! Que gaita!

Mergulha acintosamente o focinho na livro. O livro é excelente, fá-la sorrir, fá-la chorar.
Mas não se pode dar ao luxo de levantar os olhos.
Ora esta!


Só uma nota, que não anotei:

No primeiro dia, abanca no sofá, volta-se bem para ela de pernas abertas à homem, que no entanto o vestido tapa e pergunta-lhe de repente, como se perguntasse as horas:
- - Olha lá, tu já fumaste?
- - - Já experimentei, quando era miúda, mas não gostei. Não, nunca fumei. A minha filha é que fuma muito: dois maços por dia. Bem, os filhos... a gente proíbe, depois aconselha, mas... crescem e agora....



Uf!
A gaja desligou-me o telefone na cara. Deve pensar que me estou a roer de medo. Que me deixou fula, já que sou tão fina que não me podem tratar por tu e que só digo senhora para aqui e para ali...

Ora Toma!


Sente-se outra!

Ai, o ar, o ar a entrar nos pulmões até ao fundo,
É tão bom!











A AUSENDA








A ÚNICA CASA QUE FICAVA PERTO DA DO LOUREDO, ERA A DA AUSENDA.
CASA BAIXA, PEQUENA, DE TELHA VÃ MUITO VERMELHA, CAPOEIRA E FURDA AO LADO.TERREIRO CURTO.
MAIS ABAIXO A HORTA, A VINHA, E UMA ÁRVORE RARA - UM MEDRONHEIRO, TRAZIDO SABE-SE LÁ DE ONDE, QUE NO FIM DO VERÃO SE ENCHIA DE FRUTOS GULOSOS, VERMELHOS,SUCULENTOS...
- NÃO COMAS MAIS, LURDES, SENÃO EMBEBESDAS-TE!
AI, MEU DEUS, DELICIOSOS FRUTINHOS EXÓTICOS, FASCINANTES, ÚNICOS, QUE ME FICARAM NA MEMÓRIA DAS PAPILAS GUSTATIVAS E NOS OLHOS PARA O RESTO DA VIDA!
AI, ESTA ÁGUA A CRESCER-ME NA BOCA COM A LEMBRANÇA!
A AUSENDA, FIGURA VAGA, VINTE E TAL, RONDANDO OS TRINTA, ERA CASADA COM O ANTÓNIO CAPINHA, HOMEM RUDE, JORNALEIRO, TRABALHAVA ONDE HAVIA TRABALHO E, AO DIA DE RECEBBER A JORNA, BEBIA, CHEGAVA TARDE A CASA, BATIA NA MULHER QUE GRITAVA, DIZIAM, MAS NÃO IA NINGUÉM ACUDIR-LHE: ERA UM HÁBITO E, COMO SE DIZIA, APANHAVA AINDA POUCAS, QUE "TINHA UM AMIGO"...
FALAVA-SE, FALAVA-SE...
QUE SE VIRA O SOARES, HOMEM BEM DISPOSTO, DE CARA LARGA E ROSADA, QUE SE TRATAVA BEM
DIZIA-SE...
DIZIA-SE QUE FORA VISTO A ENTRAR LÁ EM CASA NA AUSÊNCIA DO ANTÓNIO;
QUE O ESCONDIA ATRÁS DA PORTA SE ALGUÉM DE FORA CHAMAVA;
QUE ANDAVA SEMPRE A LIMPAR-SE AOS SAIOTES, TINTOS DE SANGUE QUE ERA UMA VERGONHA.
O ANTÓNIO TINHA ALGO DE MISTERIOSO QUE FALAVA AO MEU INSTINTO DE MENINA CURIOSA, UM FASCÍNIO: A SUA VOZ GUTURAL E FUNDA.
FALAVA POUCO, MAS HAVIA ALGO TÃO ESPECIAL, ARREPIANTE, NA SUA VOZ!
PORQUE É QUE A AUSENDA NÃO GOSTARIA DO SEU HOMEM?
TINHAM UM FILHO, O TÓ CAPINHA, QUE ANDAVA NA ESCOLA E QUE, NA MINHA MEMÓRIA, ME PARECE SEMPRE COM UNS NOVE ANOS, ALTO E ESGALGADO.
BRINCÁVAMOS RARAMENTE.
EU ERA UMA GAROTA PEQUENA, AS NOSSAS MANEIRAS DE BRINCAR MUITO DIVERSAS: ELE BRINCAVA COM OS OUTROS MIÚDOS NA ESCOLA, IA AOS NINHOS, AOS TORTULHOS, ÀS CASTANHAS.
EU FAZIA BONECAS DE TRAPOS, CASINHAS DE PEDRAS SOLTAS COM MURO E JARDIM, INVENTAVA HISTÓRIAS, PERSONAGENS, VIDAS.
LEMBRO-ME DE ESTARMOS EM CIMA DO MURO, ELE A DESENTERRAR E A DIZER-ME QUE SE COMIAM AQUELES PEQUENINOS BOLBOS DAS CAVALINHAS, E EU RELUTANTE EM TRINCÁ-LOS!
UM DIA ESCULPIU DOIS ANIMAIS EM MADEIRA, COM O SEU CANIVETE, PARA LEVAR À PROFESSORA.
ERAM LINDOS! E EU NÃO ERA CAPAZ DE FAZER ASSIM! EM FÚRIA,ARREMESSEI-LHES PEDRADAS CERTEIRAS - AI, A PONTARIA QUE EU TINHA - E, ZÁZ! NUM MOMENTO LANCEI-OS DA PAREDE DO POÇO PARA O FUNDO, TRINTA METROS ABISSAIS,DEVEM TER CAÍDO NOS OLHOS DE ÁGUA BORBULHANTES QUE VI MARAVILHADA QUANDO CONSEGUIRAM DESPEJÁ-LO PARA O LIMPAR.
ARREPENDI-ME LOGO.
MAS COMO REMEDIAR TANTO MAL?!
COMO APAGAR DOS MEUS OLHOS A IMAGEM DA CARA ESTUPEFACTA DO TÓ, AINDA INCAPAZ DE CHORAR, OS BRAÇOS CAÍDOS, A BOCA PASMADA, UMA DOR SUPERIOR À COLERA?!
A AUSENDA IA ÀS VEZES PASSAR O SERÃO À LAREIRA DA MINHA AVÓ.
FALAVAM NÃO SEI O QUÊ. O ANTÓNIO IA ÀS VEZES, MAS SAIA SEMPRE MAIS CEDO. O TÓ CABECEAVA E ADORMECIA E ELAS FALAVAM, FALAVAM...
POR FIM A AUSENDA PEGAVA NO FILHO AO COLO, AS GRANDES BOTAS DE COURO CRU A BATER-LHE PELOS JOELHOS, E LEVAVA-O, A BOCA ENTREABERTA, A CABEÇA A BALANÇAR,ADORMECIDO.
EU FICAVA CHOCADA COM AQUELE MIMO TODO!
MIMO!
ACHAVA UM NOJO, UMA VERGONHA MUITO PIOR DO QUE O QUE DIZIAM DELA, E EU MEIO PRESSENTIA PELO TOM DAS VOZES, PELO FALAR À SOCAPA.
EU NUNCA TIVERA MIMO!

ÀS VEZES A AUSENDA GRITAVA:
- SOU VIRGEM!
FALAM DE MIM, MAS SOU TÃO VIRGEM COMO NOSSA SENHORA!
O RESTO, ERAM QUEIXAS, QUEIXAS, QUEIXAS... QUE EXCLAMAÇÕES GRITAVA ELA!

MORRERAM: PRIMEIRO A AUSENDA, AINDA NOVA, DE CANCRO NO ÚTERO. DEPOIS O ANTÓNIO,DE VELHO.
O TÓ PARECE QUE VEIO PARA LISBOA E FEZ FAMÍLIA.


A CASINHA, DA ÚLTIMA VEZ QUE A VI, PARECEU-ME AINDA MAIS PEQUENA.
LÁ ESTÁ, MUITO NEGRA, AO ABANDONO.

E ERA TUDO TÃO GRANDE E TÃO LONGE!



Sobre a « Não-se-Diz »



A “Não-se-Diz” era uma cadelinha mansa.
Não era útil porque não era feroz, logo não servia para guardar a casa.
Amarela-arruivada, vivia no desamparo do terreiro, enxotada se se aproximava faminta, as costelas salientes sob o pelo.
Tinha cachorros com frequência porque assim que nasciam lhos matavam.
Talvez a sua carência de afecto a fizesse ser tão prolífica.
Era muito infeliz.
Até uma criança notava o amor rejeitado nos seus olhos meigos.
Na casa de meus avós, nasciam muitos animais: cachorros, gatinhos, cabritos, burros, coelhos... havia sempre grupos de pintainhos deambulando atrás das mães.
Pude ver a lenta agonia de minha mãe, que morreu a meu lado, na mesma cama. Mas era um mistério total o acto de se nascer.
Uma tarde, a “Não-se-Diz” não teve tempo de se recolher num canto para parir, ou não a deixaram, porque saiu a ganir do palheiro, escorraçada.
À medida que tentava fugir, iam-lhe dando pontapés no dorso, na barriga inchada.... ela ia correndo enquanto os filhotes iam caindo de si, na carreira.
Voltava aos humanos um olhar de súplica, gania, gania!
O terreiro ficou atravessado por uma longa lista de sangue e pequeninos seres que se contorciam.
Aí, sim, a minha curiosidade fez-me olhar atentamente aquela horrível cena, que perpassa constantemente ante meus olhos em lágrimas.
Estava aterrada e em pranto: não sabia mas entendia o sofrimento daquele animal desgraçado.
Corri e gritei, mas não me deixaram intervir: enxotaram-me também.

Calada num canto olhava e pensava:
Quando eu mandar (porque sempre falavam "quem manda agora sou eu;amanhã mandarás tu)não vou permitir que tal se faça!


“O MENINO DE SUA MÃE”




Chegou a casa com maus modos, para jantar.
Tirou do bolso um papel branco e atirou-o para a prateleira da estante.
Olhei-o interrogativamente. Desviou os olhos de mim e, saindo da sala, disse:
- Estás grávida, estás!
O meu coração disparou, batendo muito depressa.
Angústia. Medo. Perante a ameaça e a raiva daquela frase dita entre dentes.
Ele saíra da sala sem mais uma palavra.
Eu fiquei presa ao sofá, em frente do aparelho oco da TV.
Os maus modos dele diziam:
- Só faltava estares grávida!
Como se fora algo que eu fizera sozinha!
Comeu e saiu.
- Vou trabalhar! – Era por essa altura a frase com que se despedia quando ia ter com a tal “menina”...
Tratei da minha filha, com três anos e meio, deitei-a na sua caminha branca de grades.
Fiquei muito tempo junto dela, até que adormecesse, pois saíra do nosso quarto havia pouco tempo, onde, descida a grade, sempre dormira com a sua caminha encostada a mim, atenta, afagando-a se se agitava, tapando-a se se descobria.
O pai habituara-a a dormir de luz acesa.
Conversei muito com ela, contei-lhe uma história, afagando suavemente os seus caracóis loiros de bebé.
Quando os olhinhos se lhe fecharam, a mão agarrando a minha, fiquei ali ainda, pensando junto dela na sobressaltada alegria que sentira ao ler no papel vindo da farmácia aonde levara uma amostra de urina:
- Positivo!
Exactamente a mesma palavra, num papel semelhante, estava escrita naquele outro, que o pai atirara sobre o móvel da sala, irritado, impaciente, indiferente ao filho que semeara e crescia no meu ventre.
Pus-me a olhá-la bem, à minha menina: recordei todos os seus momentos: o seu primeiro olhar, o seu primeiro sorriso, os seus primeiros passinhos... lágrimas de alegria desciam-me pelo rosto: em breve repetir-se-ia o milagre da vida que despertara e vivia, ainda silenciosamente, no aconchego de mim, se alimentava do meu sangue; era uno e indiviso comigo... Devagarinho, o amor por esse filho descoberto tomou conta do meu coração!
Deitei-me. Não sei quando o meu marido voltou: havia tanto tempo que só chegava de madrugada, cansara-me de o esperar, sequer de me afligir.
Ao outro dia, cumprida a rotina matinal das mães que têm muitas missões a cumprir antes de iniciarem as suas oito horas de trabalho numa cidade e deixarem os seus filhos entregues aos cuidados de uma pessoa longe, entrei no autocarro apinhado, corri para a fila do barco, segui no aperto de milhares de outros que vão de manhã para o trabalho de olhos mortiços, cumprido o destino de animais que vão para o matadouro e regressam à noite, exaustos e partidos, afim de recomeçarem as tarefas adiadas.
Da outra vez tinha dito às minhas colegas que estava grávida, tínhamo-nos congratulado juntas... desta, algo me fez calar o despontar da alegria, uma incerteza indefinida, algo aparentemente inexplicável: a ameaça pairava como um cutelo afiado no brilho frio dos olhos do pai dos meus filhos.
Quando chegou para jantar, resmungou:
- Agora tens de te livrar disso, já sabes!
O meu coração apertou-se. Senti-me reduzida a nada, tremendo. A minha boca não se abriu, toda eu me concentrava no que acontecia dentro da minha barriga.
Ele foi “trabalhar”, como de costume.
Cumprida a lida da casa, deitada a filha no berço, encolhi-me na beirinha do colchão, sem me mexer, as lágrimas enfim soltas.
Ah a dor indizível da impotência que nos consome, sem remissão, sem nada nem ninguém que nos escute!
Na noite seguinte, trouxe uma caixa pequena, redonda, anónima e branca.
- Isto vai resolver tudo. Toma!
Trouxe um copo de água e ficou ali, de pé, verificando se eu engolia os comprimidos todos.
Poderia ser qualquer veneno. Obedeci sem proferir palavra.
Na minha roupa, nem uma mancha vermelha.
Portanto, repetiu-se a cena, a dose, fornecida por um farmacêutico cúmplice dele, amigo de farra, confidente e conivente. Todos os dias, nova caixinha branca redonda de plástico, sem dizeres, fechada com fita gomada, cheia de veneno a tomar obrigatoriamente à sua vista.
-Toma isto. Amanhã vem-te o período de certeza!
Engolia as lágrimas, os protestos e as drogas.
O filho tinha o nome de “menstruação atrasada”. Entre as mulheres que conhecia e com quem trabalhava esse problema era falado com tal frequência que se banalizara.
Resolviam-se “os atrasos” tomando certos remédios, secretos, miraculosos.
Não lhes chamavam abortos, mas provocar o aparecimento da menstruação que se atrasara...
Na minha estúpida inocência, numa sociedade hipócrita onde não se mencionavam assuntos tabu, nem a palavra aborto, nem a sexualidade era considerada... como se os filhos aparecem do nada, trazidos no bico da cegonha, nada se discutia, não havia a quem colocar dúvidas, as questões permaneciam camufladas atrás da máscara opaca das “famílias respeitáveis”, aonde não aconteciam “certas coisas”
As senhoras respeitáveis, entre as quais trabalhava e me movia, que me falavam muito bem, me metiam no coração, me demonstravam estima e respeito... sabiam porém muito mais que eu: sabiam da vida dupla de meu marido mas... cala-te boca!
Eu tinha medo. Não tinha ninguém. Tudo se passava na solidão das quatro paredes.
Estava tão fragilizada, vulnerável, insegura!
Acreditava ainda que o homem que amava, porque ainda o amava, deveria ser o meu único confidente, confiava nele, muito embora a sua frieza me assustasse.
Me repugnasse a sua ambição sem escrúpulos; o calculismo com que ia ganhando terreno nos negócios... enquanto eu sustentava a casa, porque seria normal, uma vez que fazia as compras, pagá-las com o dinheiro do meu salário.
Tudo fazia para não o contrariar. Obedecia-lhe como uma cega, tentava não o desagradar nem nos pormenores. Colocava-me a mim mesma em último plano. Anulava-me pelo bem-estar das duas únicas pessoas que tinha por minhas, às quais dedicava a vida: meu marido e minha filha, o conforto da casa, o desempenho profissional, as coisas prontas a horas certas, tudo deslizando como se rodinhas bem oleadas e invisíveis tudo arranjassem: a máquina invisível era eu, o óleo mágico que tudo fazia deslizar sem se perceber era o meu empenho e esforço.
Aos domingos, costumávamos visitar o meu padrinho de casamento, fino e sabido, que enfim decidira assentar junto de uma mulher ainda mais fina e sabida que ele:
Minavam aos poucos os restos do resto da minha família, insidiosamente.
O meu marido contou-lhes ao serão, com a maior naturalidade o “meu caso”... Eles foram unânimes e enfáticos em dizer que tinha de resolver “isso” depressa, pois ele agora não queria problemas... e que isso era fácil, banal, toda a gente o fazia...
Voltei mais animada.
Vínhamos sempre muito tarde e a minha filha deitava-se no banco traseiro do carro e adormecia.
Eu tirava-a com cuidado, embora já fosse muito pesada. Trazia-a aconchegada contra o peito, despia-lhe a roupinha e vestia-lhe o pijama sem que ela despertasse. Deitava-a e dava-lhe um biberão de papa-láctea, que ela engolia, tranquilamente, dormindo.
Tinha “muita prática e jeito”, dizia o pai dela.
Mas naquela noite despertou e viemos palrando até chegarmos à porta. Sentia-me aliviada e tão feliz!
Feliz porque a minha filhinha não seria, como eu, uma triste filha única, sem ninguém no mundo que a amparasse.
Sempre desejara ter dois filhos e tinha-os! Um ao colo, outro crescendo suavemente, aconchegadinho dentro de mim.
Enquanto o pai procurava as chaves, eu e a menina brincámos: num impulso, rodopiámos juntas, eu com ela nos meus braços, rindo em coro!
Toldou-se-me a vista e caímos no chão de mármore da entrada. Não nos magoámos, apenas me assustei por ela e pelo bebé pequenino. Consolei-a, subimos, tratei dela e deitei-a.
Nada se sangue na minha roupa... suspirei de alívio!
Quando ficara grávida da menina tivera sintomas de aborto durante muito tempo, fora uma gravidez sobressaltada, sempre no risco de perdê-la. Tinha muito medo que tal se repetisse.
Os medicamentos vinham todas as noites, obrigatoriamente.
Até que foi como se despertasse de um sonho estúpido.
Pensei: meu Deus! Quando estamos grávidas todos os medicamentos são perigosos; nem aspirina tomava receando prejudicar o bebé que trazia no ventre... e agora, que venenos estaria este pequenino recebendo através do meu sangue?
E se o meu filho nascesse deficiente?
Oh angústia suprema!
Oh dor cega! Oh tormento da culpa pela minha cegueira!
Como chegara a tal ponto, eu?!
Como deixara que me toldassem o espírito?!
O meu marido tinha preparado a marinada e ia cozer-me nela: atingira o seu fim.
Vendo-me chorar, porque sempre a morte estivera à minha cabeceira e eu crescera ao abandono, não tendo a quem entregar os meus filhos se algo me acontecesse... que seria do meu filho se, caso ficasse só no mundo, não pudesse valer-se?!
Era a oportunidade que ele esperava: insidioso como uma serpente, achando preparado o terreno, disse na sua voz melosa e falsa:
- Agora já nada há a fazer. Tens de ir a uma parteira. Levo-te lá amanhã.
Com a morte na alma, sozinha, pensava... e quanto mais pensava mais negro via: o bebé estaria deformado? O bebé sofreria? Até que ponto o seu sistema nervoso estaria já formado?
Como sentiria a morte, o meu filho?
Teria oito ou nove semanas... idade crucial. Que seria de nós?
Oh meu Deus, vão tirar-me o meu filho!
No dia seguinte, de manhã, fomos a uma vivenda com dois pisos, algures, nos arredores da cidade.
Veio uma mulher receber-nos. Olhou-me com olhinhos de víbora: muito nova, assim como o meu companheiro: íamos desmanchar algum arranjinho, pensou a sanguessuga.
Entrei sozinha, ele foi para o carro ouvir música.
Era uma sala fria, com um sofá à esquerda e cadeiras de espaldar direito a toda a volta.
No meio da sala, uma mesa de vido, nua.
Sentadas nas cadeiras, três mulheres, que não levantaram os olhos do chão.
- Senta-te aqui um bocadinho. Não demora muito.
Atrevi-me a olhar de relance as outras e elas a mim, mas desviámos rapidamente os olhos.
Ninguém disse palavra. Rostos tristes, desanimados, mais frios que o frio que fazia. Ali permanecia um frio de arrepiar.
Sentia-se no ar a culpa. O peso da dor. O medo: o cheiro do éter.
Uma casa de morte; uma casa destinada a matar inocentes na impunidade escondida.

Só quem nunca lá esteve fala à boca rota... quem lá esteve cala-se e tenta esquecer o horror.
As mulheres foram entrando, uma a uma. Passada cerca de meia hora, voltava uma e entrava a que se lhe seguia. Realmente, tudo se passava num instante.
A minha vez chegou. O meu coração encolhia-se, como o de um passarinho apanhado.
Tinha medo. Uma incomensurável pena. Sentia um fardo pesadíssimo: ou nasce deficiente ou morre, pensava. Se nascer defeituoso seremos infelizes para sempre.
Subi para a marquesa suja. Pelo chão imundo, aparelhos cirúrgicos esquisitos. Havia, atirado para um canto, um molho de tubos, que lembravam um aparelho de ordenha, mais pequeno que aqueles com se tira o leite.
No quarto pequeno, duas damas autoritárias e secas. Estava tudo muito sujo e cheirava a éter, a sangue, a suor requentado.
Iam usar o método de aspiração, que estava na moda.
Perguntaram-me que tipo de anestesia queria: geral ou parcial. Disse-lhes do meu problema de coração.
- Nesse caso não te damos nenhuma, não vamos arriscar-nos a que nos morras aqui na marquesa!
- Afasta os joelhos, dobra-os, abra as pernas e descontrai-te.
- Respira fundo.
Uma dor lancinante rasgava-me o ventre. Tinha tanto frio!
Iam-me perguntando se era a primeira vez. Ficaram muito espantadas quando lhes disse que tinha uma filha de três anos e meio, que era casada e que o meu marido me esperava no carro.
Tremia de dor e de frio.
Num rasgo de benevolência, deitaram-me o meu casaco sobre a parte superior do corpo.
Não havia lençol, nem pudor, muito menos um cobertorzito.
As dores eram terríveis. Não pude impedir-me de gemer alto.
Ao fim de algum tempo senti um líquido morno molhar-me as pernas; senti o aspirador dentro de mim.
- Este estava bem agarrado! Riu-se a parteira.
Meu querido filho, que assim se ia!
Limparam-me com uma toalha turca e ajudaram-me a descer da marquesa.
Toda eu era dor, sentia o ventre em chaga viva.
Deram-me um calmante e deixaram que me deitasse um pouco, no tal sofá da sala de entrada, com o meu casaco por cima.
Já havia outras mulheres tristes na sala, mas mal as vi.
Só queria encolher-me em posição fetal e que me esquecesse ali!
Caí numa sonolência atordoada. Pedi que me mostrassem o que tinham sugado de mim.
Trouxeram um frasco dos de Tofina, cheio de água com uns fiapos de sangue a flutuar lá dentro.
Estendi a mão: estava frio, não era o meu.
- Acha que ele sentiu alguma coisa? Perguntei numa voz entaramelada.
- Se soubesse que estavas de tão pouco tempo, não to fazia!
- Se fosse de mais tempo, não fazia, não! Garanto-lhe que não! Só espero que não tenha sofrido muito!
Olhou-me como se eu estivesse doida:
- Um desmancho é um trabalho e um feto é uma colher de sangue coagulado!
Passados uns minutos, obrigaram-me a levantar do sofá e arrastaram-me até à porta da rua.
Lá fora estava o meu marido. Falavam em dinheiro. Eu estava com muitas dores e muito confusa, mal me aguentava de pé.
- Então, não tens aí cinco contos para pagar isto? – Perguntou o meu esposo, assassino.
De repente, fiquei lúcida, chocada, ofendida. Tinha feito aquela pergunta num tom desprendido, indiferente, como se eu fosse uma prostituta a quem ele dera boleia.
Respondi que nem carteira trazia.
Ele pagou e amparou-me de má vontade até ao carro. Fui entrando devagarinho, gemendo. Sentei-me no banco, encostei-me, respirei fundo.
A maldição dele tinha-se consumado! Já nada havia a fazer.
O meu filho estava morto. O meu filho estava morto. O meu filho estava morto....Com esta frase a latejar-me na cabeça, nem dei pelo caminho.
Chegada a casa, deitei-me no sofá da sala para recuperar um pouco.
Ele saiu, foi para o trabalho.
Eu perdera um filho, sofria, perdia sangue, chorava.
Ele vencera: custara-lhe cinco contos e perdera, do seu tempo, uma manhã.
Aos poucos, agarrada às paredes, lá me arrastei para a cama.
Estive toda a tarde sonolenta, as lágrimas corriam-me pela cara abaixo.
O penso estava encharcado de sangue e eu sem forças para ir buscar outro.
Muito quieta, as pernas muito unidas, dobrada como um feto, sofria e chorava alto: Mataram o meu filho! Mataram o meu filho e eu, estúpida, deixei!
... Mas se nascesse deficiente, que seria dele, quando crescesse e eu lhe faltasse?
Oh, porque mataram o meu bebé?!
À tardinha, não havia jantar... ralhos e ameaças. Desta vez foi ele que cuidou da menina e a deitou.
Saiu de novo.
No meu emprego, dei parte de doente.
Ao segundo dia, arrastei-me até à sala, deitei-me no sofá.
A minha filha passava os dias na ama, não sei se esta sabia se não.
Não contei a ninguém.
Chorei dias e dias seguidos. Sentia-me molhada e vazia. Sentia-me de luto.
Sentia muitas dores, mas sobretudo sentia a perda do meu filho.
Tive febre. Fui à minha ginecologista, minha amiga, que viu e nada comentou.
Tratou-me da infecção e fingiu aceitar uma desculpa esfarrapada, até que eu estivesse preparada para desabafar com ela.
O meu ventre curou-se pouco a pouco, a minha alma há-de doer sempre!
Carreguei esta minha dor sozinha, por quinze anos, a chorar todas as noites.
Por fim coloquei este defunto bem à minha frente, despedi-me dele e coloquei-o com carinho ao lado dos outros, que guardo num lugar da alma, pois não consigo enterrá-los.

Zélia, a alfarrabista



Numa pequena cidade onde outrora vivi costumava ver uma pequenita dos seus oito anos vendendo revistas e livros usados. Tinha uma luz tão triste nos olhos azuis, um rictus tão sério na boca vermelha, um ar de abandono, que me intrigou.
Um dia, ao passas, meti conversa:
- bom dia! Não vendes jornais?
- Não. Vendo só revistas. Queres comprar alguma?
- sim. Olha, vais escolhê-la tu, queres?
Sorriu. Eu também sorri e ficámos as duas por muito tempo a ver as caras pintadas nas folhas, a soletrar as letras nos artigos.
De vez em quando, muito raramente, aparecia alguém, que olhava desdenhoso e, por fim, lá se decidia a levar alguma para ler na fila do autocarro. Mas sempre por metade do preço que Zélia pedira.
Finalmente, decidimo-nos por uma grande revista com muitas cores e figuras de animais e grandes fotos de artistas - tudo o que as revistas dos grandes sempre trazem.
Dissemos "até amanhã", e parti.
Ao outro dia lá estava eu outra vez, a fazer companhia à pequena alfarrabista.
E assim por diante, ficámos amigas. Eu contava-lhe coisas da minha vida, ela coisas da vida dela.
- sabes? A minha mãe morreu há muito, muito tempo. Eu já não me lembro bem dela, mas era muito, muito linda!
- A minha também - disse eu.
- Depois o pai foi para a América, e eu fiquei com a minha madrinha. Dizem que ele ganha lá muito dinheiro!
- Era muito bom, o teu pai, não?
- Não sei, já não me lembro. A mãe, sim, era boa. O pai.... ora! também era bom!
- E depois?
- E depois a madrinha começou a dizer que só queria lá em casa gente que trabalhasse, que eu estava a mais, que não gosta nada que de me ver lá em casa, que sou uma madrinha.... uma noite o marido dela, que não gosta nada de mim, trouxe um grande embrulho e pô-lo num caixote. Ao outro dia chamaram-me mais cedo. Mal abri os olhos, disseram-me:
- Vamos! Já é tempo de ajudares a pagar o que comes! Arriba! E quero isto vendido, estás a ouvir?!
Olhei o caixote da véspera, mas cheio de livros e revistas. Fiquei um bocadinho confusa, mas depois explicaram-me que devia vir para esta esquina, quanto devia pedir por cada coisa, o que devia dizer... e cá estou!
Passaram-se uns meses. Um dia, ao passar pela esquina, vi a Zélia toda risonha e bem vestida.
- Olá! Nunca mais voltei a ver-te!
- Pois! Já há uns meses que não ando a vender, sabes porquê?
- Eu não! Que aconteceu?
- Bom, noutro dia recebemos uma carta do meu pai a dizer que por toda esta semana aparecia cá, de surpresa!
A madrinha ralhou muito, disse que não gostava de surpresas. Mas também ficaram contentes... Até arranjaram o meu quarto! E vesti-me de lavado, um vestido bonito, dos domingos. E desapareceu o caixote. Agora ando sempre por aqui, à espera do meu pai.
- Ele vem para sempre?
- Sim!
E durante uns dias passámos as tardes por ali, a olhar as pessoas e a esperar o pai da Zélia. Contava milhões de coisas sobre ele... Ora, entende-se: um pai que vem da América é um assunto muito importante, tanto mais se vem rico.
- há quanto tempo não vês tu o teu pai?
- Hã... a minha madrinha diz que já vai em três anos.
- Três anos! Mas então, já o não conheces!
- Conheço sim! Ele diz na carta como vem vestido, percebes?
Traz um fato castanho e uma flor branca na lapela. Ah, para se conhecer melhor traz um chapéu de chuva, se o tempo estiver bom.
- - O quê?! Tu disseste chapéu de chuva e fato castanho, e...
- O que é? Aonde vais?
- O teu pai! O Teu pai, minha tonta! Corre. Passou ali em frente há bocado. Reparei no chapéu de chuva porque está a fazer sol e ninguém mais o trazia. Deve estar na paragem. Corre!
Corremos, aos encontrões, deixando atrás de nós uma cauda de injúrias, provocando uma série de travagens bruscas ao atravessarmos a rua, mas chegámos a tempo: lá estava ele, tal qual a Zélia tinha dito.
- Pai! Pai! És tu, pai?
- Zélia! Minha querida filha....
Que contentes estavam!
O pai pegou nela ao colo e não se cansava de beijá-la, de olhá-la.
Filha, minha filha, mas tu estás cansada! Vieste a correr?
Que tal te trata por cá a madrinha, hein? Estás tão magra...
- Ó, muito bem, pai, muito bem!


A Vida Secreta de Sara


Com o passar do tempo, Sara tornara-se uma mulher céptica, de expressão dura.
Farta da civilização, reunira o estritamente necessário e pusera-se a caminho.
Andara, andara, até que mais nenhuma casa se avistasse, nem estrada, nem vereda.
Internara-se na mata.
Buscava um lugar tranquilo onde pudesse achar refúgio.
Encontrara-o na aba de uma montanha: uma espécie de gruta sobranceira numa escarpa, que parecia desabar sobre o caudal violento de um rio.
Árvores, poucas e rasteiras.
Ervas, muitas, atapetando a terra amarelada, barrenta.
Durante dias preparou a sua toca com afã, como uma loba prepara a lura em vésperas de parir as crias.
Depois de aberto e limpo o espaço, arrumou nele as suas coisas: a um canto, os pratos, os talheres, uma sertã e uns tachos.
No outro, a cama, um colchão de espuma com dois dedos de espessura, que trouxera enrolado, às costas.
Alguma roupa.
Uma celha, uma bilha.
Acendeu uma fogueira, aqueceu água, deitou-a lá dentro, com umas raspas de sabão e sentou-se, imersa até ao pescoço, sem pensar em nada senão no alívio que sentia.
Quando a água estava quase fria, saiu, esfregou-se com força numa toalha turca e, ainda nua, aproveitou aquela água para lavar a roupa que tirara.
Estendeu-a sobre a erva.
Reanimou a fogueira e sobre ela cozinhou a primeira refeição da sua nova vida.
Na sertã deitou óleo, no óleo quente três ovos, que mexeu com um garfo e comeu dali mesmo, poupando-se a sujar um prato.
Não tinha mesa nem toalha.
Alguns panos de serventia para tudo. Lavados, ficavam prontos para o que fosse preciso.
Depois sentou-se à porta, que não havia.
Acocorou-se no chão, encostada à parede da gruta, fitando o espaço à volta.
Era vasto e vazio.
Em frente havia outra encosta abrupta.
No fundo, seguia apertada a água, que soava alto, em fúria.
Uma espécie de neblina encobria a espuma e acinzentava o abismo.

Inconformada, nunca se acostumara a viver socialmente com outros.
Crítica, mas calada, era tida por estranha, impenetrável, empedernida.
Gostava de andar sozinha.
Jamais se negava ao trabalho duro, com que se sustentava. Dando de si o máximo para evitar censuras, que detestava.
Pagava as suas contas a tempo e horas, pelo que a sociedade a tolerava, sem reparar muito nela.

Também nunca a sua mente se casara com o seu corpo.
Desde muito nova, uma sensualidade voraz a avassalava, mas ninguém desconfiava.
Fugia dos moços. Não era bonita nem feia, mas algo transparecia nela que lhes atraía os olhares.
Não ousavam falar-lhe, portanto seguiam-na.
Ela apressava o passo, caminhando sempre em frente, sem dar a perceber a luta em que se debatia.
Tinha medo e desejo de se deixar levar pelo instinto.
Tinha vontade de fingir que tropeçava e deixar-se apanhar... depois fosse o que fosse!
Se assomava à janela, os olhos deles detectavam-na lá em cima, como se uma luz os chamasse.
Ela fechava a janela de chofre, zangada consigo mesma.
Aquela rudeza minava-a de culpa, mas um ancestral receio impeli-a e só depois de praticado o acto se dava conta do mal feito.
Nem por isso os moços que passavam deixavam de fitá-la com olhares lânguidos, como se olhassem a lua.
A sós consigo mesma, passava lentamente as mãos percorrendo todo o corpo, sentindo deleite, sentindo-se estremecer num arrepio quando os dedos tocavam os mamilos rígidos. As mãos seguiam inexoravelmente até ao delta que palpitava no meio das suas coxas, exigindo carícias.
Perdeu a virgindade tardiamente.
Enamorou-se por uns olhos negros, suplicantes, de longas pestanas reviradas; um tufo de pelos saindo do colarinho da camisa entreaberta.
Não lhe fechara a janela na cara. Ficara a espreitá-lo escondida atrás das cortinas.
Ele percebia o seu vulto e ficava a olhá-la, encostado à parede fronteira.
Um dia, ao chegar do trabalho, encontrou na caixa do correio uma carta sem selo. Era dele, pedindo-lhe namoro.
Respondeu-lhe, por delicadeza ao menos uma vez na vida.
Quando ela a abordou na rua, não encontrou como esquivar-se, como era seu costume, tal uma presa que foge.
Delicadamente, ele deu-lhe os bons dias e ela respondeu. Seguiram conversando.
E assim aconteceu por muitos e muitos dias.
Se ele tentava beijá-la, ela baixava a cabeça. Ele tocava-lhe a testa com os lábios, os braços ou os ombros entre as mãos e pouco mais.
Mas uma vez a sós entre quatro paredes, ela sonhava com carícias longas, demoradas, suaves.
Pouco mais sabia do que o que experimentara tocando-se.
Não podia colocar barreiras nos sonhos.
Sem estradas abertas, deambulava por labirintos de um intenso, difuso prazer.
Acordava suada, ardendo.
Num dia em que foram ao cinema, ela deixou-se finalmente beijar, alheia a tudo o resto.
Nem filme, nem plateia... tremendo de ânsia, ofegantes, devoravam-se no escuro.
Ele enfiou uma mão por baixo da sua saia, mas ela cerrou as coxas com firmeza.
A partir desse dia, quando saíam em passeio, procuravam lugares sossegados, onde se consumiam em beijos até ficarem com as bocas inchadas e feridas.
Mais, não permitia.
Ele suplicava-lhe baixinho que o deixasse desabotoar-lhe a blusa, que lhe tocasse o ventre... ela negava, suspiro suspenso, de olhos cerrados.
Mas quando, pela manhã, sentia a água do chuveiro percorrer-lhe o corpo e as mãos ensaboadas sobre os hemisférios redondos e erectos dos seios, a curva da cintura, a redonda macieza das ancas, soltava um longo gemido:
- Para quê?! Para quê?! Para quê?!
Passaram a ir juntos ao café, ao jardim, acompanhavam-se para todo o lado.
Conversavam acerca do que viam, sentiam, de como viviam.
Ele morava num quarto alugado, com porta independente da da Senhoria.
Ela ficou curiosa, foi ver como era.
Enfim a porta fechada, ela sentou-se na beira da cama, meio estranha. Ele ao lado dela, começou a beijá-la e a noite caiu, enquanto eles escorregavam no leito, deleitados em carícias.
Ele hesitava, porém ela quis até ao fim, de uma vez por todas, descerrando a última cortina que os separava.
Pela manhã, ela sentiu que algo dele entrava nela, que algo em si cedia e sentiu uma delícia libertadora. E abafou os gritos mordendo o ombro dele com todas as forças e sentiu-se inteira, realizada, solta!
O dia acordou-os sobre um mar de sangue.
Ela escutara vagas histórias acerca da dor “da primeira vez”... Qual dor?! Mas nunca escutara histórias acerca de uma sangria daquelas.
Olharam-se pasmados. Ele sentou-se na beira da cama. Tinha a barriga ensanguentada e pela primeira vez ela via o que tanto imaginara: um homem nu., com a maior naturalidade do mundo, sem pudor, sem estranheza alguma.
Mas... que iria dizer a Senhoria?!
Como fora bom e doce, sentir a chave deslizando na fechadura oleada, abrindo o seu ser num mar de delícias!
... Mas que iria dizer a Senhoria?!
Levantaram os lençóis: ficara uma larga mancha também sobre o colchão.
Sorriram, em cumplicidade.
Porque tivera tanto medo se era tão bom... tão bom!
Vestiram-se e saíram, levando os lençóis enrolados.
Enfiaram-nos, mais adiante, num contentor de lixo.
Ela perguntou-lhe:
- Nota-se alguma coisa estranha quando eu ando?
Dizia-se que se podia ver se uma moça era virgem ou não pela forma de andar.
Ele garantiu-lhe que não, não se notava nada.

Sara sentiu o frio e a humidade penetrarem-lhe nos ossos.
Levantou-se do chão e recolheu-se ao interior da furna. Reacendeu a fogueira.
Tinha fome de novo.
Foi abrir uma lata de biscoitos, trouxe um púcaro de água e o pacote do chá.
Pôs a água ao rés das brasas e, quando ferveu, deitou-lhe dentro algumas folhas. Ceou.
Depois deitou-se no colchão de espuma, cobriu-se e deixou-se ficar quieta, apreciando o sossego e o silêncio.
Pensou que desde aquele dia jamais se satisfizera a si mesma.
Era bem no fundo de si que residia o seu prazer, aquele que a libertava.
Como se estivesse num cofre inacessível a si, necessitasse que uma espada irrompesse pelo seu corpo para matar o dragão do desejo, numa luta pertinaz, uma e outra vez, até que a sua alma se sentisse liberta, em uníssono consigo, na semi-consciência.
Ela cruzava os tornozelos em torno da cintura dele e só o libertava quando, exaustos, se sentissem saciados.
Abandonavam-se depois, pele contra pele, os poros ressumando um perfume inebriante, magnético, que os induzia a uma proximidade total, à absoluta quietude.
A vida fizera-os seguir cursos diversos.
Sara jamais olhara outros olhos negros, de longas pestanas reviradas.
Olhava às escondidas os tufos de pelos que afloravam das camisas entreabertas e sentia ânsias mas apressava o andar e desviava depressa os olhos, apertava os lábios, apertava os sobrolhos.
Julgavam-na uma solteirona empedernida. Insensível mas sensata.

Por essas e outras fugira do mundo.
- Insensível mas sensata! – Murmurou consigo mesma! Hipócritas que se rebolavam ás claras e murmuravam entre gargalhadinhas nas costas uns dos outros quem andava com este e aquele que ia com aquela.
E riam casquinadas, que nem galinhas cacarejando.
- Mundo de aparências, onde as emoções viviam reprimidas, entre o mal-dizer . Mundo de estúpidos camaleões.
Deixara-o!
Verdade seja dita que nunca mais o seu corpo e a sua mente fizeram as pazes.
A mente devaneava, como colocar-lhe cercas?!
Sabia exactamente o que o corpo ansiava e divagava como as águas de um rio...divagava almejando umas mãos que a tocassem nos lugares e da forma que exactamente sabia...que em fogo sentia, da curva atrás dos joelhos, à curva da cintura.
Sonhava que uma mão suave lhe desfazia o cabelo preso e, tomando-o, lhe inclinava a cabeça, num longo e profundo beijo.
Depois lhe percorria os ombros, a nuca e o pescoço, lambendo, mordiscando, chupando, descendo pelo rego dos seios, sugando-lhe os mamilos, mordendo-os com força e de novo com suavidade. Lhe tomava a cintura nas mãos ambas, lhe percorria a pele macia da barriga, do interior das coxas, das virilhas, enquanto as pernas se entreabriam...
Sara, levava inconscientemente as mãos à foz de seu delta mas apenas um leve suspiro se lhe soltava dos lábios, em vez dos gritos que lhe deixavam dorida a garganta.
Que vazio se seguia, que ausência, que amarga desilusão a tomava!
Jurava a si mesma que nunca mais as suas mãos seguiriam o rumo dos caminhos ansiados ou, se seguissem, se abstivessem de tocar a rosa de si mesma.
Sentia-se como que na história do Rei Artur, mas ao inverso.
Artur, para provar que era Rei, tivera de sacar a espada presa na fenda do rochedo mágico; ela, para se sentir rainha, precisava que uma espada trespassasse a sua fenda, chegasse ao seu âmago e longamente combatesse a sua dureza de rocha.
Dureza da “dura e estéril Sara”, como toda a gente dizia.
Agora, quase eremita, ao menos não se sentiria recriminada quando passasse, no eu andar ligeiro, as saias tocando os tornozelos, abafando os passos dos sapatos rasos trilhando em silêncio os caminhos da sobrevivência insatisfeita.
A blusa solta ocultando o peito com o coração a palpitar fundo lá dentro.
- ... Coração empedernido, chamavam-lhe!
Agora, nunca mais!
Seria bravia de vez.
Assumia a solidão de uma vez por todas, tentando casar a mente com o corpo, tentado... Esquecer-se!